As polêmicas e os riscos do retorno às aulas presenciais em Vitória da Conquista

Por - 11 de agosto de 2021

Casos de covid-19 em escolas, vazamento de áudios e falta de transparência da Prefeitura acirram o debate sobre os perigos e os reais interesses da retomada de atividades presenciais em salas de aula do município

O decreto nº 21.192, que autoriza a realização de aulas presenciais em escolas de Vitória da Conquista, já chegou ao debate público cercado de polêmicas. No dia seguinte ao seu anúncio, feito em 5 de julho, pela Prefeitura Municipal (PMVC), entidades sindicais que representam os profissionais da educação emitiram uma nota conjunta, na qual afirmavam que a volta às aulas, no atual momento, representa “um verdadeiro atentado à vida”. 

Desde então, o mesmo posicionamento vem sendo defendido incansavelmente não só por sindicatos, mas também por diversos representantes da sociedade civil e de outras esferas do Poder Público, como o Legislativo. Passados mais de 30 dias após a publicação do decreto, os questionamentos em torno da decisão do Executivo só aumentam, diante de um cenário no qual a falta de transparência da PMVC e os riscos da covid-19 para professores e alunos ficam cada vez mais evidentes. 

Mesmo com protocolos, o vírus se espalha

Até o momento, já foram registrados casos de covid-19 em membros do corpo escolar de pelo menos quatro instituições de ensino básico de Vitória da Conquista, sendo três particulares e uma pública. O primeiro deles, no Colégio Oficina, foi noticiado com exclusividade pelo Conquista Repórter, no dia 27 de julho. 

Uma professora da escola foi contaminada durante uma viagem, de acordo com informações da assessoria do Oficina. Após o ocorrido, o colégio suspendeu, temporariamente, as aulas presenciais das turmas que ela havia assumido antes da notificação dos sintomas. A docente já havia tomado a 1ª dose da vacina contra a covid-19 e não apresentou quadro grave, segundo a instituição.

Também veio a público, no dia 28 do mês passado, um caso da doença registrado em um aluno do Colégio Nossa Senhora de Fátima, tradicional escola da cidade conhecida como “Sacramentinas”. O fato levou à suspensão temporária das atividades presenciais dos estudantes da 2ª Série D do colégio.  

Por meio de nota, o Sacramentinas informou à nossa reportagem que o aluno infectado apresentou a forma leve da doença e vinha recebendo acompanhamento médico e sendo monitorado pelo Colégio. Ele manifestou os primeiros sintomas em sala, na tarde do dia 26 de julho, e a confirmação do caso ocorreu no dia seguinte, às 17h.

“Suspendemos a turma por precaução e em atenção ao Protocolo do Colégio aprovado pela Vigilância Sanitária, mesmo sem indício de contaminação de outros alunos ou funcionários. Salientamos que seguimos com cuidado redobrado as orientações das autoridades sanitárias competentes”, afirmou a direção pedagógica da escola. 

Um terceiro estabelecimento de ensino privado que também suspendeu aulas presenciais após a contaminação de um de seus professores foi o Educandário Padre Gilberto. Tivemos acesso a um comunicado enviado aos pais pelo colégio, no qual é informado que a suspensão foi necessária para os alunos do 4º ano B e 5º ano C. 

Por telefone, a secretaria da escola confirmou que o comunicado era verídico, mas não nos passou mais informações acerca do caso. Enviamos uma solicitação de esclarecimentos por e-mail à direção pedagógica do Educandário. Contudo, não fomos respondidos. 

Já no dia 3 de agosto, o Blog do Sena noticiou que dois funcionários do setor administrativo do Instituto de Educação Euclides Dantas (IEED) foram infectados pelo novo coronavírus. A contaminação dos colaboradores também fez a escola, que faz parte da rede estadual de ensino, suspender, por dez dias, as aulas presenciais, autorizadas via decreto pelo Governo da Bahia, desde o dia 26 de julho.

Os casos de covid-19 registrados nas escolas particulares, sobretudo, repercutiram nas redes sociais. Imagens dos comunicados com informações sobre a suspensão de aulas para turmas do Oficina, Sacramentinas e Padre Gilberto circularam por diversos grupos de WhatsApp. 

Com exceção do comunicado enviado aos pais pelo Padre Gilberto, os demais deixavam claro que a suspensão das turmas atendia às determinações dos protocolos oficiais de retomada das aulas nas redes pública e privada de ensino, divulgados pelo município no dia 8 de julho, através de portaria conjunta da Secretaria Municipal de Educação (Smed) e da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

Contudo, o entendimento de que é necessário suspender turmas inteiras após o registro de casos de covid-19 em professores ou alunos logo ficaria para trás. “Ressaltamos que as ações adotadas podem sofrer alterações, em razão de adequação ao que vier a ser estabelecido em documentos emitidos por órgãos oficiais que têm prerrogativa de deliberar (sic) sobre tal questão”, previa o comunicado enviado aos pais pelo Educandário Padre Gilberto. 

Áudios vazados

A informação sobre uma suposta mudança nos protocolos sanitários de prevenção à covid-19 nas escolas de Vitória da Conquista veio à tona, inicialmente, por meio de um vazamento de áudios enviados, na noite do dia 27 de julho, pelo presidente da Associação de Valorização da Educação do Sudoeste Baiano (Avesb), Antônio Landulfo Luz Neto, em um grupo de WhatsApp que reúne diretores de instituições privadas que são vinculadas à entidade. 

Em uma das mensagens de voz, ele dizia que tinha acabado de sair de uma reunião “longa e positiva” com a Diretoria de Vigilância em Saúde do município, e afirmava ainda que haveria “mudanças importantes” no “plano de contingência” para a realização de aulas presenciais nas escolas. 

“Em caso de um aluno com suspeita ou com confirmação de covid, só afasta ele ou qualquer colega que tenha suspeita também. Não fecha a turma toda não, tá? Esse é um ponto principal, mas teremos um treinamento com a Vigilância Sanitária pra rede particular, em especial para a Avesb, na segunda-feira [2 de agosto], às 19 horas, tá certo?”, explicou.

Em um segundo áudio que circulou em grupos de WhatsApp, Landulfo disse ainda que achou isso “uma grande vitória, porque senão esse vai e volta ia ser terrível para a escola, para as famílias, pra todo mundo. E, na realidade, […] é afastado quem tem covid ou sintomas ou quem teve contato próximo”. Na mesma mensagem de voz, ele apontou também o que seria “contato próximo”, de acordo com o que foi conversado na reunião que teve com a diretora de Vigilância em Saúde do município, Ana Maria Ferraz.

“O que é contato próximo? Duas pessoas próximas sem máscaras. Próximo com máscara, com menos de um metro e meio, por exemplo, no intervalo, desde que ambos estejam com máscara, ou uma delas, essa criança, esse estudante, esse adolescente não precisa ser afastado. Então, a turma continua, diferentemente do que tem no plano de contingência nesse momento”, detalhou. 

Esse entendimento apontado pela Diretoria de Vigilância em Saúde do município com relação às medidas a serem adotadas, em caso de confirmação ou suspeita de covid-19, foi rapidamente acordado com as escolas particulares, que se reuniram com Ana Maria Ferraz no dia seguinte (quarta-feira, 28 de julho) ao envio dos áudios por Landulfo, e não na segunda-feira, dia 2 de agosto, conforme ele havia informado anteriormente no grupo da Avesb. 

Registro da reunião realizada, no dia 28 de julho, entre a Diretoria de Vigilância em Saúde e diretores de escolas privadas de Conquista. Reprodução: Secom PMVC.

Com isso, logo na quinta-feira, dia 29 de julho, o Colégio Oficina enviou um outro comunicado às famílias dos seus estudantes, que também foi vazado em grupos de WhatsApp. No documento, a escola detalhou os principais esclarecimentos feitos pela Vigilância em Saúde na reunião com a rede privada de ensino. 

Além disso, informou que as turmas que haviam sido suspensas, após uma professora do Colégio ter testado positivo para a covid-19, poderiam “retornar às atividades na escola” já no dia seguinte, “respeitando a alternância dos grupos”, conforme vinha sendo seguido. 

Ainda de acordo com o comunicado do Oficina, o encontro realizado com a Vigilância em Saúde e as escolas particulares teve como objetivo “padronizar e esclarecer o protocolo de retorno às atividades escolares semipresenciais” e “dar acesso às orientações técnicas quanto à identificação, encaminhamentos, acompanhamento, monitoramento e condutas a serem adotadas frente a possíveis casos suspeitos de COVID-19 na comunidade escolar, sejam alunos ou colaboradores”.

Diante do vazamento de todas essas informações, membros de entidades sindicais que representam a educação afirmam que o grupo de diretores de escolas particulares associados à Avesb tem sido o único com quem a atual gestão municipal tem dialogado acerca do retorno das atividades escolares presenciais. Isso porque professores, pais de alunos da rede municipal e até mesmo os conselhos municipais de Saúde e Educação estariam sendo excluídos das discussões em torno do assunto e das supostas mudanças nos protocolos que também valem para as instituições públicas de Vitória da Conquista. 

Em entrevista ao Conquista Repórter, o presidente da Avesb, Antônio Landulfo, disse que entende a importância dos sindicatos para representar determinadas categorias e lutar por elas, mas que a busca por diálogo com essas entidades deve partir da Prefeitura e não da associação. “Essa associação representa as escolas privadas associadas de Vitória da Conquista e região. Em todas essas reuniões, nós estávamos nos representando. O chamamento de sindicatos, de conselhos, [a necessidade] de ouvir alunos e famílias, de forma democrática, deve vir do Poder Público”, comentou.

Ele destacou ainda que não houve mudanças nos protocolos de biossegurança divulgados pelo município para a retomada das aulas presenciais, conforme havia afirmado nos áudios vazados. O que aconteceu, segundo Landulfo, foi apenas uma interpretação equivocada da portaria conjunta da SMS/SMED por parte das escolas particulares que suspenderam as atividades presenciais para algumas de suas turmas após o registro de casos de covid-19. Isso teria motivado, portanto, a realização das reuniões com a Diretoria de Vigilância em Saúde, nos dias 27 e 28 de julho.

“Quando a diretora de Vigilância me disse que não era assim [que não precisava suspender turmas inteiras] foi que, de lá, inclusive, eu passei um áudio frívolo, antecipado. E por que eu usei o termo “vitória”? Porque as escolas associadas temiam que teriam que parar. Mas elas não temiam ter que parar, apenas. A questão era saber o que era seguro”, relatou.

À nossa reportagem, o presidente da associação também contou que, na reunião do dia 27 de julho, estavam presentes apenas ele, a diretora de Vigilância em Saúde, Ana Maria Ferraz, e outra funcionária do órgão. “Eu fui chamado lá única e simplesmente porque, enquanto diretor da Avesb e estando no grupo do NTE (Núcleo Territorial de Educação), seria uma pessoa que alcançaria toda a rede privada para [informar sobre] uma live de padronização do protocolo de segurança referente ao plano de contingência divulgado pela Prefeitura”, complementou. 

Os trechos do plano de contingência para retorno das aulas presenciais que geraram toda a polêmica estão presentes no item referente aos procedimentos a serem adotados em caso de identificação de pessoas com suspeita de covid-19. Diante dessa situação, o documento informa que a escola deve “suspender, imediatamente, das aulas presenciais da sala de aula ou administrativa, por até 10 dias, as pessoas com sintomas e no caso de caso confirmado de COVID-19”. 

Além disso, deve-se “orientar o isolamento, por 10 dias, de qualquer membro da comunidade escolar que teve contato ou permaneceu por mais de 15 minutos, com um caso confirmado, que apresentem sintomas”. A falha, portanto, teria sido justamente a falta de explicação do que é considerado “contato próximo”, segundo os órgãos de Saúde. Como isso não é especificado no plano, foi subentendido, por algumas escolas particulares, que todos os alunos de turmas que estiveram presentes em sala de aula com alguma pessoa (professor ou aluno) que testou positivo para a covid-19 teriam que ser suspensos, temporariamente, das atividades presenciais, como de fato ocorreu. 

Esse entendimento, inclusive, é o que a vereadora Viviane Sampaio (PT), presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de Vitória da Conquista, diz ter identificado na maioria dos protocolos de segurança que ela pesquisou e avaliou.  “Se isola a turma toda e faz todo um monitoramento, junto com a Vigilância Epidemiológica do município, para fazer valer o cumprimento dos protocolos”, explicou. Segundo ela, o plano de contingência não poderia deixar nenhum tipo de questão aberta ou dar margem para dúvidas. E para isso, a edil acredita que ele precisaria ser descrito de forma ainda mais minuciosa e clara.

“Eu acho um risco você só isolar a pessoa que testou ou suspeitou para a covid-19. Quem garante que aquela criança ou aquele adolescente ficou estático, sentado na sua cadeira, a um metro e meio de distância do seu colega? É muito difícil ter esse controle rigoroso dessa questão de quem você teve contato, principalmente se considerarmos o fato de que a maioria das crianças e adolescentes são assintomáticas. Então, acho que isso, realmente, precisa ser revisto”, avaliou.

Viviane Sampaio: “Eu acho um risco você só isolar a pessoa que testou ou suspeitou para a covid-19”. Foto: Ascom / CMVC.

Falta de transparência pública

Na entrevista concedida ao Conquista Repórter, o presidente da Avesb, Antônio Landulfo, nos disse que uma nota explicativa enviada às escolas particulares para esclarecer dúvidas sobre o plano de contingência também seria publicada nos canais oficiais do Executivo, de acordo com o que a diretora de Vigilância em Saúde, Ana Maria Ferraz, havia lhe informado, em reunião no dia 27 de julho. Mas em consulta ao site da Prefeitura e ao Diário Oficial do Município, a nossa equipe verificou que isso não foi feito, e que não houve, de fato, alterações no plano de contingência para o retorno das aulas presenciais.

No dia 31 de julho, a Secretaria Municipal de Comunicação (Secom) chegou a publicar uma notícia sobre o encontro realizado entre a Diretoria de Vigilância em Saúde e as instituições de ensino privado para alinhar “os protocolos de segurança, com o que vem sendo seguido pela rede municipal de ensino”. Porém, na matéria, não são descritos os esclarecimentos feitos aos diretores presentes com relação ao plano de contingência e ao que seria “contato próximo”. É explicado apenas o objetivo da reunião. 

A falta de transparência da atual gestão no tocante às decisões acordadas junto às escolas privadas, entretanto, não é novidade. No dia 15 de junho, o Conquista Repórter publicou uma matéria na qual expomos o funcionamento clandestino de estabelecimentos de ensino particular da cidade que estavam recebendo alunos antes mesmo da publicação de decretos autorizando a retomada de atividades presenciais. 

Em contato com algumas das escolas citadas na reportagem, fomos informados que a Prefeitura de Vitória da Conquista havia permitido, por meio de um documento elaborado junto à Avesb, a realização de atividades numa modalidade chamada de “apoio e acolhimento”. Mas o Sindicato dos Professores na Bahia (Sinpro), entidade que representa os professores que atuam na educação privada, nos disse que esses, na verdade, eram termos usados para mascarar a realização de aulas presenciais, algo que também foi apontado por relatos de funcionários ouvidos por nossa equipe.

Assim que a apuração foi concluída, enviamos, no dia 10 de junho, os seguintes questionamentos à Prefeitura, através de um e-mail direcionado à Secom: “A Prefeitura tem fiscalizado efetivamente o funcionamento das escolas particulares? De que forma? Foi liberado, de fato, algum tipo de acolhimento para alunos da rede privada? Quais são as regras para esse acolhimento? Quem monitora? Por que não foi publicizado?”.

A matéria foi publicada, cinco dias depois, sem termos as respostas para essas perguntas. Por isso, no dia 17 do mesmo mês, solicitamos, mais uma vez, esclarecimentos quanto à denúncia. Além disso, recorrendo à Lei de Acesso à Informação (LAI), pedimos que a Secom nos enviasse o documento citado pelas escolas, que autorizava, mediante protocolo, a realização de atividades presenciais na modalidade chamada “apoio e acolhimento”. 

Junto a isso, enviamos novos questionamentos: “Quando esse documento foi elaborado e porque não foi amplamente divulgado? Essa autorização, bem como a modalidade de acolhimento, foi discutida entre quais entidades? Só as escolas, a Prefeitura e o Comitê Gestor de Crise? Houve autorização do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Estadual de Educação? Por que o Sinpro não foi chamado para discutir o assunto, já que a decisão afeta diretamente a categoria dos professores que atuam na rede privada?”

Quase dois meses depois, nossas solicitações continuam sendo ignoradas. No último dia 30 de julho, inclusive, solicitamos uma entrevista com a diretora de Vigilância em Saúde, Ana Maria Ferraz, para esta reportagem. Mas também não fomos respondidos. Por isso, não temos posicionamento oficial da gestão com relação às informações trazidas nesta matéria. 

Vale destacar que a LAI, vigente desde 2011 no Brasil, obriga os órgãos e entidades do Poder Público a assegurar uma “gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação”. Além disso, pedidos de Lei de Acesso devem ser respondidos em até 20 dias, com possibilidade de prorrogação do prazo por mais 10, limite já ultrapassado pela Secom. 

Apesar da negativa da Prefeitura ao nosso pedido, nossa reportagem obteve, por meio de uma fonte anônima, o documento citado por escolas particulares que já estavam recebendo alunos meses antes da publicação do decreto que autorizou o ensino na modalidade semipresencial, desde o dia 12 de julho. Ele pode ser conferido na íntegra neste link

Trata-se de um “Protocolo de Retomada das Atividades da Estratégia Apoio e Acolhimento”, datado de 27 de abril de 2021. Nele, além do brasão oficial da Prefeitura e do timbrado da Diretoria de Vigilância em Saúde, constam as assinaturas da secretária municipal de Saúde, Ramona Cerqueira, e do secretário municipal de Administração, Kairan Rocha, que é também presidente do Comitê de Gestão de Crise para o enfrentamento da pandemia da covid-19 em Conquista.

Ramona e Kairan estiveram presentes em algumas das cerca de 15 reuniões que o presidente da Avesb, Antonio Landulfo, diz ter acontecido entre a associação e a atual gestão municipal desde que a entidade surgiu, ainda no primeiro semestre de 2020. A inclusão no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), entretanto, se deu somente em outubro do mesmo ano, conforme consulta feita pela nossa reportagem no site cnpj.info

Reunião realizada em janeiro deste ano entre a atual gestão municipal e representantes da Avesb. Foto: Secom / PMVC.

Segundo Landulfo, inicialmente, foi liberado pela Prefeitura a realização de atividades presenciais com até duas crianças neuroatípicas, aquelas que lidam com diferentes alterações relacionadas ao seu desenvolvimento neurológico, como as autistas. São crianças que, de acordo com o presidente da Avesb, “não se adaptaram de forma alguma ao meio virtual e que estavam adoecidas psicologicamente”. 

Por isso, foi criado “um grupo chamado apoio e acolhimento. Então, a criança não ia para a escola só para aprender o que ela não conseguia. Ela ia para escola para sociabilizar”, explicou. Posteriormente, ainda de acordo com Landulfo, o atendimento nessa modalidade foi ampliado para crianças neurotípicas (que não possuem problemas de desenvolvimento neurológico), desde que respeitadas as determinações previstas no chamado “Protocolo de Retomada das Atividades da Estratégia Apoio e Acolhimento”, de abril deste ano.

“Esse documento é o último antes do decreto de retorno às aulas. O primeiro documento só permitia neuroatípicos, o segundo permitia ambos”, esclareceu Landulfo, que é também diretor do Colégio Sêneca. Algo que chama atenção de imediato no protocolo ao qual tivemos acesso é o fato de que ele foi escrito na primeira pessoa do plural, o que confirma a informação de que foi elaborado pela Avesb, conforme Landulfo afirmou à nossa reportagem. Isso também o diferencia bastante do plano de contingência divulgado pelo município no Diário Oficial e nos canais da Prefeitura.

Contradições

Em resumo, conforme exposto na sua segunda página, o protocolo apresenta “as medidas de segurança sanitárias a serem adotadas pelas instituições privadas para: matrícula para 2021; atendimentos presenciais; apoio, acolhimento e atendimento; rituais de passagem, celebração das etapas conclusivas; e protocolo de retorno das aulas presenciais”. 

Além disso, é explicado que os encontros presenciais na modalidade apoio e acolhimento tinham como objetivo “assegurar um atendimento cuidadoso às dúvidas que os estudantes neurotípicos têm e desenvolver mais perto o trabalho específico que os estudantes neuroatípicos necessitam”. Para tanto, era permitido o recebimento de até seis alunos, duas vezes por semana, com distanciamento de 1,5 entre cada um e uso obrigatório de máscaras e álcool em gel, entre uma série de outras medidas. 

Outro trecho que chama bastante atenção diz respeito aos chamados “rituais de passagem”, como o encerramento de ano ou semestre letivo. Para essas ocasiões, o protocolo estabelecia que a atividade deveria acontecer em área aberta e com circulação de ar, não ter alimentação, uso obrigatório de máscaras e álcool em gel, distanciamento de 1,5 metros e limite de máximo para 100 pessoas, “respeitando o distanciamento recomendado em detrimento à estrutura física da escola”. 

Contudo, no período em que o documento está datado, a Prefeitura não havia liberado nem mesmo a realização de eventos com até 50 pessoas. Isso só veio a acontecer no dia 14 de junho. Consequentemente, o protocolo assinado pela gestão municipal para as referidas atividades presenciais em escolas particulares descumpria uma medida estabelecida em decreto pelo próprio município. 

Mas não há como saber por que ele não foi divulgado, já que não obtivemos posicionamento oficial do Executivo com relação ao assunto. Para o presidente da Avesb, foi um erro de comunicação. “Não havia porque não publicizar. Não acho que tenha sido falta de transparência e sim falta de comunicação interna. Não faz sentido ter um documento oficial, assinado, divulgado amplamente, rodou a cidade toda e não estar lá [no site da Prefeitura]”, disse Landulfo. Ele ainda contou que divulgou o protocolo amplamente em grupos de WhatsApp das escolas privadas.

De acordo com o advogado Tadeu Cincurá, assessor jurídico de entidades sindicais ligadas à educação, para que o documento fosse válido, ele deveria ter sido publicado, necessariamente, no Diário Oficial do Município, sobretudo por envolver uma questão de saúde pública. “Até para que todas as pessoas pudessem ter conhecimento, questionar, dialogar e, inclusive, contrapô-lo, caso se fizesse necessário”, acrescentou. 

“A Constituição Federal, em seu artigo 37, é muito clara nesse aspecto, assim como a Lei Orgânica aqui do município. Todo ato administrativo precisa ser submetido à publicidade. Então, o documento em si já traz certa insegurança porque foi feito dentro de uma redoma, não teve a publicidade devida, o que colocou as próprias escolas privadas em situação de risco”, explicou Tadeu.

Tadeu Cincurá: “Todo ato administrativo precisa ser submetido à publicidade”. Foto: Ascom / CMVC.

Para a vereadora Viviane Sampaio, a atitude demonstra uma diferença de tratamento entre aquilo que é público e aquilo que é privado. “Como não foi publicizado, parecia, realmente, que era algo que estava sendo mantido em segredo. Faltou cumprir esse requisito legal de publicizar. Eu creio que falta, realmente, essa transparência, esse diálogo com toda a sociedade a respeito das tomadas de decisão que são tão importantes para todos”, ressaltou. 

Um caso que não está isolado

No dia 30 de julho, a Prefeitura negou a entrada da equipe de reportagem da TV Sudoeste em escolas municipais para a gravação de imagens. A situação também gerou críticas ao Executivo, bem como questionamentos com relação à falta de transparência em torno do retorno às aulas presenciais. “Por que proibir a imprensa de mostrar a escola, que é pública, já que é de interesse público saber como elas estão se preparando para receber os alunos?”, perguntou o apresentador Judson Almeida, durante o telejornal Bahia Meio Dia.

O fato ocorreu três dias antes da data prevista para o início do ensino semipresencial na rede municipal de educação, que acabou sendo adiado pela prefeita Sheila Lemos para o dia 23 de agosto. De acordo com nota enviada pela PMVC à imprensa, das 24 escolas escolhidas pelo Executivo para a realização de aulas presenciais, quatro ainda precisavam de ajustes para funcionar de acordo aos protocolos de segurança definidos pelas secretarias de Saúde e Educação. 

O Conquista Repórter conseguiu imagens exclusivas de alguns espaços de duas das escolas que, segundo a Prefeitura, já estavam prontas para retomar as aulas presenciais. Além da instalação de três pias na entrada de uma delas, foram abertas janelas em salas de aula, visto que a maioria desses ambientes tinha apenas um vitrô que nem sequer abria, o que prejudicava a ventilação do ar. Ainda assim, a adaptação não foi feita em todas as salas. Não tivemos acesso a imagens dos sanitários. Veja os registros no vídeo a seguir: 

Outros questionamentos

Apesar da Prefeitura ter anunciado o dia 23 de agosto como nova data para o início do ensino na modalidade híbrida, com aulas presenciais e remotas, o Sindicato do Magistério Municipal Público de Vitória da Conquista (Simmp) afirma que os professores da rede municipal só retornarão às salas de aula após a imunização completa da categoria. A pauta também é defendida pela APLB (Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia), que representa os docentes da rede estadual, e pelo Sinpro (Sindicato dos Professores no Estado da Bahia), que atua na defesa dos profissionais da educação privada.

Juntas, essas entidades sindicais levaram o debate acerca do retorno às aulas ao Ministério Público da Bahia (MP-BA), que em audiência realizada no dia 13 de julho, identificou três irregularidades no decreto municipal nº 21.192, sendo elas: a ausência de discussão anterior com as entidades representativas da classe dos docentes; a falta de liberação e aprovação pelos Conselhos Municipais de Educação e de Saúde; e um desacordo com o decreto estadual no que diz respeito ao patamar das taxas de ocupação de leitos de UTI.

No último dia 4 de agosto, o Conselho Municipal de Saúde (CMS) divulgou uma nota pública sobre o assunto, na qual destacou essas irregularidades apontadas pelo MP-BA e se posicionou abertamente contra o retorno das aulas presenciais “sem as condições adequadas e seguras para os professores, trabalhadores da educação e população”. De acordo com o órgão, a decisão da Prefeitura de adiar para o próximo dia 23 o início do ensino semipresencial na rede pública demonstrou uma falta de preparo e adequação das escolas aos protocolos de biossegurança do município.

O Conselho ainda informou que tem pautado a urgência em discutir o retorno presencial desde 2020, mas “foi surpreendido que esse diálogo passou a acontecer de forma restrita com um grupo de representantes da AVESB, com total ausência de representação das instituições do Controle Social e dos Sindicatos dos profissionais da educação”. 

Por isso, convocou “todas as instituições representativas e a comunidade conquistense para exigir da gestão municipal, principalmente no Comitê Gestor de Crise e na Diretoria de Vigilância em Saúde, um diálogo transparente, democrático e intersetorial, imprescindível para garantia de um retorno às atividades educacionais com segurança, responsabilidade, envolvimento comunitário e participação social”. A nota foi assinada pela presidenta do CMS, Lúcia Maria de Sousa Dantas Dória. O Conselho Municipal de Educação (CME), por sua vez, não se manifestou publicamente sobre o assunto. 

Para a vereadora Viviane Sampaio (PT), ao ser efetivado, o decreto nº 21.192, que ela considerou “intempestivo e precipitado”, revelou um distanciamento muito grande entre a realidade das escolas privadas e a realidade das escolas públicas de Vitória da Conquista, já que essas últimas não puderam retornar até o momento. Além disso, a edil destacou que a imunização de todos os trabalhadores da educação com a primeira e a segunda dose da vacina contra a covid-19 deveria ter sido priorizada desde o momento em que se começou a ser discutida a possibilidade do retorno presencial.

Entretanto, no período em que o decreto foi publicado, o município só havia vacinado com a 1ª dose os trabalhadores da educação com idade superior aos 30 anos. Só depois, no dia 23 de julho, a faixa etária de vacinação para a categoria caiu para os 18. E, até o momento, a grande maioria não recebeu a 2ª dose, que garante a imunização completa. 

Segundo o advogado Tadeu Cincurá, retomar as aulas presenciais nessas condições, por enquanto, ainda é algo muito perigoso, sobretudo para esses trabalhadores. “Não é que os professores não querem trabalhar, na verdade, eles nunca trabalharam tanto como na modalidade remota, que é muito pior. A questão é que nós não temos segurança. O que nós estamos fazendo diante desse retorno é uma experiência. E se der errado? Se uma pessoa morrer? Se morrer seu filho? Não tem como substituir. A pandemia não acabou. A gente precisa ter mais cuidado porque são vidas humanas que estão em jogo”, concluiu.

Acirramento dos debates

Tanto Tadeu quanto Viviane e Lúcia participaram de uma live promovida pela APLB Sudoeste, no dia 2 de agosto, com o objetivo de debater os impactos do retorno das atividades presenciais nas escolas de Conquista. Além deles, participaram o diretor regional do sindicato, Cezar Henrique Nolasco; o presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal, vereador Valdemir Dias (PT); a enfermeira, membro do Conselho Municipal de Saúde e doutoranda em Saúde Coletiva, Marciglei Brito Morais; e o diretor geral da Delegacia Planalto da Conquista da APLB, Toni Alcântara. 

Durante a transmissão, além da imunização dos profissionais da educação, foram citadas outras polêmicas que têm endossado o debate em torno do retorno às aulas. Entre elas estão a falta de investimentos na infraestrutura das escolas municipais no período anterior à publicação do decreto que autoriza o ensino semipresencial; a insegurança com relação à adequação do transporte escolar de estudantes e os riscos de contaminação aos quais eles podem estar sujeitos em ônibus e vans; e o termo elaborado pela Prefeitura que transfere aos pais a responsabilidade de enviar seus filhos para as aulas presenciais, documento esse que veio a público no dia 14 de julho, através de matéria publicada no Blog do Sena.

Print da live sobre os impactos do retorno às aulas, promovida pela APLB Sudoeste, no dia 2 de agosto. Reprodução: YouTube.

Valdemir afirmou que os próprios pais não se sentem seguros com relação ao retorno presencial e enfatizou que o município não pode transferir a eles a responsabilidade pelas possíveis consequências disso. O vereador também disse que, nas visitas que têm feito aos estabelecimentos de ensino da rede pública, verificou que muitas escolas não têm ventilação alguma, portanto, não oferecem condições seguras de retomarem as atividades presenciais. “Não somos contra o retorno, mas nós temos que dar a infraestrutura e as condições necessárias para isso, e garantir a vacinação de todos para que tenhamos segurança. Em primeiro lugar, está a vida”, afirmou.

Marciglei, por sua vez, disse que há “uma fratura nesse processo de retomada que foi estabelecida na divisão entre o público e o privado”, porque, segundo ela, ao autorizar as aulas presenciais, a Prefeitura não levou em consideração todo o contexto da educação e restringiu o diálogo a um grupo específico. “E isso nos assusta e nos preocupa. Viola os espaços de participação social e começa a fazer um movimento que muito se parece com o que a gente tem [visto] no Governo Federal, instituindo grupos paralelos para tomar decisões importantes que vão afetar a vida de toda a população”. 

A pandemia, de acordo com a enfermeira, é algo complexo. “Requer, portanto, uma resposta que também seja complexa. E não é possível fazer isso se a gente não consegue pensar sob uma perspectiva intersetorial. Em nenhum momento, a gente pode imaginar um protocolo que dê conta de atender as demandas do setor privado, mas que deixe completamente de lado a realidade do nosso município, das escolas da periferia, das escolas da zona rural, do transporte público”.

Em seu discurso, a vereadora Viviane destacou os resultados de uma pesquisa da Universidade de São Paulo divulgada recentemente pelo Jornal da USP. O estudo revela que o retorno às aulas presenciais sempre vai trazer alguma elevação no número de casos de covid-19 entre as pessoas que frequentam a escola e seus contatos, mas que essa elevação pode ser muito grande, ou mínima, dependendo das medidas ou dos protocolos de segurança adotados pela comunidade escolar.

“Por exemplo, esse risco pode ser 1.141% maior caso as máscaras sejam mal utilizadas. Se bem utilizadas, mas sem outras medidas, o aumento da chance de contágio é de 575%. Somado ao uso correto de máscaras pelos alunos, e se os professores utilizarem máscaras do tipo PFF2, o risco despenca para 40%, o que indica a importância do uso correto, de máscaras eficientes e o papel determinante dos professores na transmissão viral”, descreve a matéria publicada pelo Jornal da USP e reproduzida pelo UOL Viva Bem.

A pesquisa aponta ainda que a má ventilação também impacta diretamente no aumento do risco de contágio da covid-19 em sala de aula, uma vez que é comprovada a maior transmissão do novo coronavírus por aerossóis. Isso porque com o baixo fluxo de ar, as partículas de saliva que uma pessoa contaminada expele ficam suspensas por mais tempo e, logo, pode infectar um maior número de estudantes ou funcionários de escolas. 

Para o infectologista Carlos Magno Fortaleza, também há uma preocupação imensa quanto ao aumento do convívio social extraescolar que a volta às aulas pode representar. “Esse aumento de interação social pode fazer com que o número de casos de covid-19 cresça”. 

Segundo o especialista, apesar do número de crianças e adolescentes diagnosticados com covid-19 ser muito menor do que o de adultos e do fato de terem menos chances de desenvolver casos graves da doença, eles participam efetivamente de cadeias de transmissão. “Então, se nós temos essas crianças indo às aulas, temos que lembrar que aumentamos os riscos para o resto da população”, complementou, em uma entrevista concedida à GloboNews.

Durante sua fala na live promovida pela APLB, a presidente do Conselho Municipal de Saúde de Vitória da Conquista, Lúcia Maria Dória, disse que, muitas vezes, é disseminada uma falsa ideia de que crianças e adolescentes não testam positivo para a covid-19. Mas ela lembrou que esse grupo não está completamente de fora das estatísticas oficiais da doença, que já é, inclusive, a maior causa de mortes de brasileiros com 10 a 19 anos em 2021. “Então, precisamos oferecer uma resistência [com relação ao retorno presencial das aulas] para que haja o mínimo de respeito não só com o professor, mas com a sociedade como um todo”, defendeu.

Caso queira, você pode conferir a live da APLB na íntegra no vídeo a seguir:

Foto de capa: Secom / PMVC.

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