Natanael Oliveira do Carmo: “Temos um poder público municipal avesso à cultura”
Por Afonso Ribas - 29 de abril de 2024
Autor de obra vencedora do Prêmio Literário Profª. Zélia Saldanha, o escritor, advogado e militante socialista acaba de lançar seu quinto livro, em parceria com o pesquisador Cláudio Marques da Silva Neto. “A Era do Engano” aborda uma realidade marcada pela desigualdade social e pela difusão proposital de mentiras.
A literatura sempre fez parte da vida do escritor, advogado e militante socialista Natanael Oliveira do Carmo. Na infância, quando ainda nem sabia ler, era a voz da sua mãe que lhe apresentava palavras e histórias que aguçavam sua imaginação nos fins de semana e nos fins de tarde. Assim como ela, seu pai era um grande leitor. Lia todas as noites e, nos domingos à tarde, especialmente, sentava-se na mesa da sala de casa e lá ficava com um livro em mãos. “Inconscientemente, fui assimilando isso”, diz Natanael.
Tão logo aprendeu a ler, por volta dos sete anos, passou a “devorar” livros e mais livros, seguindo o exemplo dos pais. E na medida em que crescia, começava também a se formar politicamente em um Brasil marcado pela repressão. Afinal, nasceu em fevereiro de 1963, cerca de um ano antes do golpe que instituiu a Ditadura Militar no Brasil. Mesmo sem entender o que significava exatamente aquele regime político, via a família envolvida na militância de oposição ao então governo.
“Tudo isso me levou da infância à adolescência com uma percepção de mundo muito clara, uma consciência de classe que desabrochava na minha mente como definidora de meu caminho na sociedade. As diferenças sociais e econômicas eram muito claras e eu tinha a vantagem, acredito, de ser um leitor voraz, de conhecer os grandes clássicos da literatura brasileira e mundial, de ler os grandes poetas brasileiros, alguns filósofos, de saber me situar no mundo e ter uma visão muito sólida da realidade”, conta.
Apesar de ser natural de Salvador, viveu a maior parte da vida no interior, em cidades como Cachoeira e Caculé, onde, segundo Natanael, sua “formação política se acentuou”. Morava em um bairro periférico do município localizado na Serra Geral da Bahia. Na escola, diz que conquistou respeito e admiração por ser um bom aluno e escrever bem, o que lhe rendeu alguma “notoriedade no meio estudantil”. Chegou a iniciar e interromper duas graduações antes de cursar Direito: Letras, no campus da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) de Caetité, e História, na Universidade Federal de Sergipe.
Mesmo o ingresso no mercado de trabalho ocorreu antes de iniciar o bacharelado no campo jurídico. Em 1997, dois anos após chegar e se estabelecer em Vitória da Conquista, passou em um concurso da Polícia Civil para o cargo de escrivão de polícia. Foi só em 2001, quando o curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) já havia sido implantado, que ele prestou o vestibular da instituição e foi aprovado.
“Passei e fui estudar. Estudar e trabalhar, ao mesmo tempo, não é fácil. No fim, deu tudo certo. Quando me formei, deixei a polícia e fui advogar”, lembra. Mas Natanael ressalta que o desejo de ser escritor veio muito antes da vontade de se tornar advogado. Sempre foi apaixonado pela literatura de ficção, sobretudo. “A ficção é um extraordinário espelho da realidade. Ela põe em ação a mais poderosa força do ser humano: a imaginação!”, afirma.
Seu primeiro livro, intitulado “Tocotó de Mulifange”, foi vencedor do Prêmio Literário Profª. Zélia Saldanha (2001). É a obra que, de acordo com Natanael, lhe consolida como escritor. Apresenta contos em que o autor aborda temas diversos como tráfico de mulheres, extermínio de povos indígenas e abandono na velhice. “Me trouxe reconhecimento, inclusive, me levou para a Academia Conquistense de Letras (ACL) e me deu a oportunidade de conhecer outros escritores, de conhecer pessoas que me procuraram para conversar após lerem o livro”, destaca.
Entretanto, é só a partir de 2022 que o advogado intensifica sua produção literária com o lançamento dos livros “O Legado do Profeta”, que integra a trilogia de aventura e fantasia “A Honra do Clã”; “Cem Dias de Escuridão”, um romance jurídico; e a prosa poética “A Breve Canção da Vida ou Autobiografia de Um Fantasma”. “Toda a minha literatura está impregnada de mim. Como eu poderia escrever o que não sou? Minha visão de mundo, minha compreensão da realidade, tudo isso acaba se revelando, em maior ou menor grau, na minha produção literária”, comenta.
Sua visão de mundo, principalmente, é o que está presente em seu mais novo lançamento, intitulado “A Era do Engano”, que marca sua estreia na literatura de não ficção. Escrito em parceria com o pesquisador Cláudio Marques da Silva Neto, o livro propõe uma análise do modelo do Estado brasileiro, considerando sua origem e desenvolvimento através dos séculos, e faz alusão a uma época em que, segundo afirmam os autores, “a mentira tem prevalecido, de modo proposital e estratégico, com a finalidade de levar as massas a uma compreensão deturpada da realidade”.
Em entrevista ao Conquista Repórter, Natanael Oliveira do Carmo, que atualmente integra o Coletivo de Escritores Conquistenses, explica as motivações por trás da nova obra e sua relação com o atual cenário sociopolítico local e nacional. Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela UESB, ele também faz uma análise da cena literária de Vitória da Conquista. Confira a seguir:
CR: Você dedicou a maior parte da sua carreira como escritor ao universo da ficção, com destaque para os livros “O Legado do Profeta” e “O Tocotó de Mulifange”. O que lhe motivou a escrever o seu primeiro livro de não ficção e de que forma a atual conjuntura social e política se relaciona com isso?
Natanael Oliveira do Carmo: A motivação principal foi a necessidade de discutir a natureza do Estado brasileiro, com suas imperfeições históricas, seus equívocos, a extensão da maldade que está por trás dessa máquina de gerar desigualdade e produzir a miséria coletiva. Entendemos que é preciso convidar as pessoas à reflexão sobre esse sistema capitalista selvagem, violento, excludente e que existe, basicamente, para garantir e perpetuar os privilégios de classe de uma minoria ― muito pequena ―, em prejuízo da vida, da dignidade e das oportunidades de uma parcela enorme da população.
CR: De forma recorrente, escritores, historiadores e a própria sociedade, de forma geral, tentam resumir um determinado período da nossa história em uma única expressão. Ou então atrelar esse período a algum fenômeno causador de grandes transformações sociais e políticas. De certa forma, o livro que você acaba de publicar em coautoria com o pesquisador Cláudio Marques da Silva Neto não foge dessa regra. Mas por que exatamente vocês escolheram se referir ao momento histórico em que vivemos como uma “Era do Engano”?
Natanael Oliveira do Carmo: Primeiro, porque entendemos que esse título define com muita propriedade o tempo em que vivemos. Atualmente, a tecnologia permite a comunicação com velocidade nunca antes possível. Isso tem facilitado a disseminação desenfreada de notícias falsas (fake news), a distorção de conceitos e princípios sociais e sua propagação imediata, com longo alcance. Os discursos falaciosos, a manipulação, o uso indiscriminado dos instrumentos postos à disposição de todos, especialmente de quem pode se assenhorar e controlar esses instrumentos (mídias, redes sociais, estratégias de comunicação de massa), evidentemente, acaba sendo privilégio de quem detém o capital e/ou está a seu serviço. Segundo, porque, no processo de dominação de classe, a produção da alienação, da ignorância, alicerçadas sobre a miséria, torna as massas presas fáceis das estratégias de engano que são permanentemente postas em prática pela parcela socioeconômica dominante, que as explora sem que os explorados se deem conta disso. As pessoas, de modo geral, são enganadas de todas as maneiras. Por isso, acreditamos que “A Era do Engano” define perfeitamente a época em que estamos vivendo.
CR: Na sua opinião, como essa realidade (ou seria farsa?) que vocês abordam no livro se reflete em uma cidade média e interiorana como Vitória da Conquista?
Natanael Oliveira do Carmo: De várias maneiras. Uma cidade importante, rica, tanto economicamente quanto no aspecto artístico-cultural, próspera em áreas como saúde e educação, por exemplo, ainda expõe uma desigualdade social e econômica brutal. A violência estatal está presente sob diversas formas, é evidente o abandono das periferias pela administração pública, a forma desumana de se tratar a população pobre, os excluídos, porém, maquiando a realidade de tal forma que muitos desses desprezados acabam por se sentirem, com frequência, contemplados pelos governos municipais e seus “representantes” no Legislativo. Aqui, como em qualquer outro lugar desse Brasil imenso, o poder público, a gestão municipal manda tratores e outras máquinas pesadas destruírem acampamentos de pessoas que não têm onde morar, destruindo os parcos pertences pessoais de famílias paupérrimas, deixando ao relento homens, mulheres, idosos e crianças. Tudo dentro da “lei”, com a conivência dos Poderes do Estado. E o mesmo sistema político podre, viciado, destrutivo envenena a sociedade.
CR: No livro, vocês defendem a necessidade de repensar esse atual modelo do Estado brasileiro como um caminho para a real efetivação da dignidade humana e dos direitos sociais conquistados a duras penas pela classe trabalhadora. Mas o quão possível isso de fato é diante da “guerra invisível” entre verdade e mentira sobre a qual vocês tratam no livro?
Natanael Oliveira do Carmo: É uma tarefa gigantesca, sem dúvida, mas não impossível. Na minha opinião, há dois pilares essenciais sobre os quais é possível erguer um novo modelo de sociedade: educação e dignidade humana. Isso significa que, a meu ver ― e não estou sozinho nesse modo de pensar ― o caminho passa pelo combate intenso e implacável à ignorância e à miséria. Precisamos nos tornar um país de leitores, precisamos desenvolver um novo modelo de educação formal, precisamos acabar com a desigualdade social e isso só será possível com transformações estruturais (não apenas simples reformas), com um trabalho de base sério, profundo, que só será possível com educação. É preciso educar as massas. Precisamos descobrir como fazer isso (se ainda não descobrimos) e colocar em prática. A organização popular é fundamental. As organizações de esquerda precisam trabalhar juntas num grande projeto nacional. Nunca será fácil. Mas sempre será possível!
CR: Durante o lançamento de “A Era do Engano”, no último dia 18 de abril, Cláudio classificou a obra como “um livro que encoraja as pessoas a tomarem a palavra”. Qual o significado disso para você enquanto escritor e militante político?
Natanael Oliveira do Carmo: Não sei exatamente qual o significado dessa afirmativa para Cláudio, pois não conversamos sobre isso especificamente, mas, para mim, significa que não esgotamos o assunto no livro nem pretendemos ser os donos da verdade. Vou ilustrar o que estou dizendo: o livro é como uma chave girando na ignição de um automóvel. Quando a chave gira, o motor começa a funcionar e não precisamos continuar girando a chave para que ele continue funcionando. A chave, assim que girada, permanece lá, inerte, mas o motor funciona sem parar. Cada peça, cada engrenagem faz a sua parte e o motor permanece em funcionamento. A função do livro é “ligar o motor”. As discussões que trazemos devem ser apropriadas, aprimoradas e aprofundadas pelos leitores, a fim de que o processo de reconstrução política, econômica e social que entendemos necessário e urgente possa se realizar. Ou seja, esta não é uma tarefa minha e de Cláudio, que se resume ao livro. É uma tarefa coletiva, que deve ser realizada por todos. Jamais deve se limitar à teoria. Precisa ir além e ser prática.
CR: Esse é seu quinto livro publicado em mais de 20 anos de carreira. Considerando essa trajetória e suas vivências como escritor independente no interior baiano, que análise você faz da cena literária de Vitória da Conquista nesse período ainda recente de pós-pandemia?
Natanael Oliveira do Carmo: Após publicar meu primeiro livro, fiquei 20 anos sem publicar. Publiquei 4 livros nos últimos 4 anos. Se não fosse tão difícil para nós, escritores do interior ― fora da grande mídia e sem acesso a grandes editoras ― publicar um livro, teria publicado o dobro. Vitória da Conquista está experimentando, neste exato momento, uma efervescência literária interessante e importantíssima. Grupos de escritores, a exemplo do nosso Coletivo de Escritores Conquistenses, que congrega mais de setenta escritores e escritoras locais, têm produzido, publicado e discutido a literatura conquistense, projetando novas possibilidades de expansão e penetração social. Por outro lado, temos um poder público municipal avesso à cultura e à arte, principalmente, como toda ideologia de direita, muito resistente à literatura. Afinal, a literatura é libertadora, reveladora, transformadora. Tudo que vemos no Brasil, vemos em menor escala em Vitória da Conquista. Então, escrever é um prazer e um desafio muito grande, pois a estrutura do Estado, em todos os seus níveis, não favorece a produção e a expansão da literatura. Entretanto, temos avançado. Grandes escritores e escritoras estão a ponto de serem revelados ao grande público leitor aqui na cidade e isso faz parte de um projeto que conta apenas e tão somente com nosso próprio esforço, individual e coletivo, sem que haja qualquer apoio institucional local. Inclusive, poucos veículos de imprensa demonstram interesse em divulgar a literatura de nossa cidade. E o Conquista Repórter tem exercido um papel de extrema relevância ao apoiar e difundir a literatura conquistense.
Informações adicionais: Herberson Sonkha.
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