“A luta é sempre nossa, se a gente parar, pior vai ficar”, diz líder quilombola de Lagoa dos Patos

Por - 19 de abril de 2024

Nascida na zona rural de Vitória da Conquista, a enfermeira e mobilizadora social Maria Aparecida atua na associação da comunidade e inspira novas gerações do quilombo a seguirem na luta pelos seus direitos.

Maria Aparecida Souza Teixeira Pereira nasceu no quilombo de Lagoa dos Patos, na zona rural de Vitória da Conquista. Foi nessa mesma comunidade, na sala de sua casa, que ela nos contou sobre sua família, a rotina diária que começa às 5h e os caminhos que percorreu até conseguir acessar a educação superior. Entre as pessoas que vivem naquele povoado, Cida, como é apelidada por quase todos que a conhecem, é a mulher capaz de resolver “de tudo um pouco”. “O meu celular não para em nenhum minuto”, diz sorrindo.

É principalmente o trabalho como coordenadora da Associação Quilombola da Comunidade de Lagoa dos Patos que faz com que diversos pedidos de ajuda cheguem até o seu WhatsApp. Ela também ocupa a função de tesoureira no Conselho das Associações Quilombolas do Território do Sudoeste Baiano. Além disso, se desloca todos os dias até a zona urbana do município, onde atua como mobilizadora social no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), atendendo crianças de zero a três anos.

“Uma hora tem alguém com exame para marcar, outra hora tem uma pessoa que não conseguiu ser atendida numa consulta. Ou tem um exame que é muito caro e a pessoa não consegue pagar, aí eu tenho que entrar em contato com a assistência social”, explica. Por ser enfermeira de formação, Cida ainda é convocada para auxiliar nos cuidados primários de saúde dentro do quilombo. Às vezes, quando chega do trabalho no CRAS, vai até as casas das pessoas para fazer um curativo, dar uma injeção ou aferir pressão arterial.

A rotina é cansativa, mas ela diz que já se acostumou. Sempre foi assim, pelo menos desde que ingressou na universidade, em 2011. Cida é uma das pessoas da comunidade de Lagoa dos Patos que conquistou um diploma de ensino superior. Foi por meio da Lei de Cotas, mais especificamente das vagas reservadas para pessoas quilombolas, que conseguiu estudar Enfermagem na Universidade Feral da Bahia (UFBA), no campus Anísio Teixeira, em Vitória da Conquista. “Fiz o ENEM e tirei 825 na redação. Eu nem acreditava”, conta a líder quilombola em meio a gargalhadas, sentada no sofá de casa.

O quilombo de Lagoa dos Patos foi certificado pela Fundação Palmares em 2014. Foto: Victória Lôbo.

O caminho até a universidade

Assim como muitos brasileiros e brasileiras, Cida parou de frequentar a escola ainda no ensino fundamental, no oitavo ano. Quando tinha 14 anos, se mudou para São Paulo com a família. Sua mãe havia se tornado viúva após o assassinato do marido, que era pai de santo e foi vítima de racismo religioso, sendo morto a facadas. Ele sofria perseguições por ser adepto da Umbanda, uma religião de matriz afro-brasileira. “Foi um momento muito triste e a gente acabou se afastando dessa vertente religiosa”, explica.

O irmão de Cida é um dos poucos que ainda mantém as tradições das religiões de matriz afro-brasileira no quilombo de Lagoa dos Patos. Ela mesma deixou para trás a Umbanda e passou a seguir o catolicismo. Sua mãe também não frequenta a casa do filho, nem mesmo durante o tradicional caruru. E foi justamente após o assassinato de seu pai, em decorrência da intolerância religiosa, que Cida deixou Vitória da Conquista em direção à capital paulista, retornando algum tempo depois, aos 17 anos.

Em São Paulo, não conseguiu continuar a vida escolar. Era muito difícil conciliar o trabalho e os estudos. Mas de volta ao seu lugar de origem, já casada e com um filho, Maria Aparecida decidiu que retornaria para a sala de aula, aos 27 anos. Passou a estudar à noite no Centro Educacional Moisés Meira, no distrito de José Gonçalves. Cursou oitavo e nono ano ao mesmo tempo, por meio do supletivo, modalidade atualmente conhecida como Educação para Jovens e Adultos (EJA). Depois concluiu o ensino médio em uma extensão do Colégio Estadual Nilton Gonçalves.

Cida é coordenadora da associação que cuida da igreja católica do quilombo de Lagoa dos Patos. Foto: Victória Lôbo.

Com o objetivo de ingressar na faculdade, começou a frequentar aulas em um cursinho pré-vestibular. Foi uma missionária que vivia em Lagoa dos Patos quem conseguiu uma bolsa de estudos para Cida na instituição preparatória. “Eu dizia: vai ser difícil, mas vou conseguir. De manhã ia para o cursinho, aí chegava em casa, fazia as tarefas domésticas, e à noite eu estudava”, conta. Viveu essa rotina até que, em 2011, foi aprovada em duas universidades, nos cursos de Matemática e Enfermagem. Por afinidade com a área, decidiu se tonar enfermeira e iniciou o primeiro semestre na UFBA.

Cida acreditava que o mais difícil ela havia conquistado: a aprovação no ENEM. Mas quando começou as aulas na universidade, se deparou com uma série de outras dificuldades. “No primeiro semestre levei ‘pau’. Foi uma derrota. Perdi na maioria das disciplinas e pensei: pra que eu vou fazer isso? Vou desistir”, diz. Foi sua irmã mais nova que a convenceu a continuar e finalizar o curso até conseguir o diploma.

A partir do segundo semestre na UFBA, recuperou as matérias perdidas e melhorou as notas. Mas o que passou a dificultar sua vida universitária foram os custos com o transporte para transitar entre Lagoa dos Patos e a zona urbana de Vitória da Conquista. Cida pensou mais uma vez em desistir. Mas teve a possibilidade de continuar os estudos por causa do sogro e da mãe, que passaram a trabalhar mais para ajudar com as despesas. E assim foi até que finalmente Maria Aparecida conseguiu um auxílio moradia.

Depois do benefício, que viabilizou a continuidade da sua vida acadêmica, veio o Programa de Bolsa Permanência, instituído em 2013. “Eu estava quase saindo da UFBA. Foi muito difícil e complicado, mas deu certo e me formei em 2016”, explica. Hoje o filho de Cida trilha um caminho parecido. Ele também estudou em escolas públicas, inclusive no distrito de José Gonçalves, até que ingressou na universidade. “Ele conseguiu o auxílio permanência, mas a dificuldade agora é porque muitos alunos não estão conseguindo receber, estão tendo cortes. Eles correm o risco de sair porque não têm como permanecer lá”, relata a enfermeira.

“A luta é sempre nossa!”

É por causa dos jovens quilombolas e da zona rural que sonham em ingressar e permanecer nas universidades que Cida se dedica aos afazeres da associação de Lagoa dos Patos e do Conselho Quilombola do Sudoeste Baiano. Em 2020, quando a Escola Municipal Joaquim Manoel Macedo foi desativada na comunidade onde nasceu e vive, ela foi uma das pessoas que tentaram impedir a perda desse patrimônio.

“Nós temos o direito de ter a escola funcionando na comunidade, mas infelizmente o que aconteceu é que marcaram uma reunião com os pais e mães, sabendo que a associação não estaria presente. E aí falaram que os filhos deles teriam uma educação melhor em outro lugar e convenceram todo mundo a assinar e concordar com a decisão”, conta. Pelo menos outras 13 escolas foram fechadas pela Prefeitura de Vitória da Conquista, desde 2018, nos quilombos do município reconhecidos pela Fundação Palmares.

O filho de Cida estudou na Escola Municipal Joaquim Manoel Macedo, desativada em 2020. Foto: Victória Lôbo.

Cida busca melhorias para as comunidades quilombolas em diversas outras áreas, além da educação. O acesso à água potável, por exemplo, ainda não é uma realidade para todas as famílias de Lagoa dos Patos. As estradas de chão, que no período de chuvas se transformam em rios, também são um grande obstáculo para a maioria dos quilombos de Vitória da Conquista, que são atendidos pelo Conselho das Associações Quilombolas do Território do Sudoeste Baiano.

Apesar de todas as dificuldades, Maria Aparecida reconhece o valor de lutar pelos direitos da sua comunidade e de todos os quilombolas. “A luta é sempre nossa. Se a gente parar, pior vai ficar”, afirma. Mais do que isso, ela tem orgulho de suas origens e ensinou seu filho a sentir o mesmo. “Ele não tem vergonha de ser de uma comunidade quilombola e nem de ser neto de pai de santo. Em todos os lugares ele vai bater tambor. Pode ter pessoas racistas, o racismo religioso, mas ele não vai ter vergonha de mostrar do que gosta”, finaliza.

Foto de capa: Victória Lôbo.

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