Etnocídio e negação de direitos: os impactos do fechamento de escolas rurais em comunidades quilombolas

14 escolas municipais desativadas desde 2018. Diversos quilombos sem direito à educação nos seus territórios. Histórias, vozes e reivindicações daqueles que resistem na zona rural da terceira maior cidade da Bahia.

O caminho até as escolas desativadas

Em setembro de 2023, o Conquista Repórter visitou 11 dos mais de 30 quilombos de Vitória da Conquista, terceira maior cidade da Bahia, localizada a 518 quilômetros da capital do estado, Salvador. Com cerca de 370 mil habitantes, o município possui a 10ª maior população quilombola do país em números absolutos, de acordo com o Censo Demográfico 2022, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Durante um mês, nossa equipe realizou viagens até a zona rural para conversar com aqueles que, diariamente, se organizam para reivindicar direitos básicos, como o acesso à educação em seus territórios. Uma pergunta motivou as incursões realizadas para esta reportagem: quais os impactos do fechamento de escolas quilombolas na cultura, memória e identidade étnica de remanescentes de quilombos localizados em áreas rurais? 

Há alguns anos esse questionamento está presente nas reuniões de pauta do Conquista Repórter. Mas as respostas só viriam quando tivéssemos condições materiais de chegar até os protagonistas dessa história de descaso e exclusão. Então, submetemos a proposta ao 5º Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação), lançado em parceria com a Fundação Itaú. A pauta foi selecionada e isso significou, entre outros aspectos, o apoio financeiro necessário para a produção da reportagem.

A partir desta investigação, descobrimos que, entre um total de 26 escolas quilombolas, ao menos 14 foram desativadas, desde 2018, pela Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista. Essas instituições atendiam alunos do Ensino Fundamental I (1º ao 4º ano). A reportagem também apurou que a maioria dos fechamentos ocorreu sem aviso prévio ou qualquer tentativa de diálogo com os moradores e moradoras das comunidades quilombolas nas quais as unidades de ensino funcionavam.

O caminho até o número de escolas desativadas nos mostrou que esse é um assunto propositalmente “esquecido”. Dados obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação) junto à Secretaria Municipal de Educação (SMED) não deixaram claro o ano em que cada instituição de ensino foi fechada. Mesmo após a reportagem entrar com recurso no pedido de informação, o órgão não forneceu aquilo que foi solicitado.  

Diante disso, foi necessário fazer um cruzamento entre diferentes fontes e documentos. Utilizamos como base um levantamento realizado pelo Conselho Quilombola do Sudoeste Baiano, além das informações coletadas via LAI e uma pesquisa sobre o fechamento de escolas do campo desenvolvida pela professora Vanessa Costa dos Santos, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Os depoimentos de moradores dos quilombos visitados também nos ajudaram a montar esse quebra-cabeça.

Além de mostrar quais os impactos do fechamento de escolas quilombolas na cultura, memória e identidade étnica de remanescentes de quilombos, este especial multimídia irá contar casos que evidenciam o abandono dessa população pelo Poder Público. São histórias que nos marcaram durante o processo de apuração. 

São as narrativas de Vitória Fernandes Marinho, que denuncia o fechamento de uma escola completamente reformada, em Cachoeira dos Porcos; de moradores dos quilombos de Sinzoca e de Manoel Antônio que, sem casas para morar, utilizam as instituições desativadas como residência por quase dois anos; da sede da associação de agricultores familiares de Lagoa de Maria Clemência, que se tornou uma sala de aula improvisada para crianças. São histórias que precisam ser contadas.

“Sem justificativa, sem aviso prévio”: o antes, o durante e o depois do fechamento de escolas nos quilombos

“Eles simplesmente desativaram a escola, não comunicaram a comunidade”. A frase é de Magna Novais de Oliveira, de 48 anos, que conversou com o Conquista Repórter na sala de sua casa, no quilombo do Sinzoca, situado no distrito de José Gonçalves, zona rural de Vitória da Conquista. Ela é agente comunitária de saúde e também é mãe de Bruna, uma jovem de 24 anos que cursa Psicologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Quando criança, Bruna estudou na Escola Municipal Inocêncio Santos, que funcionava na própria comunidade onde a família reside. Mas assim como outras 13 instituições de ensino localizadas em quilombos do município, o colégio foi desativado, deixando dezenas de crianças sem o direito à educação em seu território.

No Sinzoca, a escola foi fechada em 2018. Um ano depois, no quilombo de Cachoeira dos Porcos, no Distrito do Iguá, foi a vez da Escola Municipal Juvêncio Rocha ser alvo de um possível fechamento. “A gente fez manifestação, veio polícia, veio sindicato. Fechamos a estrada do Rancho Alegre até Cachoeira, aí pronto, pararam com isso de querer fechar a escola”, conta Vitória Fernandes Marinho, coordenadora da associação de agricultores familiares da comunidade remanescente de quilombo.

Mas a mobilização dos moradores de Cachoeira dos Porcos, naquele ano, não foi suficiente para manter de pé o que Vitória classifica como “patrimônio da comunidade”. Três anos depois, em 2022, as portas da escola foram fechadas. “A desculpa era que queriam acabar com as classes multisseriadas (onde alunos de idades e níveis educacionais diferentes são orientados pelo mesmo professor ou professora). Mas se o objetivo era esse, bastava construir mais salas”, diz.

A primeira tentativa de fechar a escola de Cachoeira dos Porcos aconteceu em 2019.

No quilombo de Lagoa dos Patos, certificado pela Fundação Palmares em 2006, o cenário não foi diferente. No ano de 2020, a Escola Municipal Joaquim Manoel Macedo, que atendia alunos do Ensino Fundamental I (1º ao 4º ano), deixou de ser um espaço de aprendizado para as crianças da comunidade. Hoje quem passa em frente ao prédio só vê portas trancadas por grades e cadeados. 

“Eles alegaram que tínhamos poucos alunos, mas na realidade não existe isso. Nós temos o direito de ter uma escola funcionando na comunidade”, afirma Maria Aparecida Souza, coordenadora da associação de Lagoa dos Patos e tesoureira do Conselho Quilombola do Sudoeste Baiano. Quando se refere a “eles”, a líder quilombola, assim como Magna e Vitória, fazem menção à Secretaria Municipal de Educação de Vitória da Conquista (SMED). É esse o órgão responsável por planejar, coordenar e executar a política educacional do município.

A falta de diálogo da SMED com as comunidades quilombolas é algo que se repete em todas as histórias ouvidas pelo Conquista Repórter. O consenso é que foram tomadas decisões unilaterais, sem levar em conta as considerações dos moradores dos territórios, mesmo quando eles protestaram ou buscaram respostas junto à secretaria. A postura da gestão municipal também vai na contramão do que prevê a Lei 12.960, de março de 2014.

Prefeita Sheila Lemos e secretário de Educação, Edgard Larry, em visita a obras em escolas na zona rural, em maio de 2022. Foto: Secom/PMVC.

De acordo com a legislação, o fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas, deve ser precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, “que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar”. Mas não houve nada disso. “Os direitos das nossas crianças estão sendo desrespeitados. Se a escola é numa comunidade quilombola, a criança é quilombola, ela tem que continuar no seu lugar”, ressalta Vitória Marinho, de Cachoeira dos Porcos.

Cultura, identidade e pertencimento

Quando uma criança quilombola é retirada da sua comunidade de origem para ser educada em outra localidade, ela perde uma referência importante para sua formação humana e cidadã. “O que se perde é a identidade histórica. E os professores que estão nessa outra escola [fora do quilombo], normalmente não têm esse conhecimento. Para eles saberem que a criança é pertencente a uma comunidade quilombola, ela tem que falar: eu sou. E muitas vezes por medo do preconceito, do racismo, da exclusão, ela se priva de falar”, relata Dhovana Rosa de Jesus, liderança quilombola e integrante do Movimento Negro Unificado (MNU).

A jovem é estudante de Pedagogia na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista. Mas antes de ingressar no ensino superior, foi aluna na Escola Municipal Inocêncio Santos, desativada em 2018 no quilombo do Sinzoca. Quando o colégio deixou de existir, Dhovana já não estudava mais lá. Ainda assim, sentiu a perda desse patrimônio onde vivenciou aprendizados sobre si mesma e sobre a cultura dos seus ancestrais. 

Ao relembrar seus dias na escola e as memórias da infância, a líder quilombola destaca um evento que era conhecido como “Semana Cultural”. “Era um resgate muito grande, de voltar a sentir o batuque. Muitos não entendem o que sentimos quando a gente escuta um samba de roda. É como se ele batesse lá no fundo da nossa alma. E eles [os professores e a semana cultural] trouxeram isso pra gente. A vontade de descobrir a cultura, o porquê do nome da nossa comunidade, o desejo de lutar pelo que é nosso”, explica. 

Dhovana é mãe de Arthur Gabriel, 7 anos, que não consegue estudar dentro do seu quilombo.

O projeto foi criado por um professor chamado Eugênio, e envolvia alunos, mães, pais, além de movimentos sociais. Era uma celebração da história e cultura afro-brasileira. Capoeira, samba de roda, peças teatrais que retratavam as fugas das pessoas negras escravizadas, contos sobre os orixás, comidas tradicionais. Tudo isso estava presente para estimular as crianças e suas famílias a se conectarem com suas raízes e suas origens. 

Dhovana conta que, através desse projeto, ela pôde aprender o porquê da relação entre os santos católicos e os orixás. “Foi aí que eu descobri que essa troca dos nomes [das divindades] acontecia para que a gente pudesse fazer os cultos religiosos sem que o senhor [de engenho] castigasse todo mundo”, afirma. No sincretismo religioso, Ogum, por exemplo, está associado a São Jorge. Segundo a historiografia, “trocar” os nomes era uma forma das pessoas escravizadas continuarem realizando seus rituais sem perseguições.

A agente comunitária de saúde Magna Novais de Oliveira também tem boas recordações da Semana Cultural. Como mãe de uma ex-aluna da escola, ela participava ativamente do evento. Na entrevista ao Conquista Repórter, ela contou sobre a tradição do pilão de aroeira, que fazia parte da programação. “Tinha o pilão e uma torradeira de café. Uma pessoa sentava para torrar o café e os outros iam cantando cânticos. A gente já levou esse pilão pra Conquista e fizemos apresentações com outras comunidades. Teve até um prêmio. Na época ganhamos 500 reais e mais uma TV para a escola”, diz.

No quintal de sua casa, no quilombo do Sinzoca, Magna guarda o pilão de aroeira.

Magna conheceu a história por trás do pilão através de seus avós. Segundo os relatos dos mais velhos, por conta do trabalho pesado e da rotina cansativa, os trabalhadores criavam cânticos “para desfazer da tristeza”. “Enquanto estavam pilando milho ou alguma outra coisa, eles cantavam, porque pra eles era um motivo de alegria”, explica. Numa tentativa de manter viva a tradição, ela compartilhou o que aprendeu com seus antepassados com a sua filha, Bruna.

“Pra mim é muito triste [ver a escola fechada] porque acaba morrendo um pouquinho de tudo, da cultura, da educação. Infelizmente as crianças de hoje não têm a oportunidade de ter esse conhecimento [sobre sua comunidade] porque elas estão em outra escola, com outras crianças que não são quilombolas”, afirma a estudante de Psicologia.

Uma das crianças que hoje não tem a oportunidade de estudar dentro do seu quilombo é Arthur Gabriel, de 7 anos, filho de Dhovana. Ele está no Ensino Fundamental I e frequenta a escola no povoado da Roseira. “Eu queria muito que ele vivesse uma semana cultural. É triste ver meu filho querer falar que é de uma comunidade quilombola e ser proibido de fazer isso. Eu vejo como as pessoas olham pra gente quando ele afirma isso. E eu sempre digo pra ele: fale, grite, agradeça o lugar de onde você veio e respeite suas raízes”, conta a militante do Movimento Negro Unificado (MNU).

A educação escolar quilombola

Aos 26 anos, Dhovana tem muito orgulho do lugar de onde veio, o quilombo do Sinzoca. A Escola Municipal Inocêncio Santos, onde estudou e pôde se compreender enquanto mulher negra, é um exemplo de como a educação escolar quilombola é possível e necessária. Mas essa é umas das exceções dentro de Vitória da Conquista. Segundo a professora Niltânia Brito Oliveira, que atua na rede municipal de ensino há 30 anos, ainda estamos distantes de ter escolas que de fato aplicam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.

Essas diretrizes são definidas por uma resolução do Conselho Nacional de Educação, publicada em novembro de 2012. Além disso, um importante instrumento legal para a construção da educação escolar quilombola é a Lei 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da educação básica em todo o país.

Em Vitória da Conquista, para atender a política pública exigida pela lei federal, foi aprovada uma resolução pelo Conselho Municipal de Educação, que criou a disciplina História e Cultura Africana e Afro-Brasileira para compor o currículo das escolas do município.

Entre os princípios previstos na resolução de 2012 estão o respeito e o reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira como elementos estruturantes do processo civilizatório nacional. Foram esses aspectos que Niltânia encontrou na escola do Sinzoca, enquanto realizava seu trabalho de mestrado, no qual pesquisou a política da educação escolar quilombola em Vitória da Conquista.

Acervo da Kilombeco, biblioteca comunitária do Beco de Vó Dôla, quilombo urbano de Vitória da Conquista.

De acordo com a pesquisadora, naquele ambiente escolar, o professor mostrava aos estudantes a história do povo negro a partir dos reis e rainhas de África, para só depois trazer à tona o processo de escravização. “Nós precisamos ampliar isso para todas as escolas que recebem os nossos alunos quilombolas. Você não pode construir uma história negando outra. É preciso que ela seja contada em todas as suas vertentes”, destaca.

Com a rara exceção da escola do quilombo do Sinzoca, durante sua pesquisa, Niltânia percebeu que não existe, em Conquista, a implementação de um currículo adequado às especificidades das comunidades quilombolas. “Os professores, no intuito de fazer um trabalho, mas sem nenhuma formação específica, reforçavam mais preconceito do que trabalhavam a desconstrução desse racismo”, afirma.

Essa falta de um olhar específico para a educação escolar quilombola fica evidente na prática. De acordo com Dhovana e Bruna, que estudaram na escola do Sinzoca, quando outros professores assumiram as turmas na comunidade, alguns não quiseram realizar a semana cultural. “As diretrizes orientam que os profissionais sejam preferencialmente pessoas que compõem aquele território quilombola. Por quê? Porque conhecem as tradições, a história, sabem quem são as pessoas que lá estão, sabem as especificidades, as necessidades”, explica Niltânia Brito Oliveira.

Como resultado da sua pesquisa, que abrangeu o período de 2012 a 2017, a docente constatou que, entre os 82 educadores que atuavam em um total 25 escolas nos quilombos conquistenses, apenas 20% eram oriundos das comunidades. Quem vive nesses territórios sente falta de professores que “falem a sua língua”, como destaca o agricultor e líder comunitário Valdenicio Gonçalves, morador do Oiteiro.

Para Niltânia, esses dados e a realidade dentro dos quilombos mostra que há uma negação da política que rege a educação escolar quilombola. “Em Vitória da Conquista, nós tivemos um avanço, de 2005 a 2011, um trabalho efetivo nessa perspectiva de pensar o projeto pedagógico específico para as comunidades quilombolas, mas de lá para cá, infelizmente, vemos uma descontinuidade desse processo”, destaca a professora.

A negação dessa política significa que não basta existir uma escola dentro da comunidade quilombola, é preciso que a instituição de fato aplique um currículo que trabalhe de maneira antirracista a história e cultura afro-brasileira. Para Flávio Passos, doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), a educação escolar quilombola se constrói a partir do diálogo entre diversos elementos. 

“É uma costura bem feita que exige investimento, formação dos professores, e uma desconstrução da perspectiva colonial e racista. A maioria dos professores que vão para essas comunidades moram na cidade, levam seus valores para dentro da sala de aula e desdenham daquilo que é a riqueza da comunidade quilombola”, afirma Passos. Mas ainda assim, não há como ignorar a importância da existência de uma escola dentro de um quilombo. “Fechar uma escola é um projeto de genocídio”, complementa. 

Retrocesso e negação de direitos

De acordo com levantamento da 2ª Regional da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA), realizado em 2022, 93% dos alunos quilombolas não estudam em suas próprias comunidades em Vitória da Conquista. Apenas 7% dos estudantes têm acesso ao ensino no território onde vivem. Segundo Domingos Lemos, presidente do Conselho Quilombola do Sudoeste Baiano, a principal queixa das populações quilombolas nos últimos anos tem sido justamente o fechamento de escolas. 

Domingos conta que, a partir de 2018, houve uma intensificação do processo de desativação de escolas, numa ação que ele chama de “extermínio dos direitos e das tradições dos povos quilombolas”. Além disso, no mesmo período, foram encerradas as atividades do núcleo de diversidade até então existente dentro da Secretaria Municipal de Educação (SMED).

Domingos Lemos é natural do quilombo de São Joaquim do Sertão.

A professora Niltânia Brito participou da formatação desse núcleo, em 2005. O setor era responsável por pensar a pedagogia voltada para a educação do campo e para a educação quilombola. Naquela época, segundo a pesquisadora, junto à SMED, foi possível conquistar muitos avanços para a política educacional do município. Um ano antes, havia sido iniciado o processo de reconhecimento e certificação quilombola em Vitória da Conquista, a partir do programa Brasil Quilombola, instituído pelo Governo Federal em 2004.

“Esse núcleo oferecia o suporte pedagógico até para que os professores pudessem estar colocando as suas demandas, as suas necessidades, aquilo que eles precisavam de material específico para trabalhar dentro das escolas”, diz Niltânia. Ela explica que atualmente o núcleo está sem coordenação. “Me parece que a gente volta lá no início de tudo. Depois de vinte anos [desde a Lei 10.639/2003], ainda temos que dizer que muita coisa parou no caminho, infelizmente”, ressalta.

Em 2023, durante o 9º Encontro das Comunidades Quilombolas do Sudoeste Baiano, realizado em Vitória da Conquista, os 20 anos do Decreto 4887/2003 foi um dos temas discutidos na programação do evento. A normativa regulamenta a certificação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos no Brasil.

Para a educadora, o que acontece em Vitória da Conquista se reflete em todo o país, quando o assunto é o apagamento da história da população negra e quilombola. “Nós temos dois projetos em jogo, o da classe trabalhadora e o da elite. Tudo o que está sendo pensado é para descaracterizar a educação quilombola, para que se possa dar notoriedade para o projeto de branqueamento, que vai simplesmente fazer com que os sujeitos quilombolas percam a oportunidade de fortalecer ainda mais as suas referências, as suas existências enquanto sujeitos”, destaca.

Os obstáculos e dificuldades

Além dos impactos na cultura e identidade étnica, o fechamento de escolas nos quilombos traz outras consequências, como a dificuldade de deslocamento até os colégios localizados fora das comunidades quilombolas. No Sinzoca, no Distrito de José Gonçalves, após a desativação da Escola Municipal Inocêncio Santos, os alunos foram transferidos para uma unidade no Povoado da Roseira. Mas em períodos de chuva, o transporte até o novo local de estudo das crianças é inviável.

“Quando chove, a gente não consegue sair daqui. Já ficamos ilhados por muito tempo. Nesse período de chuva o carro nem entra nem sai da comunidade, então, os meninos já ficaram sem estudar por muitos dias”, conta a agente de saúde Magna Novais de Oliveira. Para chegar até o Sinzoca, é preciso atravessar uma estrada de chão muito estreita, quase que escondida pela vegetação presente em seu entorno.

Estrada de chão em frente à casa de Magna, no quilombo do Sinzoca.

Poço de Aninha, Manoel Antônio e Taboa são outros quilombos conquistenses por onde o transporte escolar municipal não passa, devido às condições das estradas. “Temos crianças de cinco anos que precisam andar 1h para chegar no ponto de ônibus. Tem uma família que, quando chove, os meninos atravessam rio, passam por dentro de carreiro no mato”, revela Ramônica Mendonça, líder comunitária e secretária da Associação de Agricultores Familiares das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Oiteiro e Região.

Ramônica conta que duas unidades escolares foram fechadas em Oiteiro, que compreende sete comunidades quilombolas. Foram desativadas a Escola Municipal Teófilo Lemos, no quilombo de Teófilo Lemos, e a Escola Municipal Jorge Amado, no quilombo de Manoel Antônio. Todas as crianças, de ambos os colégios, foram transferidas para a Escola Municipal Alfredo Brito, localizada no quilombo de Lagoa de Maria Clemência. 

Inicialmente, segundo a líder comunitária, a Secretaria de Educação queria levar os estudantes para o Distrito do Pradoso, mas após muitos protestos de mães, a gestão voltou atrás na decisão e os alunos puderam permanecer pelo menos dentro do território quilombola.

Em Cachoeira dos Porcos, os alunos foram realocados para um colégio no Campo Formoso, após a desativação da Escola Municipal Juvêncio Rocha. O povoado está há 13,5km do quilombo. De acordo com Vitória Fernandes Marinho, liderança da comunidade, existe até dificuldade de comunicação com os responsáveis pelas crianças, caso ocorra alguma urgência. “Não tem sinal de telefone. Se o ônibus quebrar na estrada ou se um filho adoecer, não tem como os pais saberem e irem lá buscar”, explica.

Outro lado

O Conquista Repórter solicitou esclarecimentos da Secretaria Municipal de Educação de Vitória da Conquista (SMED), no dia 27 de novembro de 2023, a respeito dos fechamentos de escolas nos quilombos e do encerramento do núcleo de diversidade que existia dentro do órgão. Além disso, questionamos a entidade sobre as políticas existentes no município para a aplicação da Resolução CNE Nº 8/2012, que define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. 

A SMED não respondeu diretamente ao Conquista Repórter até a publicação desta série especial, mas no dia 10 de dezembro de 2023, num domingo, às 23h07, a Secretaria Municipal de Comunicação (Secom) enviou uma nota à imprensa via lista de transmissão no WhatsApp. Na mensagem, o órgão afirmou que “tem feito importantes investimentos nas escolas quilombolas e nas escolas que atendem alunos quilombolas”.

Por meio de nota, a gestão Sheila Lemos (UB) informou que atualmente existem 12 escolas em comunidades quilombolas, conforme apurou esta reportagem, e duas sendo estruturadas para atender a educação quilombola, a Escola Municipal Otaviano Salgado, no Povoado de Campo Formoso, e a Escola Municipal Antônia Cavalcanti e Silva, situada na zona urbana do município.

Além disso, o órgão responsável por gerir a educação em Vitória da Conquista justificou alguns fechamentos, afirmando que “as atividades foram suspensas por falta de alunos”. Foram citadas as escolas Gustavo Alves da Silva, no Boqueirão, e Corredor do Rio Pardo, em Cachoeira do Rio Pardo. A SMED destacou ainda a inauguração da Escola Municipal Otaviano Salgado, a primeira com ensino em tempo integral na zona rural, prometendo que essa unidade “será transformada em polo de educação quilombola”. Segundo a nota, o ensino em tempo integral e as turmas organizadas de forma regular e por ano (sem serem multisseriadas) são “ganhos” para as comunidades.

A Secom enfatizou ainda que “se encontra em processo de construção uma proposta de trabalho, com aquisição de material didático específico, para ampliação do combate ao racismo e valorização da cultura afro-brasileira e indígena”. Leia a nota na íntegra aqui.

A reportagem também buscou posicionamento do Conselho Municipal de Educação (CME), da Comissão de Educação da Câmara Municipal de Vitória da Conquista e do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA). 

O presidente da Comissão de Educação do Legislativo municipal, Valdemir Dias (PT), afirmou que está ciente dos fechamentos de escolas nos quilombos e que tem denunciado a questão no plenário da Câmara. “Estamos cobrando uma posição da SMED e do CME. Sou membro efetivo do Fórum Municipal de Educação e temos discutido essa pauta”, explicou. O vereador disse ainda que o fórum irá se reunir com o secretário da pasta, Edgard Larry, para solicitar explicações sobre as desativações. Além disso, ele informou que vem cobrando uma ação do Ministério Público

O CME não respondeu ao nosso questionamento. Já o MP-BA alegou que “não tem conhecimento dos fatos relatados e, por isso, não há procedimento abordando o assunto na instituição”. O ministério disse que enviará ofício à SMED solicitando informações sobre o cenário relatado na reportagem.

Em Cachoeira dos Porcos, escola quilombola foi fechada dois meses após reforma: “só fizeram jogar dinheiro fora”

Era quarta-feira e uma manhã de muito sol quando chegamos no Distrito de Iguá, na zona rural de Vitória da Conquista, a 35 quilômetros da sede do município. O ponto de encontro com nossa entrevistada era a Escola Municipal Juvêncio Rocha, localizada no quilombo de Cachoeira dos Porcos. Com os olhares voltados para o prédio, a primeira impressão era de que a estrutura estava bem conservada. As cores do mural pintado nas paredes do colégio eram fortes e vivas.

Tão logo nos recepcionou, a coordenadora da associação de agricultores familiares da comunidade remanescente de quilombo, Vitória Fernandes Marinho, explicou a situação: a renovação do espaço tinha acontecido há cerca de um ano, mas ainda assim, a instituição estava desativada. “Só fizeram a reforma para jogar dinheiro fora”, conta.

A escola, que atendia alunos do Ensino Fundamental I (1º ao 4º ano), foi desativada em 2022. A reforma aconteceu no mês de agosto daquele ano. Segundo Vitória, em outubro, as aulas retornaram e dois meses depois, em dezembro, as portas da instituição foram fechadas de vez. Enquanto as obras aconteciam, os alunos foram transferidos provisoriamente para a Escola Municipal São Vicente de Paulo, em Lagoa Formosa.

“Depois da renovação, o objetivo era que os alunos voltassem para Cachoeira dos Porcos, mas já estavam com o esquema todo armado. O plano era fechar a escola e levar os meninos para Campo Formoso, onde já estavam construindo”, explica a líder comunitária.

Após a desativação da Escola Municipal Juvêncio Rocha, os estudantes de Cachoeira dos Porcos foram transferidos para a Escola Municipal Otaviano Salgado, a primeira da zona rural com ensino em tempo integral.

Em fevereiro de 2023, a Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista inaugurou uma nova unidade de ensino no Povoado de Campo Formoso, a Escola Municipal Otaviano Salgado,a primeira da zona rural com ensino em tempo integral. O prédio já existia, mas foi ampliado para dispor de seis salas de aula, além de laboratório, auditório, cozinha e outros equipamentos. A obra custou mais de R$ 2,3 milhões.

Foi para lá que os estudantes de Cachoeira dos Porcos foram transferidos após a desativação da escola no quilombo. “A desculpa deles é que não tem aluno suficiente, mas tem sim, tenho aqui uma lista para comemoração de dia das crianças, e temos mais de 80 crianças. Disseram que ia ser mais gasto deixar os meninos aqui, mas eles têm verba para pagar ônibus e motorista. Isso é mais barato do que deixar as crianças aqui?”, questiona Vitória Marinho.

A reforma com dinheiro público

No site da Prefeitura Municipal, uma matéria, datada de 6 de maio de 2022, anuncia a visita da prefeita Sheila Lemos (UB) e do secretário de Educação, Edgard Larry, às escolas da zona rural que estavam em reforma. Uma dessas unidades era a Escola Municipal Juvêncio Rocha, de Cachoeira dos Porcos. No total, eram quatro instituições que estavam sendo completamente renovadas. O valor das construções era R$748.563,97.

A reforma incluiu a substituição dos telhados, a instalação de forro nas salas de aula e na cozinha, pintura nova, troca de vidros quebrados e até conserto da bomba do poço artesiano. Durante a visita do Conquista Repórter, Vitória nos mostrou ainda materiais didáticos lacrados. “Não teve inauguração nenhuma, justamente porque se tivesse, a comunidade ia participar. Foi tudo na calada”, destaca. 

De acordo com Albetânia Alves, 35 anos, após a renovação do espaço, as crianças voltaram a estudar na escola e encerraram o ano letivo de 2022. Em janeiro, quando começou a movimentação para as matrículas de 2023, as mães do quilombo, assim como ela própria, foram informadas de que os alunos até o 4º ano teriam que ser matriculados no colégio do Povoado de Campo Formoso. 

Atualmente, o prédio da Escola Municipal Juvêncio Rocha só é utilizado para reuniões e atividades da associação de agricultores familiares da comunidade. Depois do fechamento, os moradores conseguiram autorização junto à Secretaria Municipal de Educação (SMED) para ocupar o espaço. Mas a decisão de encerrar as aulas naquela instituição não foi revertida, mesmo após mobilização de mães e lideranças.

Prefeita Sheila Lemos, secretário de Educação, Edgard Larry, além de outras autoridades em visita à zona rural, em maio de 2022. Foto: SECOM/PMVC.

“A gente foi na secretaria com o Domingos, presidente do Conselho Quilombola do Sudoeste, mas não conseguimos, não resolvemos. Simplesmente chegaram e fecharam a escola. E ficou esse dinheiro jogado fora”, afirma Vitória Marinho.

O Conquista Repórter solicitou esclarecimentos da Secretaria Municipal de Educação, no dia 27 de novembro de 2023, via e-mail. Até a publicação desta matéria, não obtivemos resposta, mas em 10 de dezembro, num domingo, às 23h07, a Secretaria Municipal de Comunicação (Secom) enviou uma nota à imprensa via lista de transmissão no WhatsApp. 

Na mensagem, a Prefeitura de Vitória da Conquista afirmou que a escola Juvêncio Rocha foi reformada para o retorno às aulas presenciais porque “o prédio oferecia risco à integridade física das crianças e a Escola Municipal Otaviano Salgado ainda não estava pronta”. O órgão disse ainda que atualmente o prédio do colégio desativado vem sendo utilizado pela Secretaria Municipal de Saúde, Defesa Civil e comunidade, “complementando os esforços da administração municipal em assegurar aos remanescentes quilombolas acesso aos direitos que lhe são garantidos”.

Escolas desativadas se tornam casas para pessoas desabrigadas pelas chuvas em quilombos conquistenses

Casas destruídas, famílias desabrigadas, pessoas e animais arrastados pela força da água. Foi esse o cenário visto em boa parte da Bahia em dezembro de 2021. Naquele mês, o estado registrou o maior volume de chuvas dos últimos 60 anos, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Em Vitória da Conquista, principalmente na zona rural do município, as consequências dos temporais podem ser vistas ainda nos dias atuais, quase dois anos após as enchentes. Nos quilombos de Manoel Antônio e Sinzoca, famílias desabrigadas pelas chuvas residem em escolas desativadas. Assim, o que era para ser uma situação provisória, se tornou permanente. 

Foi a líder comunitária Ramônica Mendonça quem contou ao Conquista Repórter sobre a moradia “temporária” de uma família de Manoel Antônio, quilombo localizado há cerca de 30 quilômetros da zona urbana do município. “Eles residiam aqui próximo à escola e tiveram a casa destruída pelas chuvas. Desde então, foram realocados para uma das salas do colégio que está desativado. Teve um encontro com o pessoal da Defesa Civil, atestaram a situação deles, mas até agora nada foi feito”, explica. 

O agricultor Welton dos Anjos era um dos moradores da casa que foi abaixo após os fortes temporais de 2021. Quando a família de 11 pessoas ficou desalojada, uma parte teve que se abrigar em casas de parentes e a outra metade, sem ter para onde ir, foi instalada na Escola Municipal Jorge Amado, unidade de ensino desativada em 2019. 

Três pessoas vivem em uma sala da Escola Municipal Jorge Amado, no quilombo de Manoel Antônio.

Quem atualmente vive na pequena sala da escola é a enteada de Welton, de 19 anos, junto com o marido e o filho. De acordo com Ramônica, a jovem teve a saúde mental afetada por toda a situação. “Ela passou mal, foi levada ao hospital, passou por uma bateria de exames e os médicos atestaram problemas psicológicos. É impossível a pessoa ficar bem assim. Ela precisa de condições dignas, casa, comida, educação, saneamento básico”, afirma a líder comunitária.

No Sinzoca, no prédio onde funcionava a Escola Municipal Inocêncio Santos, uma mulher e seu filho estão alojados desde as enchentes do final de 2021. Eles também perderam a casa onde moravam. De acordo com Magna Novais de Oliveira, agente comunitária de saúde, no período dos temporais, os moradores da comunidade ficaram completamente ilhados. “Não conseguíamos sair. As estradas acabaram. Para chegar alimento, a Defesa Civil tinha que trazer nos jipes. Ficamos por três meses nessa situação”, conta.

Escola Municipal Inocêncio Santos, desativada em 2018, no quilombo do Sinzoca.

No dia 31 de dezembro de 2021, a Defesa Civil Municipal divulgou que 114 residências tinham sido atingidas total ou parcialmente na zona rural de Vitória da Conquista. Além disso, o órgão anunciou que foram cadastradas 112 famílias para acesso aos serviços de saúde e assistência social, sendo 94 delas acolhidas em abrigos montados pela Prefeitura para receber orientação sobre a atualização e/ou cadastro para programas federais.

O Conquista Repórter solicitou esclarecimentos da gestão municipal, por meio da Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Vitória da Conquista, mas até a publicação desta matéria, não obtivemos resposta. 

Em Lagoa de Maria Clemência, crianças estudam em sala de aula improvisada na sede da associação do quilombo

“Eles trouxeram as crianças para cá sem ter lugar para elas ficarem”, afirma Janete Viana, moradora de Lagoa de Maria Clemência, quilombo de Vitória da Conquista certificado pela Fundação Palmares em 2006. A Escola Municipal Alfredo Brito, situada na comunidade, foi o local escolhido pela Secretaria de Educação (SMED) para receber os alunos que foram retirados de outros dois colégios desativados na região. Sem um espaço adequado para abrigar todos os estudantes, a sede da associação de agricultores se tornou uma sala de aula improvisada. “Estão aqui porque não tem outro jeito”, destaca a líder quilombola.

Foi nesse espaço que nossa reportagem conversou com cerca de 10 pessoas do quilombo. As paredes são de um tom acinzentado e cobertas por colagens que demonstram que aquele é um lugar de aprendizado. Cadeiras escolares tomam conta do espaço, além de um quadro branco. Todo o ambiente foi adaptado para funcionar como uma sala de aula, e o que era para ser uma situação temporária, se tornou permanente. Há dois anos o prédio tem sido uma escola para parte dos alunos da Escola Municipal Alfredo Brito.

De acordo com os relatos ouvidos pelo Conquista Repórter, os próprios moradores de Lagoa de Maria Clemência sugeriram que a sede da associação funcionasse como uma sala de aula provisória. A ideia surgiu porque eles tinham medo de que a única escola de todo o território fosse desativada. “A ideia inicial era fechar todas as escolas daqui [o território de Lagoa de Maria Clemência abarca 8 quilombos] e ir todo mundo para o Pradoso. Não fechou porque nós não deixamos. Uma comissão daqui foi até a Secretaria [Municipal de Educação] para não deixar fechar”, conta a professora Elenilda Gonçalves.

Com medo de que a única escola no quilombo fosse fechada, os próprios moradores de Lagoa de Maria Clemência sugeriram que a sede da associação funcionasse como uma sala de aula provisória.

Depois de uma mobilização, principalmente de mães de alunos, a comunidade conseguiu impedir o fechamento do colégio. Mas agora o que eles aguardam é que a gestão municipal construa mais uma sala de aula na Escola Municipal Alfredo Brito para que as crianças possam estudar em um local adequado. “Vieram aqui, mediram, mas até agora nada. Só promessas”, destaca Janete, moradora e ex-coordenadora da associação do quilombo.

Jocélia de Jesus Santos, mãe de um dos alunos da comunidade, ressalta que o espaço da associação é muito quente para as crianças. Além disso, ela conta que os alunos correm perigo ao ter que atravessar a rua até o prédio principal da escola na hora da merenda. “Mesmo com a professora junto deles, nem todos obedecem, aí uns saem correndo, tem muitos passando. Se você observar aqui é ladeira, toda hora tem um [veículo] descendo em alta velocidade”, diz.

A Escola Municipal Alfredo Brito, em Lagoa de Maria Clemência, atende alunos que estudavam na Escola Municipal Jorge Amado e na Escola Municipal Teófilo Lemos, ambas desativadas no mesmo território.

Além do impacto na cultura e identidade étnica de crianças quilombolas, o fechamento de escolas tem causado a superlotação das instituições que permanecem ativas. No caso de Lagoa de Maria Clemência, o colégio atende alunos que estudavam na Escola Municipal Jorge Amado e na Escola Municipal Teófilo Lemos, ambas desativadas no mesmo território. 

O Conquista Repórter solicitou esclarecimentos da Secretaria Municipal de Educação, mas até a publicação desta matéria, não obtivemos resposta. 

“A mesma educação que fortalece o racismo pode ser uma educação pautada no respeito e na diversidade”, diz pesquisadora Niltânia Brito

Professora da rede municipal de ensino há 30 anos, Niltânia Brito Oliveira iniciou sua trajetória profissional em uma escola no quilombo do Boqueirão, um dos mais de 30 certificados pela Fundação Cultural Palmares em Vitória da Conquista. A partir dessa experiência, ela passou a se interessar cada vez mais pelas temáticas das relações étnico-raciais, da educação escolar quilombola e da cultura afro-brasileira.

A pesquisadora foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) na terceira maior cidade da Bahia. Ao lado de outros profissionais da educação, iniciou pesquisas na área da educação escolar quilombola e participou, em 2005, da implementação de um núcleo de diversidade dentro da Secretaria Municipal de Educação (SMED). 

“Nós iniciamos esse trabalho para que as pessoas pudessem compreender que em Vitória da Conquista não só tem uma elite branca. Temos também populações negras, que estão alocadas nos bairros periféricos, mas que precisam ganhar seu espaço dentro da sociedade porque constroem essa sociedade enquanto classe trabalhadora”, ressalta.

Niltânia Brito Oliveira foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) em Vitória da Conquista.

Niltânia é pedagoga, graduada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e mestre em Educação pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Em sua dissertação, pesquisou a política de educação escolar quilombola em Vitória da Conquista, no período de 2012 a 2017. 

Na conversa com o Conquista Repórter, a professora fala sobre o impacto de retirar alunos de escolas nos quilombos e transferi-los para instituições fora dos seus locais de origem. Além disso, destaca a importância de uma educação antirracista. Confira abaixo um trecho da entrevista concedida pela pesquisadora. 

CR: O que as diretrizes nacionais para a educação escolar quilombola prevêem em relação à escolha dos profissionais que vão atuar dentro dos quilombos?

Niltânia Brito: As diretrizes orientam que esses profissionais sejam preferencialmente as pessoas que compõem aquele território quilombola. Por quê? Porque conhecem as tradições, a história, as pessoas que lá estão, as suas especificidades e necessidades. Na minha pesquisa de mestrado, eu pude perceber e constatar, através dos dados coletados, que dentro do quantitativo de 25 escolas que eu pesquisei, nós tínhamos 82 professores atuando nas comunidades quilombolas. Desses 82, apenas 20% eram dos quilombos. Além disso, 80% não eram efetivos e eram professores contratados sem nenhum vínculo com as questões étnico-raciais. Então, nós podemos perceber que existe uma negação da política no dia a dia dessas comunidades. Isso acaba sendo um problema historicamente crônico. O negro já se insere tardiamente no processo educacional. Tínhamos um decreto de 1850 já dizendo que o negro não poderia estar dentro dos bancos escolares, e caso estivesse, teria que ser à noite. Por isso estamos tratando de uma construção histórica. E a educação quilombola surge como um enfrentamento a essa construção histórica de negação de direitos.

CR: Na sua visão, qual o impacto de retirar alunos de escolas nos quilombos e transferi-los para instituições fora dos seus locais de origem? Essas escolas que recebem os alunos sabem que eles são quilombolas?

Niltânia Brito: Elas sabem, mas negam, invisibilizam e não trazem a temática. E quando pensam em fazer algo é um trabalho pautado em uma data específica, que é o 20 de novembro [Dia de Zumbi e da Consciência Negra]. Mas na verdade, nós sabemos que esse debate não pode ser pontual. O trabalho das relações étnico-raciais, da educação quilombola e da educação do campo precisa ser contínuo. Não adianta você tratar da temática em datas específicas, porque no máximo, o que você vai fazer é folclorizar uma questão que é tão séria no nosso país: o racismo estrutural. O Silvio de Almeida conseguiu traduzir isso muito bem na sua pesquisa. O racismo estrutural toma conta de toda uma estrutura, e a educação é uma estrutura que fortalece o racismo. Mas essa mesma educação que fortalece o racismo pode ser uma outra educação, aquela pautada no respeito, na diversidade, no reconhecimento dos direitos de todos os sujeitos.

CR: Em Vitória da Conquista, há uma crescente do fechamento de escolas do campo, de maneira geral, e também daquelas situadas em comunidades quilombolas. Como a senhora analisa esse cenário dentro do município?

Niltânia Brito: A educação é um processo que fortalece a identidade da criança, fortalece a sua capacidade de intervenção no mundo. Quando você tira isso, tira essa criança do seu espaço, o impacto é formar pessoas simplesmente para atender as necessidades do mercado de trabalho e do capital. É uma negação de direitos que vai levando cada vez mais os sujeitos quilombolas para uma invisibilidade. Ao meu ver, é uma tentativa de dizimar toda a história dos povos quilombolas através da educação. Esse cenário é totalmente negativo porque isso nega o que é um direito inalienável, o direito à educação e, preferencialmente, à educação dentro do espaço onde você reside e tem seus laços familiares e na história. 

CR: Qual a importância da existência de uma escola dentro do quilombo?

Niltânia Brito: Além da garantia de direitos, existe o aspecto da valorização da própria comunidade, porque uma escola dentro de um quilombo não é só uma escola, é um espaço onde as pessoas se reúnem, confraternizam, onde elas buscam essa coletividade que é tão característica para as pessoas dentro de um quilombo. Na verdade, quando a escola está em funcionamento modifica todo o território. Então, é uma importância para além das condições materiais, mas também simbólica da memória, da ancestralidade e de garantir que esse espaço vai ser um lugar garantidor dos momentos de coletividade, de continuidade, dessa acolhida que é bem presente dentro dos quilombos. 

A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 5º Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação), lançado em parceria com a Fundação Itaú.

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Reportagem: Karina Costa

Fotos: Afonso Ribas, Karina Costa e Victória Lôbo

Vídeos: Victória Lôbo

Revisão: Afonso Ribas

Programação: FontCode Soluções em Tecnologia

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