Luiz D’Luzia: “Nós existimos e temos direitos assim como todo mundo”
Por Karina Costa - 13 de junho de 2022
Militante pelos direitos da comunidade LGBTQIAP+, o ator e professor conquistense afirma que a organização coletiva é fundamental para buscar medidas como a criação do Conselho Municipal de Diversidade Sexual e de Gênero.
Nascido em Vitória da Conquista*, Wilson Granja é ator, professor e um apaixonado pela literatura e todas as formas de arte. Recentemente, adotou o nome artístico Luiz D’Luzia, uma homenagem à sua mãe. Ele é formado em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB), dá aulas de inglês online, atua como docente em uma escola pública e também exerce a função de ghost writer (escritor-fantasma). Além disso, se dedica à militância pelos direitos da comunidade LGBTQIAP+.
Em meio à pandemia da covid-19, no ano de 2020, enquanto fazia um curso virtual de formação política, Luiz teve a ideia de propor a criação de um Núcleo de Atenção à Comunidade LGBTQIAP+. O grupo, chamado de “Vagalumes”, surgiu com o intuito de cobrar políticas públicas voltadas para as pessoas LGBTQUIAP+ em Conquista. “É fundamental que a gente tenha um movimento social cobrando ações”, disse.
Para o artista e militante, a organização coletiva é essencial para buscar medidas como a aprovação do Projeto de Lei (PL) que dispõe sobre a implementação do Conselho Municipal de Diversidade Sexual e de Gênero. “Temos que ir até cada vereador e dizer: nós existimos, pagamos impostos e temos direitos assim como todo mundo. Precisamos de uma entidade para deliberar sobre as nossas questões”, afirmou. “Sou gay 24 horas por dia, 7 dias por semana, não posso esperar essa gestão terminar para pensar em políticas públicas que precisam acontecer”, complementou.
Em entrevista ao Conquista Repórter, Luiz falou sobre as dificuldades que enfrenta para manter as atividades do Núcleo Vagalumes, destacou a importância de agir coletivamente em prol dos direitos das pessoas LGBTQIAP+, e opinou sobre o sucateamento da cultura no município. Confira a seguir:
CR: O que te motivou a criar um Núcleo de Atenção à Comunidade LGBTQIAP+ em Vitória da Conquista após anos vivendo fora do município?
Luiz D’Luzia: Durante o ano de 2020, eu estava hospedado na casa da minha mãe, em Conquista, e comecei a fazer um curso online no Instituto Pensamentos e Ações para Defesa da Democracia (IPAD). O módulo final dessa formação política envolvia a criação de um núcleo local. Basicamente, você tinha que propor algo e iria receber toda a base e suporte para fazer aquele projeto acontecer. Tinha até um pequeno aporte financeiro para ajudar no início. A princípio, eu queria fazer algo relacionado à educação antirracista. Mas foi justamente durante a pandemia que comecei a buscar essa formação política, a pensar em me direcionar para a educação. Então, percebi que tudo era muito novo para mim, não me sentia pronto para propor algo nesse aspecto. Foi aí que eu tive outra ideia. Como eu já tinha atuado como voluntário na Casa 1, em São Paulo, um centro de cultura e acolhimento para pessoas LGBTQIAP+, e também, antes disso, em Brasília, numa ONG chamada Estruturação, me veio a ideia de propor a criação de um núcleo LGBT. Depois do surgimento da ideia, eu precisei buscar ajuda das pessoas porque, quando saí de Conquista, ainda não me reconhecia como homem gay. Na verdade, a coisa aconteceu para mim exatamente no ano em que me mudei para Brasília. Então eu não sabia dizer nada sobre a cena LGBT de Conquista. Voltava sempre para a cidade, uma ou duas vezes ao ano, mas saia muito pouco, vinha mais para estar com a família. Foi aí que me perguntei: “gente, como é a cena LGBT em Conquista?”. Mas como você descobre isso durante a pandemia, quando não acontece nada e os eventos estão suspensos? O que eu fiz foi procurar as pessoas para saber como era antes da pandemia. Existiam lugares LGBT? Comecei a dialogar com o pessoal e puxar os fios. Queria saber se já existia algum núcleo de atenção à comunidade em Conquista. Descobri o Coletivo Finas, das mulheres trans e travestis; o Grupo Safo, de Mãe Rosa, que abrange as mulheres lésbicas; o Coletivo iD, que é algo mais cultural; o Coletivo POC, voltado para o teatro. Então, eu fui descobrindo alguns núcleos e organizações, mas percebi uma dificuldade de encontro, sabe? LGBTQIAP+ é uma sigla que junta muita gente, mas os grupos pareciam isolados, sem diálogo entre eles. A minha ideia, com o Vagalumes, era fazer essa união acontecer, mas desde o princípio, sempre foi muito difícil promover o encontro e continua sendo.
CR: Em setembro de 2021, o Vagalumes estava se estabelecendo como uma associação, com cerca de 20 integrantes. O que mudou desde a organização inicial do grupo?
Luiz D’Luzia: Na verdade, nós tivemos uma desmobilização do núcleo. Num primeiro momento, a gente tinha um pequeno recurso do IPAD (Instituto Pensamentos e Ações para Defesa da Democracia) para fazer as mobilizações iniciais. Eu propus que nós usássemos esse dinheiro para formalizar o grupo, como uma associação. Pensei que poderíamos ter um CNPJ para, futuramente, formar parcerias e fazer inscrições em editais com o objetivo de arrecadar recursos para ações e projetos. Nós começamos esse processo, mas não conseguimos concluir a formalização. Isso porque o Vagalumes tinha como diretora executiva Gisberta Kali, uma mulher travesti que ainda não encaminhou a retificação da sua documentação. Quando chegamos no cartório, a pessoa falou assim: “ah, vocês colocaram todas as informações no gênero feminino e isso pode gerar um problema com a Receita Federal”. Nesse caso, a gente tinha que marcar um horário na Receita para tentar resolver a questão, mas naquela época, auge da pandemia da covid-19, estava super difícil agendar um momento. Então, essa ação foi sendo adiada, Gisberta teve alguns problemas de saúde e ficamos com a situação estagnada. Por outro lado, eu também comecei a me dedicar a outras demandas. Tentei deixar a coisa fluir sem a minha presença tão constante. Mas percebi que isso não acontecia, e é algo que me incomoda. É importante ter uma pessoa que mobilize, mas desde o início, expliquei para o pessoal: “não quero que o Vagalumes seja o grupo do Wilson. O núcleo precisa ser o mais horizontal possível. Todo mundo tem iniciativa”. E aí, quando eu precisei me afastar por questões pessoais, o coletivo foi se desmobilizando muito. E por que a existência de um grupo como o Vagalumes é importante? É fundamental que a gente tenha um movimento social cobrando ações da instituição, que no caso é a Prefeitura de Vitória da Conquista, através da coordenação de políticas LGBT. É essencial e funciona. Mesmo que, às vezes, haja um período de desmobilização por diferentes fatores, eu sempre faço o possível para estar presente nessas ações coletivas e incentivo outros a fazerem o mesmo.
CR: A Prefeitura de Vitória da Conquista propôs a criação do Conselho Municipal da Diversidade Sexual e de Gênero, através de um Projeto de Lei enviado à Câmara de Vereadores. Para você, o quão necessária é a existência dessa entidade no município? E como você acredita que o PL será recebido pelos parlamentares conquistenses, considerando que muitos já assumiram posicionamentos LGBTfóbicos durante o exercício Legislativo?
Luiz D’Luzia: Primeiro, é preciso esclarecer que o vereador Alexandre Xandó (PT) já havia indicado a criação do Conselho de Diversidade Sexual e de Gênero, no ano passado, e então a Prefeitura tomou essa posição de fazer o encaminhamento com um evento público. Não foi algo que partiu exatamente do Executivo. Porém, não deixo de considerar a criação do Conselho importante. Tenho dialogado com a Coordenação de Políticas LGBT, porque é a instância que existe e que pode realizar algumas ações, e percebo que muitas pessoas da comunidade LGBTQIAP+ têm resistência em estar próximo a esses órgãos por uma questão político-partidária. Eu entendo, mas acho que o Terceiro Setor precisa, em algum momento, estar acima disso para que as coisas aconteçam. “Ah, não vou para tal evento ou atividade porque é uma coordenação ligada à Prefeitura X”. Eu sou gay 24 horas por dia, 7 dias por semana, não posso esperar essa gestão terminar para pensar em ações e políticas públicas que precisam acontecer. A gestão eleita foi essa, a Câmara eleita foi essa, lidemos com isso. A criação do Conselho é importante. E assim, de fato, a gente já viu aquela votação ridícula da moção de repúdio à DC Comics por conta do superman gay. É vergonhoso. E aí você pensa: “ah, são essas mesmas pessoas que vão votar o PL”. Quando eu reflito sobre isso, vejo que o fato da proposta de criação do Conselho ter partido publicamente da Prefeitura é importante, principalmente porque essa base conservadora da Câmara apoia o Executivo Municipal. Então, já que é assim, vamos jogar o jogo. A gente precisa se unir e começar a cobrar. Bater na porta de cada vereador e falar: “você não é aliado da prefeita? Ela está propondo isso e daqui a pouco vai começar a votação. Você vai votar a favor, né?”. Esses caras não fazem lobby para tudo? A gente precisa se juntar e fazer o nosso lobby também. É justamente nesse momento que precisamos nos organizar coletivamente: unir Vagalumes, Coletivo Finas, Grupo Safo e todos os outros em uma única ação. Acho que temos que ir até cada vereador e dizer: “nós existimos, pagamos impostos e temos direitos assim como todo mundo. Precisamos de um Conselho para deliberar sobre as nossas questões. A prefeita encaminhou o PL e o presidente da Câmara estava lá ao lado dela. Podemos contar com o seu apoio?”. Se a resposta for não, vamos tentar o diálogo, perguntar a cada um: “por que não?”. Estar presente na Câmara enquanto o PL estiver sendo articulado e votado é fundamental. E esse é apenas um passo. Porque depois da aprovação, precisamos que o Conselho seja formado. O PL prevê uma entidade com 32 integrantes. Se a gente mal consegue juntar pessoas para formar um Núcleo de Atenção à Comunidade LGBTQIAP+, como vamos unir tanta gente para concretizar a criação do Conselho? É uma outra barreira que temos para superar. São diversas etapas que precisamos construir juntos para termos políticas públicas de diversidade sexual e de gênero na cidade.
CR: Além de ativista e militante pelas causas da comunidade LGBTQIAP+, você também é ator, portanto, integra a classe artística do município. Qual a sua avaliação sobre a maneira como a gestão da prefeita Sheila Lemos vem tratando as demandas do segmento cultural de Vitória da Conquista?
Luiz D’Luzia: Na realidade, existe um projeto, a nível federal, de sucateamento e desvalorização da cultura, como se fosse algo descartável e supérfluo. E Vitória da Conquista acaba sendo uma pequena amostra do que a gente vê em todo o país. A cultura só sobrevive no Brasil porque a galera é muito “raçuda”. Em 2020, quando eu entrei na Escola Livre de Teatro, em Santo André, no ABCD Paulista, percebi a mesma coisa: a tentativa de fazer a arte e a cultura deixarem de existir. E aqui, em Conquista, não é tão diferente. Por que o Teatro Carlos Jehovah não está aberto? Por que ninguém fala nada sobre os R$2 milhões que saíram da Cultura para a Mobilidade Urbana? Um dinheiro que foi transferido para manter a passagem de ônibus a R$2,00 e a Prefeitura ficar “bonita na foto”. Por que a Cultura está em uma secretaria que une lazer, turismo, esportes e várias outras áreas? Cadê o plano para a Cultura? Até agora não vi. Não existe estímulo para que os projetos culturais se desenvolvam, especialmente o teatro. É bizarro que a terceira maior cidade da Bahia, com mais de 300 mil habitantes, não tenha um festival de teatro. As pessoas acabam indo embora da cidade porque não veem perspectiva. Eu vejo grupos pequenos nascendo, mas ninguém oferece condições para que eles possam se desenvolver e formar outros artistas. Sou professor em colégio público. Eu vejo os alunos e penso: “essas pessoas não têm a oportunidade de serem expostas ao teatro”. Não existe escola de formação. Não há peças em cartaz com ingressos acessíveis, que poderiam acontecer no Teatro Carlos Jehovah. Às vezes, eu também penso que a solução pode não estar no poder público e nem no Terceiro Setor, mas em pequenas iniciativas pessoais. Tenho refletido sobre alugar uma sala e começar a oferecer aulas de teatro. Penso em algo que me daria um retorno financeiro mínimo, mas também fomentaria o sonho e a vontade das pessoas de fazer teatro. Então, na minha opinião, as políticas públicas para a cultura deveriam ter evoluído e não regredido. O que desejo, atualmente, é mobilizar a galera para fazer festivais de cenas curtas e outras ações culturais na rua. Acho que precisamos tentar fazer isso e continuar cobrando as instituições.
CR: Para você, qual a importância de discutir gênero e sexualidade nas escolas? Como a educação está relacionada ao respeito à diversidade?
Luiz D’Luzia: Para mim, a educação é um ponto central. Mas enquanto isso, temos pessoas querendo votar um Projeto de Lei (PL) para proibir a discussão sobre gênero em sala de aula. Como assim? As pessoas têm gênero, a língua tem gênero. Nós temos a língua portuguesa que impõe o masculino como superior. Se eu entrar em uma sala com 49 meninas, posso falar: “oi, meninas”. Mas se entrar 1 menino, eu preciso dizer: “oi, meninos”. O que isso cria na cabeça de uma menina, que cresceu sempre pensando que o masculino predomina? É uma questão que precisa ser discutida, mas não pode. Tem gente que me diz assim: “se você começar a discutir isso, daqui a pouco vai ser colocado para fora”. Falar de gênero em sala de aula? É proibido. Enquanto isso, você escuta meninos pequenos na escola fazendo “piadas” e chamando outros de “viadinho”. Nesses casos, é preciso fazer algo, mas como falar sobre isso sem correr o risco de, no dia seguinte, ter algum pai ou mãe “querendo a sua cabeça”? Eu já tive uma colega, em outra cidade, que foi perseguida porque propôs uma discussão sobre orientação sexual.
CR: Estamos no mês do Orgulho LGBTQIAP+. Na sua opinião, em que nível está Vitória da Conquista no que diz respeito a criação de políticas públicas e acolhimento para a comunidade?
Luiz D’Luzia: Eu vejo avanços, mas ainda de forma muito tímida. E também percebo que a população, em geral, está numa posição de “ah, não quero me envolver”. A gente escuta coisas do tipo: “tudo bem você ser LGBT, mas não precisa pegar na mão em público, né?”. É aquele discurso: você pode viver, mas lá no seu canto, longe de mim. E não é bem assim, nós temos o direito de estar em todos os lugares. Em 2016, tive o privilégio de ir a uma parada do orgulho em Nova York. Voltei de lá todo feliz com uma bandeirinha LGBT. Quando retornei ao trabalho, coloquei essa lembrancinha na minha mesa. Depois disso, percebi que algumas pessoas faziam certas “piadas” e, logo em seguida, pediam desculpas. Então, os meus colegas começaram a pensar duas vezes antes de dizer algo. É isso. As pessoas precisam se vigiar e lidar com o fato de que o negro não pode ser apenas o faxineiro, que a mulher pode ser sua chefe, que a pessoa com deficiência também tem habilidades e capacidades. Temos muito ainda o que avançar, mas precisamos nos abrir para as mudanças. Ao meu ver, em Conquista, temos muitas pessoas com a mente fechada. Não todas, mas uma grande quantidade. Vejo até gente que aceita o esquema da opressão mesmo estando no lugar de oprimido. E eu penso que, ao se abrir para as possibilidades, essa pessoa vai ser a primeira beneficiada.
Foto de capa: Thiago Drummond (@estudiothiagodrummond).
ERRATA:
*Luiz D’Luzia nasceu em Vitória da Conquista. Seu pai, Wilson, é a pessoa da família natural do distrito de Pradoso. Texto atualizado às 21h22.
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