Horários de ônibus escassos em distritos rurais evidenciam segregação social em Conquista
Por Lays Macedo - 30 de setembro de 2024
Baixa oferta do serviço em povoados como o Santa Marta e passagens a R$3,80 restringem o acesso à cidade e a serviços básicos para quem mora longe do centro urbano. Especialistas apontam que a normalização da negação de direitos fomenta as desigualdades sociais.
O dia de vacina das crianças já deixava Nalva apreensiva. Naquela sexta-feira, 20 de setembro, sua maior preocupação, desde cedo, era chegar ao posto de saúde onde aconteceria a vacinação de três dos seus quatro filhos, na zona urbana de Vitória da Conquista, município da região Sudoeste da Bahia com mais de 370 mil habitantes. Caso perdesse o ônibus das 07h40, só poderia ir ao centro da cidade cerca de quatro horas depois, às 12h10, horário em que a linha do transporte coletivo municipal que atende ao Assentamento Santa Marta, onde mora, voltaria novamente ao ponto de embarque em que ela estava.
Com um bebê de menos de um ano no colo e duas crianças de três e quatro anos segurando suas mãos, Nalva caminhou por mais de 15 minutos até alcançar o local onde pegaria a condução. Quando o ônibus chegou antes da sua filha mais velha, que a ajudaria a levar as crianças pequenas no posto, todo o seu planejamento para aquele dia pareceu ir por água abaixo. “Eu não vou poder ir sozinha com eles, vai ter que ficar para outro dia”, lamentava.
Nalva só conseguiu respirar aliviada quando viu que um vizinho trazia sua ajudante até o ponto de partida, segundos antes da saída do ônibus. Um atraso de poucos minutos iria prejudicar todo o esforço de ter acordado mais cedo, arrumado os pequenos e caminhado mais de um quilômetro para acessar um direito básico de saúde, que é a vacinação infantil. A situação foi tão caótica que não foi possível sequer a entrevistada concluir a conversa com nossa reportagem.
A moradora do Santa Marta, também conhecido como Assentamento Amaralina, localizado a cerca de 15 km do Centro de Conquista, tem o transporte público como o seu único meio de locomoção no município. Entretanto, a linha R04, que atende a localidade, tem uma oferta de horários bastante limitada. Pela manhã, o ônibus passa às 05h40 e 07h40. À tarde, às 12h10, 14h e 16h30. A última viagem acontece às 18h30. “Se tiver emergência aqui, morreu. Ou você apela para a vizinhança, no caso de quem não tem veículo [próprio], ou vai a pé mesmo se conseguir”, destaca William Borges, que mora na comunidade há mais de 11 anos.
As dificuldades de acesso frequente e digno ao transporte coletivo municipal para a locomoção de Nalva, William e outras tantas famílias do Santa Marta afetam ainda distritos rurais como o Iguá, onde o ônibus da linha disponível para a comunidade só passa seis vezes ao dia. A situação se repete em São Sebastião e José Gonçalves, cujas linhas do transporte coletivo só foram implantadas em agosto e setembro deste ano, respectivamente, pela Prefeitura, mas com uma oferta de horários também limitada.
Comunidades rurais distantes da sede e desses distritos sequer são alcançadas pelo sistema municipal operado, atualmente, pelas empresas Viação Rosa e Viação Atlântico. Já para quem mora em bairros periféricos da zona urbana do município, onde os ônibus circulam, o valor da tarifa é um dos problemas que tem cerceado a mobilidade e, consequentemente, o direito à cidade de moradores que nem sempre têm condições financeiras de desembolsar R$3,80 a cada deslocamento feito na malha urbana de uma cidade que tem crescido de forma rápida e desordenada, segundo especialistas.
Um direito básico negado
Se o acesso ao transporte público possibilita aos cidadãos de um município usufruir de direitos fundamentais, como saúde, educação, cultura e lazer, assim como fontes de trabalho e renda, garantir e democratizar políticas de mobilidade para habitantes de áreas rurais e periféricas pode ser um caminho para reduzir desigualdades sociais que afetam essas comunidades. Mas os avanços em torno do assunto ainda são tímidos.
O transporte só passou a ser uma garantia social básica com a Emenda Constitucional nº 90, de 2015, que acrescentou esse direito no artigo 6º da Constituição Federal. A inclusão de tal ponto na Lei Máxima do país foi provocada a partir das mobilizações das Jornadas de Junho, que levaram milhares de pessoas às ruas contra a elevação das tarifas de ônibus, entre outras pautas, no ano de 2013.
Ainda assim, pouco se discute sobre o tema quando o contexto se desloca dos centros urbanos para a periferia e zona rural de cidades médias como Vitória da Conquista, onde o direito ao transporte público é limitado e, muitas vezes, sequer é garantido a inúmeras comunidades localizadas às margens das regiões centrais do município.
“É complicado, né? Você não pode perder a hora nunca se usa o ônibus [da linha R04] para levar seu filho para fazer um exame. Não dá nem para se divertir em paz. Teve um parque aqui na cidade que eu não pude nem levar as minhas filhas, porque no final de semana só tem ônibus vindo para cá antes das 19h”, desabafa Aline de Jesus, moradora do Santa Marta e usuária do sistema municipal de transporte coletivo.
Seu vizinho, Rone Pereira, acrescenta, em tom de indignação: “Sem falar que o ônibus que faz a linha daqui é velho, quebra direto, e a gente fica na mão. Ninguém liga. Quando chega a época de política, fica atrás de voto, fazendo coisa de última hora, prometendo tudo”. Ele conta que chegou a fazer por conta própria alguns banquinhos no ponto de ônibus da localidade, “porque a Prefeitura não tem coragem de botar uma cobertura, de fazer nada”, diz.
Para o professor Juan Pedro Delgado, doutor em Engenharia de Transportes e pesquisador do Departamento de Engenharia de Transporte e Geodésia (DETG) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o sistema de transporte público, de forma geral, está em crise há mais de 20 anos. “A cada ano que passa, temos cidades menos humanas, menos sustentáveis, porque o sistema de transporte não funciona. E isso impacta nas famílias. Impacta o orçamento familiar e o acesso amplo à cidade. Ou seja, há uma menor interação social, econômica e familiar”, afirma.
Segundo ele, situações vivenciadas por pessoas como Rone, Aline, entre outras que moram em regiões periféricas, são um reflexo dessa crise. “Nós vemos cidades segregadas, e dentro dessa segregação nos espaços urbanos, também ocorre a segregação nas formas de mobilidade. Ou seja, se amplifica a segregação existente, e essa segregação se amplifica nas formas de mobilidade informal, como mototáxis e vans, sem ampliar a eficiência do sistema de transporte público”, explica.
O apontamento do pesquisador se evidencia em situações cotidianas que acabam gerando transtornos para quem depende do transporte público, mas mora longe do Centro da cidade, como Dona Izaltina Nazaré. Recentemente, ela se viu em apuros numa ocasião na qual precisou aguardar a alteração do grau de seus óculos para poder retornar para casa.
“O ônibus sai às 11h do Centro para o Santa Marta, como é de costume, sabe? Mas nesse dia em que eu estava esperando os óculos ficarem prontos, eu perdi o de 11h pois não podia voltar sem meus óculos para casa. Aí só ia ter outro 13h vindo para cá. Eu só ia chegar em casa umas 14h30, sem comer nada desde cedo, já que, da minha casa até onde tem ponto de ônibus, é uns dois quilômetros andando”, lembra.
Diante disso, ela precisou pegar uma linha de ônibus até o campus da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), que fica na zona leste de Conquista, assim como o Santa Marta. Ao chegar lá, precisou pedir a um vigilante que ligasse para o seu filho para que pudesse levá-la até em casa de moto. “Aí o meu menino saiu da Uesb e veio me trazer”, relata Dona Izaltina, que sempre se organiza com muito cuidado e cautela para fazer qualquer coisa fora da sua comunidade.
Segundo informou a Prefeitura em nota enviada à nossa reportagem, a definição das linhas do transporte coletivo ativas no município, atualmente, se deu a partir da avaliação das atividades de estabelecimentos comerciais e educacionais. “Ajustes futuros poderão ser feitos para adequar possíveis mudanças na demanda”, diz o texto.
Por meio da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana, a gestão ainda explicou que as rotinas estabelecidas para cada linha “seguem os horários habituais dos veículos permissionários nas comunidades, considerando o fluxo e o contrafluxo de passageiros. Ou seja, as linhas atendem especialmente aos horários de alta demanda, para assim assegurar a eficiência do serviço e garantir a modicidade tarifária”.
Transporte público com interesse privado
Em entrevista concedida ao Conquista Repórter em 2021, o então secretário municipal de Administração da gestão Sheila Lemos, Kairan Rocha, relacionou a inexistência de linhas do transporte público em comunidades rurais e periféricas e a oferta reduzida de horários de circulação de ônibus em alguns desses locais à baixa lucratividade gerada para as empresas que operam o sistema. Naquele ano, a Prefeitura Municipal chegou a excluir diversas linhas consideradas “sociais’ do edital de licitação para a contratação das operadoras do serviço, incluindo as que atendem ao Santa Marta, Pradoso, Lagoa das Flores, entre outras.
Após pressão da população e de vereadores de oposição, a decisão foi revista, tanto que as linhas estão ativas, atualmente, cerca de um ano após o processo de licitação ter sido concluído. Entretanto, a necessidade de ampliação da oferta do serviço para essas e outras comunidades ainda esbarram no fato de o interesse privado se sobrepor ao interesse público que beneficiaria a população.
“O sistema de transporte não está sendo entendido como um componente importante e fundamental no desenvolvimento municipal, e isso também é um grande problema de gestão, um grave problema de governança”, alerta o professor Delgado. “O empresário do transporte público ainda enxerga o negócio não apenas como outra coisa que não um negócio. Precisamos mudar essa mentalidade do setor empresarial também nesse aspecto, aproximar as empresas de uma mobilidade sustentável”, complementa.
Para Altemar Amaral Rocha, professor titular do curso de Geografia da Uesb e doutor em Geografia Urbana, Planificação e Meio Ambiente, a falta de lucratividade em linhas de transporte que atendem a comunidades mais distantes do centro urbano não pode ser usada pelo Poder Público como justificativa para a baixa oferta ou mesmo a falta do serviço em áreas rurais e periféricas. Segundo ele, o crescimento desenfreado da cidade deveria ser acompanhado da expansão dessa oferta no município, que conta com 11 distritos e cerca de 300 povoados na zona rural.
“A Prefeitura autorizou de forma indiscriminada a criação de loteamentos para atender aos interesses de incorporadoras e de proprietários de terra, sem levar em consideração todos os aspectos que a estruturação urbana envolve, como transporte público, educação, saúde e demais serviços sociais que a população urbana e contemporânea precisa. Nesse sentido, a cidade está cada vez mais fragmentada e segmentada, e isso dificulta a adoção de qualquer política pública de forma eficiente e que atenda toda a população sem excluir os que residem em áreas cada vez mais distantes do centro urbano”, ressalta.
Cláudio Carvalho, doutor em Desenvolvimento e Planejamento Urbano e professor de Direito Ambiental, Urbanístico e Agrário, aponta o quanto a precariedade enfrentada rotineiramente para se locomover na cidade impacta negativamente a vida dessas pessoas e reflete as relações de segregação social que existem em cidades médias como Conquista. “É um processo de adoecimento do trabalhador e trabalhadora que pega ônibus. Você vive em constante cansaço. Você tem que acordar mais cedo, literalmente de madrugada, todos os dias para pegar o primeiro coletivo”, diz.
Descentralização de serviços
A concentração do comércio, serviços e equipamentos públicos em áreas centrais da cidade acarreta na constante necessidade de viagens urbanas para quem mora na periferia e zona rural. Por isso, é preciso que as políticas de mobilidade sejam pensadas também a partir da integração com as políticas de ordenamento do espaço urbano, conforme aponta o pesquisador Juan Delgado. Para ele, esse é um dos principais desafios a serem enfrentados pelos gestores de grandes e médias cidades nestes próximos anos.
“Estamos enxergando o problema técnico do planejamento da mobilidade como uma questão isolada do ordenamento territorial, isolada do uso do solo. Os serviços da vida urbana que estão concentrados no Centro de Vitória da Conquista têm que ser descentralizados, minimizando as viagens urbanas, minimizando a necessidade de viagens. As políticas imobiliárias têm que ser integradas fortemente com os planos diretores e com as políticas habitacionais”, avalia. Vale lembrar que o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Vitória da Conquista, entretanto, está desatualizado. Enquanto isso, o novo projeto segue engavetado na Câmara Municipal, aguardando apreciação dos vereadores.
Co-autor do livro “Fundamentos do Direito à Cidade”, o professor Cláudio Carvalho também considera a descentralização dos serviços públicos, incluindo o próprio sistema municipal de transporte coletivo, um caminho para melhorar e democratizar o acesso da população periférica e rural à mobilidade urbana. “Eu fui e continuo sendo contra o gasto que foi feito na reforma do terminal que hoje é a Estação de Transbordo Herzem Gusmão, no Centro da cidade, porque repete essa concepção concentrada. Seria muito mais interessante você pensar em estações menores de transbordo em locais como Urbis VI, Alto Maron e Vilas Serranas”, afirma.
Para o pesquisador, ligar bairro a bairro seria mais eficiente do que reformar uma área que já está muito sufocada, uma vez que quase todas as linhas de ônibus passam pelo Centro, invariavelmente. “É preciso uma revolução no transporte público em Vitória da Conquista. Valoriza o Centro, mas assim, não pensam nesses bairros que são marginalizados socialmente, que estão nos extremos e esquecidos”, complementa.
Nos planos de governo disponibilizados pelos quatro candidatos à Prefeitura de Vitória da Conquista nas eleições de 2024, Lúcia Rocha (MDB), Marcos Adriano (Avante), Sheila Lemos (União) e Waldenor Pereira (PT), a abordagem superficial do tema, de modo geral, acaba dando o tom à pauta do transporte público. O prefeiturável pelo Avante, por exemplo, deixou de fora do seu projeto ações específicas para melhorar o acesso da população a políticas de mobilidade.
O candidato do PT se compromete com a estruturação do “Sistema Unificado de Mobilidade (SUM)”, que prevê a renovação e ampliação de frotas, atenção aos horários de pico e aumento de pontos de ônibus pelos bairros. Lúcia Rocha é a única que sustenta a implementação de um sistema de transporte público de passageiros específico para a zona rural, que obedeceria às garantias legais da gratuidade para idosos, pessoas com deficiência (PCD) e a meia passagem para estudantes.
Já a atual prefeita e candidata à reeleição, Sheila Lemos, apresenta a intenção de estudar a criação de um “bilhete de transporte social”, que seria destinado às pessoas que participam de atividades ofertadas pela rede socioassistencial do município com necessidade comprovada do benefício. Além disso, a gestora, assim como seus concorrentes do PT e MDB, apresentam ainda como proposta a implementação gradual da chamada “tarifa zero” no sistema municipal de transporte coletivo.
Tarifa inacessível x tarifa zero
Diante de uma conjuntura econômica local na qual o valor da passagem nem sempre é acessível à realidade financeira de muitos moradores, a implementação de uma tarifa zero tem se destacado no debate público neste período eleitoral. Atualmente, os mais de 90 mil passageiros transportados diariamente pela Viação Rosa e pela Viação Atlântico pagam R$3,80 pelo serviço. Quem tem direito à meia, desembolsa R$1,90. E para que esse valor seja mantido, as empresas que operam o sistema recebem ainda subsídio da Prefeitura para cobrir o custo total estabelecido para a passagem, que é superior ao valor cobrado à população.
Cotidianamente, um usuário do sistema que não tem direito à gratuidade ou à meia passagem gasta em média R$7,60 por dia para se deslocar na cidade. Esse valor pode até dobrar caso o passageiro precise utilizar duas linhas de ônibus que não fazem integração para chegar ao seu destino e, posteriormente, retornar para casa. Arcar com tais valores sempre que é preciso acessar serviços de saúde, educação, cultura e lazer, além de locais de trabalho e geração de renda, se torna um peso financeiro que nem todos conseguem sustentar no município.
“Para o trabalhador e a trabalhadora brasileira, transporte é o terceiro item do pacote que afeta as rendas. Primeiro vem o aluguel, com cerca de 30% do salário. Em segundo lugar está a alimentação. A gente gasta mais com aluguel do que com alimentação, que representa 18% [do gasto médio de uma pessoa]. E em terceiro vem o transporte, com 17%, praticamente empatado com o custo com alimentos. Portanto, é fundamental que gestores reconheçam as realidades da classe trabalhadora”, afirma Cláudio Carvalho.
O violinista e educador musical Mikael Carvalho, morador do bairro Jardim Valéria, utiliza o transporte coletivo como principal meio de locomoção na zona urbana de Vitória da Conquista. Mas por diversas vezes, já se viu impedido de frequentar o programa social no qual tem acesso a aulas gratuitas de música no lado oposto da cidade por não ter como pagar a passagem. Aos 27 anos, ele é integrante do Núcleo Territorial NEOJIBA (NTN) de Vitória da Conquista, vinculado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Governo da Bahia.
Participa do projeto desde quando o núcleo funcionava na sede do Conquista Criança, na zona oeste. Mas em 2019, as atividades migraram para o Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima. E para não perder as oportunidades oferecidas pelo programa, Mikael seguiu frequentando as aulas no novo espaço. Mas após o fim da pandemia da covid-19, isso passou a ser cada vez mais difícil, sobretudo depois que ele ultrapassou a faixa etária que lhe possibilitava receber uma bolsa para atuar como monitor no NTN.
“Além de levar mais de uma hora para chegar ao Centro de Cultura e não ter acesso à meia passagem, já que eu não me enquadro como estudante, me encontrei sem passagens para ir às aulas. Os valores gastos em três dias de tarifas inteiras, para ida e volta, valeriam seis dias se conseguisse ao menos o direito de pagar meia”, lamenta o músico, para quem a implementação da tarifa zero seria muito bem-vinda. O mesmo vale para a violinista e produtora de eventos freelancer, Samylle Borges.
Por falta de renda suficiente para pagar a tarifa do transporte coletivo diariamente, ela se viu obrigada a trocar o ônibus por uma bicicleta para ir estudar e trabalhar, apesar da falta de estrutura e segurança oferecida pelo veículo na maior parte das vias da cidade. “Já usei a bicicleta emprestada do meu pai para me locomover pela cidade, mas com muito medo. Nem toda a cidade é adequada aos ciclistas. Há falta de consciência de muitos motoristas e, o principal, é a insegurança [que sinto] como mulher. Faço até 7km de volta para casa, sozinha e à noite às vezes”, relata.
Em setembro de 2021, diante da crise econômica decorrente da pandemia da covid-19, a Prefeitura de Vitória da Conquista promoveu uma redução no valor da tarifa do transporte público, que diminuiu de R$3,80 para R$2,50, no caso de pagamentos em dinheiro, e R$2,00, no caso de cobranças realizadas por meio do bilhete eletrônico. O valor “promocional” foi mantido por 16 meses, até fevereiro de 2023, quando foi lançada a licitação para definir as duas empresas concessionárias do serviço no município. Mas a visão social do governo municipal quanto à mobilidade não foi muito além disso.
Em agosto do mesmo ano, para otimizar o processo de recarga dos cartões eletrônicos, a Prefeitura e a Atuv (Associação das Empresas do Sistema de Transporte Coletivo Urbano de Vitória da Conquista), passaram a possibilitar que a transação fosse feita de forma on-line, via WhatsApp, com pagamento via PIX. Contudo, os usuários foram surpreendidos com a cobrança de uma “taxa de conveniência” para usar a modalidade, que inclusive foi reajustada em fevereiro deste ano, ainda que as movimentações financeiras por PIX sejam isentas de tarifas bancárias para pessoas físicas no país.
Assim, a população não só voltou a ter um gasto mais alto com o transporte, como também passou a lidar com uma nova despesa relacionada ao serviço, ainda que seja uma modalidade opcional. Se uma taxa de R$1,44 é cobrada para a realização de recargas via PIX no cartão de transporte, pode parecer difícil para muita gente acreditar que a implementação de uma tarifa zero, conforme propõem candidatos às eleições de 2024, seja de fato viável e factível.
Mobilidade é construção política
Os especialistas ouvidos pelo Conquista Repórter avaliam de forma positiva a proposta e a consideram possível, a depender da realidade de cada município, uma vez que já há exemplos de cidades brasileiras em que o modelo de gratuidade foi implantado. “Defendo que o transporte deveria ser um direito de fato, portanto, eu defendo o que a gente chama de tarifa zero. Hoje, já existe no Brasil, assim como você tem com a saúde e educação, transporte subsidiado pelo Governo Federal. Deveria ter um modelo de financiamento completamente público”, explana o doutor Cláudio Carvalho.
O professor Altemar Amaral Rocha explica que a tarifa zero pode ser custeada diretamente pelo Poder Público municipal ou por meio de subsídios dos governos estaduais e federais, em responsabilidade compartilhada. Ele destaca, inclusive, que há, no Congresso Nacional, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende regulamentar essa política em todo o país. “No entanto, há limitações orçamentárias para atender a toda a população. Em municípios com arrecadação de royalties de petróleo e outros royalties, essa possibilidade de tarifa zero é viável. No entanto, em municípios com pouca receita, essa possibilidade é remota”, ressalta.
O estudioso aponta que uma outra alternativa para a viabilização da proposta seria a obtenção de frotas próprias de veículos pelo município. “Gestores municipais comprariam a frota de ônibus, cedendo em concessão para empresas explorarem essa frota e, assim, ser possível conceder tarifa zero para uma parcela da população ou para toda a população em dias alternados da semana, por exemplo”, ilustra.
Aceitar as limitações de acesso da população periférica e rural à mobilidade e ao direito à cidade como uma realidade que não pode ser modificada a partir de políticas públicas inclusivas é manter a estrutura que reforça a segregação social existente em municípios brasileiros como Vitória da Conquista, avalia Cláudio Carvalho.
“Esse caráter da normalidade da ausência de direitos é o que eu chamo de ‘cidadania limitada’, e é o que perpetua as desigualdades sociais no Brasil. Não podemos normalizar isso. Se for obrigação do poder público operar, vamos cobrar e fiscalizar. Vamos trabalhar com o debate com a população e fazer uma gestão de fato democrática da cidade. E isso depende muito da organização popular também”, finaliza.
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