Gilmar Dantas afirma que é preciso descentralizar as políticas culturais da Bahia

Por - 21 de julho de 2021

Segundo o produtor cultural, que é membro do Coletivo Suíça Bahiana e dos conselhos Municipal e Estadual de Cultura, o setor sofreu retrocessos no governo Rui Costa: “é um cenário triste, as estruturas do governo estão todas na capital”, aponta

Por trás das mais diversas ações e eventos que nos proporcionam diversão e entretenimento, existem pessoas que, através do seu trabalho nos bastidores, movimentam toda a cadeia produtiva do setor artístico-cultural. São agentes que interferem diretamente naquilo que consumimos, cotidianamente, em termos de cultura e lazer. Shows, festivais, peças de teatro, mostras audiovisuais, concertos. Nada disso acontece sem o trabalho dos produtores e realizadores culturais. 

O conquistense Gilmar Dantas ingressou no ramo em 2003 e, desde então, já produziu eventos que você, certamente, já ouviu falar: Mostra Cinema Conquista, Feira Literária de Mucugê (Fligê), Festival da Juventude, Festival Suíça Bahiana, entre outros. Esses são apenas alguns dos mais conhecidos, visto que foram mais de 200 ao longo de quase duas décadas. E a contagem continua.

Graduado em Letras pela Uesb (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), Gilmar exerce, atualmente, o cargo de técnico em assuntos culturais na Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sectel) de Vitória da Conquista. Desde 2010, integra o Coletivo Suíça Bahiana, que faz parte do circuito Fora do Eixo. Foi um dos fundadores do grupo. Além disso, é membro dos conselhos Municipal (CMC) e Estadual de Cultura (CME). 

Nesse último, representa o território Sudoeste Baiano e está prestes a concluir seu primeiro mandato. No CMC, já foi representante da sociedade civil, mas agora, na atual gestão, representa o Poder Executivo do município, por conta do seu trabalho na Sectel. Durante o governo do ex-prefeito Guilherme Menezes, participou ativamente do processo de elaboração da lei que instituiu o Sistema Municipal de Cultura (Lei Complementar nº 2.106/2016), um marco para a classe artística da cidade.

Gilmar Dantas concedeu entrevista para nossa reportagem na última segunda-feira, 19, pela plataforma Zoom Meetings.

Além disso, Gilmar foi presidente do Colegiado Setorial de Música da Bahia, instância que integra o Sistema Estadual de Cultura, e fez pós-graduação em Gestão Cultural pelo Senac (SP). Como produtor cultural, também luta pelo fortalecimento e integração dos coletivos do interior baiano, bem como a organização de um circuito independente de festivais no estado. 

Em entrevista ao Conquista Repórter, ele comentou o atual cenário artístico-cultural no interior da Bahia, em especial em Vitória da Conquista, e destacou avanços do setor no município. Entretanto, afirmou que houve retrocessos nas políticas culturais a nível estadual, durante a gestão do governador Rui Costa. Confira:

CR: Tendo em vista a sua trajetória como alguém que atua diretamente no cenário artístico-cultural de Conquista e do sudoeste baiano desde os anos 2000, o que você acha que mudou do início daquela década para cá nesse setor, e o que, em sua opinião, ainda falta mudar? 

Gilmar Dantas: Em 2003, tudo era mato. Era muito complicado fazer eventos porque a gente só tinha o conhecimento prático [de como fazer isso]. Não colocávamos nossas ideias no papel. Então, era muito mais difícil captar patrocínio, por exemplo, pois não tínhamos essa experiência de pensar e planejar as coisas antes de executá-las. Agora, o que melhorou foi o diálogo com os gestores culturais. Em 2003, Conquista não tinha nem Secretaria de Cultura. As políticas culturais do Estado eram impostas da capital pra cá. Não éramos habituados a levar as demandas culturais do interior ao Governo Estadual. Mal conseguíamos levar pra Prefeitura. Então, essa relação dos produtores com os gestores mudou muito. Em relação a patrocínio, continua a mesma coisa. Mesmo a gente levando [ideias] para o papel, sabendo apresentar uma proposta cultural, o interesse das empresas privadas ainda é muito pequeno. A gente precisa avançar com relação a isso urgentemente. Outra diferença – algo que naquela época era melhor do que agora – é que antes o público dos eventos costumava ser muito maior do que é hoje em dia. Pra você colocar mais de cinquenta pessoas num evento hoje, tem que ser um evento realmente muito bom. Naquela época não. Em qualquer evento a gente conseguia colocar quinhentas pessoas facilmente. Em 2004, eu fiz um festival só com bandas locais e autorais, no qual tivemos mil pessoas por dia. Hoje, dificilmente, você vai conseguir colocar mil pagantes num evento desse só com bandas locais. 

CR: Em outubro de 2016, foi promulgada a lei que institui o Sistema Municipal de Cultura de Vitória da Conquista, que era uma pauta defendida há anos pela classe artística da cidade. Qual a importância dessa lei para a cultura conquistense e quais foram os principais avanços que ela trouxe desde que foi implementada? 

Essa lei é muito importante porque garante políticas culturais para a cidade e cria o Fundo Municipal de Cultura, que assegura, atualmente, recursos para o setor. Isso porque 10% do que se gasta com cultura em Vitória da Conquista tem que ir para o Fundo, que é gerido pelo Conselho Municipal de Cultura. Com isso, a sociedade civil tem poder efetivo sobre esse recurso. E essa lei também é importante porque consegue mostrar para a população como funciona e o que tem em um Sistema Municipal de Cultura, que abarca a Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sectel); o Conselho Municipal de Cultura; o Fundo Municipal de Cultura; as Conferências Municipais de Cultura; além de um integrante importante que institucionalizamos, mas ainda não elaboramos de fato, que é o Plano Municipal de Cultura. É o único integrante do Sistema Municipal de Cultura de Vitória da Conquista que ainda não foi levado pra prática. 

CR: Saberia nos dizer por que ele ainda não foi elaborado e como isso afeta as políticas culturais da cidade?

Gilmar Dantas:  O Plano Municipal de Cultura foi pauta nos últimos anos da gestão do ex-prefeito Herzem Gusmão, porque a gestão anterior, de Guilherme, se preocupou com a lei do Sistema, que ficou pronta praticamente no último ano do seu mandato. Então, aprovamos a lei do Sistema, depois fizemos a primeira eleição para escolher os membros do Conselho Municipal de Cultura, porque o plano tem que ser construído pelo conselho eleito. Como o conselho foi eleito em novembro do último ano de gestão de Guilherme, foi impossível elaborar o plano naquele período. Já no governo Herzem Gusmão, começou-se a focar na sua construção e também na regulamentação de outras questões abordadas no Sistema, como o próprio Fundo Municipal de Cultura. Mas não avançamos. Uma das questões que interferiu foi a pandemia, que nos trouxe outros desafios e nos fez concentrar energias em outras pautas, tanto a Secretaria quanto o CMC. Veio demandas como a aplicação dos auxílios emergenciais através da Lei Aldir Blanc, a elaboração do edital Gildásio Leite, etc. Acredito que agora a gente comece a focar novamente no plano, que faz uma diferença imensa. Ele estabelece quais vão ser exatamente as políticas culturais da cidade nos próximos dez anos, apesar de que, na prática, ele não garante muita coisa. Se a gente for olhar o Plano Estadual de Cultura, que já tem cinco anos – está indo pro sexto – veremos que ele tinha que passar por uma revisão no seu quinto ano e até agora não houve essa revisão. E quase ninguém acessa o Plano Estadual para saber se ele está sendo cumprido. Não está. As metas previstas não estão sendo atingidas. Então, por mais que seja um documento norteador, um plano de cultura por si só não vai garantir o desenvolvimento das políticas culturais de um determinado lugar.

CR: Poderia explicar melhor a diferença entre o Plano Municipal de Cultura e o Sistema Municipal de Cultura? 

Gilmar Dantas: O plano é um integrante do sistema, que por sua vez engloba tudo. O sistema é a união da Secretaria de Cultura, do Conselho de Cultura, do Plano Estadual de Cultura, das conferências de cultura, dos fundos estadual e municipal de cultura. Então, você junta tudo isso e tem um sistema.

CR: E como você observa a atuação dos conselhos municipal e estadual de cultura nessas diferentes esferas? Qual tem sido o papel que eles têm desempenhado no setor cultural durante o atual período de pandemia da covid-19?

Gilmar Dantas: “Acredito que o Conselho Municipal de Cultura tem tido mais força junto ao Poder Público do que o Conselho Estadual de Cultura”. Foto: Blog do Rodrigo Ferraz.

Gilmar Dantas: Acredito que o Conselho Municipal de Cultura tem tido mais força junto ao Poder Público do que o Conselho Estadual de Cultura, que, nos últimos anos, não tem sido completamente atendido pelo Estado. Um exemplo muito claro foi a própria Lei Aldir Blanc. O município teve o CMC como um participante completamente ativo em todas as etapas de elaboração dos editais [originados a partir do programa] e de todo o processo de definição de como funcionaria a lei aqui em Vitória da Conquista. Já no Conselho Estadual, a Secretaria de Cultura da Bahia (Secult) marcou uma reunião pra gente apresentar qual era o plano e pediu sugestões. Quando a gente deu sugestões, nos disseram que não havia mais tempo hábil para fazer mudanças. E a mudança que mais sugerimos lá foi que se criassem mecanismos que garantissem que o recurso chegaria em todos os locais do estado. Não tinha nenhuma regra de territorialização nos editais [elaborados pela Secult). Mas aí, como eu disse, não havia tempo para mudar, o que é uma falha enorme. O Conselho só tinha tempo para aprovar. Não tínhamos outra opção. Ou aprovava ou perdia o recurso. Então, acho que isso é um exemplo que ilustra qual é a relação do CEC com a Secult.

CR: E como você avalia a efetividade da execução dessas políticas emergenciais de auxílio à classe artística, como a Lei Aldir Blanc, de 2020 e os editais da cultura lançados pela Prefeitura de Vitória da Conquista? 

Gilmar Dantas: É pra não deixar as pessoas morrerem de fome. São recursos emergenciais extremamente necessários. Sabemos e estudos comprovam que a cultura está entre os setores mais prejudicados pela pandemia. Fomos os primeiros a parar e somos os últimos a voltar com as nossas atividades. Com a Lei Aldir Blanc, foi a primeira vez que os recursos federais para o setor chegaram a todos os municípios. Conquista recebeu R$2,2 milhões para transformar em editais, em políticas de auxílio à categoria artística. Gastamos todo o dinheiro rapidamente, porque tinha um prazo a ser cumprido, se não o recurso seria devolvido e a gente jamais poderia deixar que isso acontecesse. A partir daí, originou-se a Lei Paulo Gustavo, que está em tramitação no Congresso e garante uma continuidade dos trabalhos da Aldir Blanc, só que sem ser de forma emergencial, ou seja, com um pouco mais de planejamento e de liberdade para que os estados e municípios executem o recurso. E o Governo Federal, atualmente, é contra [o projeto]. Eu acho maravilhoso, porque, como trabalhador de cultura de uma cidade do interior do Nordeste, não consigo ver outra forma desses recursos federais chegarem aqui como eu vi na Aldir Blanc. Eu estou falando da terceira maior cidade da Bahia. Imagine então Barra do Choça, Anagé e outras cidades muito menores. Os recursos não chegam até elas, mas os mecanismos criados na Aldir Blanc obrigam o Governo Federal a fazer esse repasse aos municípios. Então, só se o município não se articular, ele não vai receber esse recurso, como aconteceu em algumas cidades [com a Aldir Blanc].

CR: Em uma entrevista para uma pesquisa de mestrado sobre as políticas culturais em Vitória da Conquista, publicada em 2019 no repositório de dissertações da UFBA, você destacou que havia uma certa retração do Governo do Estado em relação à cultura e à política territorial para o setor na Bahia. Além disso, chegou a afirmar que “os recursos não chegam mais no interior de jeito nenhum”. Esse cenário se mantém o mesmo atualmente? 

Gilmar Dantas: Na verdade, só piora. A política territorial na Bahia era muito forte no governo de Jaques Wagner, não só em relação à cultura, mas a todos os setores. A palavra territorialização sempre esteve nos planos de governo de Wagner. Foram criados os chamados representantes territoriais de cultura (RPCs), que existiam nos vinte e sete territórios de identidade do estado. Eram pessoas que trabalhavam em Regime Especial de Direito Administrativo (REDA)  e eram responsáveis por levar as demandas dos territórios diretamente para a Secult. Hoje em dia não temos esses representantes. Quanto mais tempo a gente fica sem representante territorial de cultura, mais distante o interior fica da capital. Então, se 2019 foi ruim, 2021 é muito pior. É um cenário triste. As estruturas do governo estão todas na capital. Eu nem mesmo lembro a última vez que um gestor da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) esteve em Vitória da Conquista.

CR: Poderia nos explicar, em termos práticos, o que exatamente significa territorializar a cultura?

Gilmar Dantas: Significa descentralizar as políticas culturais da capital. É você conseguir levá-las, de forma efetiva, para todos os territórios do estado e, assim, empoderar cada lugar, cada cidade que faz parte dos 27 territórios de identidade da Bahia. É uma coisa que o Governo Estadual não tem conseguido fazer nos últimos anos. Há uma clara concentração de recursos em Salvador. Isso é um absurdo, é inaceitável. 

CR: E qual a importância dos coletivos de cultura, nesse sentido? 

Gilmar Dantas: Os coletivos conseguem levar as demandas dos trabalhadores da cultura tanto para os gestores municipais quanto para os gestores estaduais. Por trabalhar em rede, a gente consegue também ter uma troca com coletivos de outras cidades, de outros estados e, assim, ver o que funciona e que não funciona, trazer exemplos. A gente consegue ajudar uns aos outros. Tem vezes que a gente acaba fazendo até a função que seria da própria Secretaria Estadual de Cultura. Organizamos turnês, a circulação de artistas dentro do estado. Somos até cobrados como se fôssemos a própria Secretaria de Cultura. Mas não somos. Existem demandas para dar conta e alguém tem que fazê-las. Se o Estado não faz, a gente faz, porque a cultura não pode parar.

*Foto de capa: Ascom CMVC.

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