Val Alencar: o maestro que fez da rua seu palco para sobreviver em meio à pandemia da covid-19

Por - 28 de julho de 2021

"Não acho que esse trabalho seja o ideal, mas hoje é o real, é a reinvenção do Val Alencar, do músico que está desempregado"; Conheça sua história

“A música é a arte de manifestar os diversos afetos da alma através do som”. É assim que Val Alencar define o ofício a qual se dedica desde a adolescência, o mesmo que, até hoje em dia, lhe garante o sustento enquanto artista. Era início da noite de uma sexta-feira fria, em Vitória da Conquista, quando o som doce e suave do seu saxofone chegou aos meus ouvidos. 

Persegui aquela melodia até descobrir exatamente de onde ela vinha. Val tocava o instrumento na calçada da Avenida Olívia Flores, no trecho em que a famosa via da zona leste se encontra com a Avenida Alziro Prates. À sua frente, tinha um pedestal e um microfone, que captava as ondas sonoras do seu sax e as amplificava através de uma pequena caixa de som que ficava ao seu lado, no chão. 

Havia ainda uma maleta aberta em cima de um tamborete de plástico preto. Dentro, estavam dois pequenos cartazes emoldurados como se fossem retratos. Em um deles, era possível ler o nome do canal de Val no YouTube, do seu perfil no Instagram e o número do seu WhatsApp. Já o segundo cartaz trazia a informação mais importante de todas: “Contribua aqui”, acompanhada logo abaixo de um “obrigado” e do seu e-mail.

Era muito mais do que um pedido de ajuda: era um pedido de reconhecimento e valorização do seu trabalho como artista, algo que lhe foi negado pelo mercado tradicional da música em meio à pandemia da covid-19. “Não é fácil, Afonso, principalmente em termos financeiros”, conta.

“Você trabalha a mercê daquilo que as pessoas podem lhe dar”

Se fosse tocar em um evento, por exemplo, ele diz que poderia cobrar até R$250,00 por hora. “Aqui, você trabalha a mercê daquilo que as pessoas podem lhe dar, até porque não foi uma coisa contratada, você que está ali tocando por livre e espontânea vontade. As pessoas estão ali passando, alguns que têm condições, ajudam, outros não”. 

A maleta que comporta o saxofone de Val é também o objeto no qual as pessoas contribuem, financeiramente, com o seu trabalho musical de rua. Foto: Conquista Repórter.

De segunda a sábado, ele costuma tocar por cerca de duas horas em dois diferentes locais da cidade. No período da manhã, geralmente das 8h30 às 10h30, fica na Praça Barão do Rio Branco, em frente às Lojas Americanas, no Centro. Das 17h às 19h, é a vez da Avenida Olívia Flores se transformar em seu palco a céu aberto. 

Não dá para permanecer por mais tempo porque, segundo Val, é necessário um esforço muito grande para tocar o saxofone. “É muito tempo soprando. Aí a cabeça começa a doer. Os lábios também não aguentam. Então, uma hora você realmente cansa”. 

Sua rotina como artista de rua tem sido assim desde que perdeu o emprego como maestro de uma orquestra e se mudou de Simões Filho para Vitória da Conquista, no segundo semestre do ano passado, junto com a esposa e os quatro filhos. Mas antes de vir para a terceira maior cidade da Bahia, Val já havia tocado em praças e avenidas de outros municípios do estado, como Candeias, Salvador e Camaçari. 

Ainda assim, sua primeira tentativa de superar as dificuldades financeiras impostas pela crise da covid-19 e expor o seu trabalho não foi com as apresentações musicais na rua, e sim com as lives, que se multiplicaram nos primeiros meses da pandemia, em 2020, quando o distanciamento social era respeitado pela maior parte dos brasileiros. Nesse período, o YouTube foi seu maior aliado.

“Antes, eu não usava esse tipo de ferramenta. Mas a pandemia veio e o artista teve que se reinventar. E a primeira coisa que eu pensei foi: ‘vou abrir um canal no YouTube’”, relata. No ‘Val Alencar Oficial’, o músico chegou a realizar algumas transmissões ao vivo, apesar de não ter o equipamento ideal para isso. Dedicou uma delas à sua mãe, que entrou para as estatísticas como mais uma das vítimas do novo coronavírus no Brasil. 

A morte dela foi um dos motivos que o fizeram vir para Vitória da Conquista. Era difícil para ele permanecer em Simões Filho porque muita coisa na cidade lhe lembrava sua mãe. E o fato da família da sua esposa morar em Conquista também facilitou a mudança. “Ela tinha como se empregar, tinha como trabalhar junto com os irmãos. Então, juntei o útil ao agradável: minha esposa perto dos pais, e eu mais distante daquilo que fazia lembrar a minha mãe”, explica.

“Conquista foi a cidade que mais me ajudou”

Para Val, o povo de Conquista é bastante generoso. “Eu estive em vários lugares de Salvador, em pontos estratégicos, tocando, fazendo esse trabalho que você me vê fazendo aqui. Toquei também nos lugares mais movimentados de Simões Filho. E Conquista foi a cidade que mais me ajudou e me prestigiou. A gente começa a tocar aqui, saem pessoas de vários lugares, porque ouviram o som do saxofone”. 

Além de Conquista, Val já tocou em ruas e avenidas de cidades como Candeias e Salvador. Foto: Conquista Repórter.

O seu repertório inclui não só canções de cantores da MPB, como Roberto Carlos, Tom Jobim, Jorge Vercillo, Djavan, mas também músicas de artistas do pop que estão em alta no momento, além de composições populares de filmes da Disney. O seu gosto pessoal contempla ainda o jazz e o blues. “Busco alternar bastante as canções para que não fique repetitivo para quem frequenta os locais onde eu toco com constância”, revela.

O saxofone que utiliza para tocar hoje em dia nas ruas não é o mesmo que usava quando começou a fazer esse trabalho. Precisou vender o que tinha para comprar a caixa amplificadora, que custou cerca de R$700,00. Por isso, inicialmente, utilizou um instrumento emprestado por um dos seus ex-alunos de música, já que também atuou como professor da área.

Pouco tempo depois, um amigo o convidou para se apresentar em sua petiscaria, logo no início do período de reabertura do comércio em Simões Filho, e lhe falou que tinha um saxofone, mas que não sabia o que fazer com ele. “Eu não tinha dinheiro, daí toquei na petiscaria dele, fiz cinco shows lá, depois dei mais quinhentos reais e ele me deu esse saxofone que você tá vendo. É simples, mas consigo tocar e fazer o som aqui”, diz.

“Não acho que esse trabalho seja o ideal, mas hoje é o real”

“Não acho que esse trabalho seja o ideal, mas hoje é o real, é a reinvenção do Val Alencar, do músico que está desempregado. Se eu não estivesse fazendo isso aqui, eu poderia estar trabalhando na Uber, sabe? Mas seria uma coisa muito distante daquilo que eu venho fazendo a minha vida toda, que é música, aquilo que eu gosto de fazer”, acrescenta.

Val nasceu em Paulo Afonso, município do interior da Bahia com cerca de 118 mil habitantes. Seus pais se mudaram para Simões Filho quando ele era apenas um bebê de seis meses. Morou lá durante a maior parte da sua vida. Seu pai tocava saxofone tenor (sax tenor). “Desde criancinha eu tinha aquela curiosidade de mexer no instrumento”, conta.

Val é natural de Paulo Afonso, mas passou a maior parte da vida em Simões Filho. Foto: Conquista Repórter.

Mas foi com nove anos que começou, de fato, a trilhar o caminho da música. Aprendeu a ler as primeiras partituras junto ao maestro Aguinaldo Monteiro, numa banda filarmônica de Simões Filho. Aos 18, foi para Salvador, onde morou por cerca de cinco anos. Na época, deu aulas de saxofone e flauta transversal no Colégio Adventista da capital. Esse foi o momento em que começou a aprender mais sobre outros instrumentos, como trombone, violino e contrabaixo. Como não possui formação acadêmica na área da música, aprendeu muita coisa de forma autodidata.

Além disso, adquiriu bastante experiência em conjuntos de música das igrejas que frequentou em Simões Filho, sobretudo a Primeira Igreja Batista do Brasil. “Na verdade, todos os instrumentos eu toco um pouquinho”, afirma. Mas é o saxofone aquele pelo qual nutre uma paixão maior. “É o meu instrumento predileto porque é o que eu mais consigo executar”. 

Durante sua carreira, chegou a tocar em várias bandas do interior nordestino, como Asas Livres e Colher de Pau. Ele conta que costumava migrar de uma banda para outra em busca de cachês melhores. “Os cachês mais altos são de cantores e, principalmente, dos empresários. Eles que levam a maior fatia do bolo, enquanto quem está ali na ponta, trabalhando, fazendo acontecer, ganha um salário, algo muito aquém daquilo que deveria ganhar”, revela.

Devido às constantes viagens que fazia como músico de banda, deixou de atuar como professor em Salvador. Em 2011, já casado e com filhos, foi para a cidade de Itaíba, em Pernambuco, onde morou por cinco anos, período em que compartilhou o que sabia sobre música com crianças e adolescentes, através de um projeto social que mantinha a chamada Orquestra Filarmônica Arautos do Rei, ligada à Igreja Assembleia de Deus e à Prefeitura do município. 

Segundo Val, esse foi um “trabalho missionário”. Não recebia remuneração como maestro. “Eu sou cristão desde criança. Então, vivo os princípios cristãos. E eu senti que eu podia ajudar aquele povo lá dessa cidade”. Em Itaíba, ele pôde colocar em prática muito do que aprendeu como professor de música no Colégio Adventista de Salvador e precisou continuar aprendendo novos conhecimentos por conta própria, através do YouTube. 

Quando retornou a Simões Filho, foi consagrado pastor na Igreja Batista Vida Plena. Passou um ano à frente dela, mas após esse período, se desligou, e nunca mais quis se consagrar à igreja alguma. “O peso institucional é muito grande”, confessa.

O seu trabalho na música inspirou sua filha a também seguir carreira na área. Atualmente, ela é professora de violino no NEOJIBA (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia). O genro, por sua vez, é professor de violoncelo. Antes de encerrar nossa conversa, Val me diz que seu maior desejo, atualmente, é ter um microfone que possa ser acoplado ao seu sax para não ter a necessidade de levar para a rua o pedestal e um microfone de fio. Além disso, quer conseguir também uma caixa amplificadora mais potente, para que sua música possa chegar a cada vez mais pessoas. 

*’Histórias à margem’ é uma série especial do Conquista Repórter que tem como objetivo dar visibilidade a personagens do cotidiano de Vitória da Conquista marginalizadas pela mídia tradicional e pela sociedade.

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