“Nós temos que nos autoafirmar e construir a autoestima aos poucos, tijolo por tijolo”

Por - 12 de junho de 2023

Vítima de gordofobia desde a infância, o conquistense Jamme Costa descobriu na valorização própria uma forma de aceitação e sonha em seguir carreira como comissário de bordo.

O conquistense Jamme Costa tem 23 anos e traz consigo uma personalidade forte, olhar marcante e um sorriso contagiante. O jovem viveu sua infância no bairro Alegria, próximo ao famoso bairro Brasil, em Vitória da Conquista. Aqueles que o conhecem sabem que ele é um verdadeiro turbilhão de energia e está pronto para enfrentar qualquer desafio que a vida lhe apresente. Atualmente, trabalha como recepcionista de um hotel e sonha em se tornar comissário de bordo.

Jamme sempre sonhou alto. Em nossa conversa, ele me contou que tem a intenção de fazer um curso de inglês para aprimorar suas habilidades no idioma, visando um intercâmbio em Dublin, na Irlanda. Sua família sempre o encorajou a buscar novas oportunidades. E a escolha de Dublin como destino de seu intercâmbio se deu devido à disponibilidade de acomodação oferecida por uma pessoa que ele conhece na cidade. Mas Jamme não descarta a possibilidade de mudar essa decisão e passar a morar em outra cidade ou país.

O recepcionista acredita que a temporada no exterior irá aumentar suas chances de conseguir uma vaga na Fly Emirates, companhia aérea na qual ele almeja trabalhar um dia. Além de Conquista, já morou em Belo Horizonte (MG) e chegou a passar um tempo na Inglaterra, em busca de melhores condições de vida. 

Assim como eu, ele é uma pessoa gorda, e nós constantemente enfrentamos situações que prejudicam a nossa autoestima, nosso cotidiano e nossa qualidade de vida. Durante sua trajetória, o jovem sonhador teve que lidar com a gordofobia em várias ocasiões. Já lhe disseram repetidas vezes que ele precisava emagrecer por questões de saúde, perpetuando a ideia de que apenas pessoas magras são consideradas saudáveis. Ao pegar ônibus, por exemplo, frequentemente Jamme enfrenta dificuldade para encontrar um assento ao lado de outras pessoas, o que o faz se sentir desconfortável.

A gordofobia acontece desde a infância

Desde a infância, era alvo recorrente de bullying nos mais diferentes espaços de convivência, como a escola. Na sua família, onde todos são magros, ele sofre uma pressão estética constante, algo que dificulta o seu processo de autoaceitação enquanto pessoa gorda. Ele conta que existem dias em que se sente bem consigo mesmo, mas há outros em que se sente mal devido aos padrões impostos pela sociedade.

De acordo com o recepcionista, na Europa, as pessoas são mais respeitosas com pessoas gordas do que em Vitória da Conquista, onde ele afirma que, muitas vezes, as pessoas são insensíveis com aqueles que não se enquadram nos padrões estereotipados de beleza: “No exterior [onde viveu], a liberdade que você tem em relação ao seu corpo, sua sexualidade e a qualquer outra coisa é muito maior do que aqui. É algo incomparável, não há explicação para o quão mais livre você é lá fora… Então, não é só em relação a pessoas gordas, mas em todas as questões eles respeitam o ser humano de uma maneira mais ampla”, diz.

Ele também destaca que conseguiu trabalho informal em menos de uma semana durante sua estadia na Europa, devido à valorização das suas habilidades e competências, independentemente de sua nacionalidade ou aparência física. No entanto, Jamme menciona que, ao retornar ao Brasil e à sua cidade natal, encontrar trabalho em Vitória da Conquista foi uma das tarefas mais desafiadoras que enfrentou. 

O recepcionista levou cerca de dois anos procurando emprego antes de conseguir uma vaga no Hotel Ibis. Ele conta ainda que não sabe se a dificuldade de conseguir emprego ocorreu devido ao seu peso ou a outros motivos, pois ele possui capacitação, visto que concluiu os cursos de gastronomia, costura, desenho e fala outros idiomas. 

Jamme relembra que sofreu outra situação hostil: precisou interromper a sua frequência na academia após sofrer gordofobia. Entretanto, ele conta que não permitiu que essa experiência o impedisse de perseguir seus sonhos e objetivos. Atualmente, está em processo de aceitação do seu corpo e afirma que não pretende emagrecer na academia, mas sim frequentá-la por questões de saúde. Não se deixou abalar pela opinião dos outros e aceitou seu corpo como ele é, sem permitir que as críticas externas ditem sua autoestima.

Locais de hostilidade

Como pessoa gorda, eu compartilhei com Jamme algumas experiências de minha própria vida. Quando eu frequentava a academia em Vitória da Conquista, me sentia completamente deslocada por causa do meu peso. Era uma sensação estranha, pois parecia que todos os olhares eram julgadores e cheios de preconceito. Além disso, o instrutor parecia dar toda a atenção apenas para uma amiga magra que frequentava o espaço comigo, o que me fazia sentir ainda mais invisível e excluída. Infelizmente, essa situação acabou me levando a abandonar completamente a academia. Quando questionado se havia passado por uma situação semelhante, ele compartilhou sua experiência pessoal. 

No ano passado, Jamme decidiu voltar a malhar devido ao seu interesse pelo exercício físico. Porém, em uma ocasião, uma senhora lhe perguntou há quanto tempo ele estava frequentando a academia e, ao saber que era apenas um mês, comentou que não parecia. Essa experiência negativa o afetou profundamente, levando-o a abandonar a academia desde então, uma vez que reforça o estereótipo prejudicial de que pessoas gordas não pertencem aos ambientes de exercício e condicionamento físico.

Ao ser questionado sobre o tempo de frequência na academia e receber um comentário depreciativo sobre sua aparência, fica evidente como os estereótipos de beleza são enraizados na sociedade. Essas situações discriminatórias contribuem para a exclusão e o sentimento de não pertencimento que as pessoas gordas enfrentam nesses espaços.

Durante a nossa conversa, eu também compartilhei uma situação que vivenciei em um hospital que não tinha um equipamento adequado para realizar o exame de mapa de pressão em pessoas gordas. Infelizmente, o aparelho disponível me machucava muito e, quando solicitei uma solução para esse problema, fui informada que não havia opções alternativas disponíveis. Isso me fez refletir que a luta contra a gordofobia não se trata apenas de aceitação pessoal, mas também de conscientizar a sociedade sobre a existência de pessoas gordas e suas necessidades específicas.

Jamme explanou uma ocasião em que foi ao médico para uma consulta de rotina. Durante o atendimento, a médica perguntou se ele estava tomando algum medicamento. Ele respondeu que sim, explicando que estava fazendo tratamento para sua calvície precoce, utilizando remédios e suplementos. Antes mesmo de ele concluir a frase, a profissional assumiu erroneamente que ele estava tomando medicamentos para emagrecer e o questionou sobre isso.

O jovem esclareceu que não estava tomando nada para emagrecer, mas sim para tratar a queda de cabelo precoce que estava enfrentando. Isso me fez compreender que a gordofobia, infelizmente, está presente em todos os lugares. E entre os profissionais de saúde para com pessoas gordas é ainda mais grave, pois a negligência de sintomas, estereótipos negativos e falta de acessibilidade podem levar a diagnósticos equivocados, tratamentos inadequados e impactos negativos na saúde física, mental e emocional das pessoas gordas.

Ainda falando sobre experiências pessoais, citei que, quando me mudei para Vitória da Conquista, percebi que as pessoas daqui têm uma grande preocupação com o padrão estético, seja em relação ao corpo ou às roupas. Como uma mulher gorda que não se encaixa nesse padrão, me senti um pouco deslocada. Quis saber se Jamme também já se sentiu assim e se acha que a cidade é acolhedora ou se é apenas a minha percepção.

Ele afirmou que, em sua opinião,a cidade de Vitória da Conquista não é acolhedora para pessoas com gordas ou fora do padrão de vestimenta delas. A população local é bastante arrogante e, infelizmente, se você não se encaixa nos padrões estéticos da cidade, você é desvalorizado. Lembro-me de uma vez em que estava um pouco desarrumado e tentei entrar em uma farmácia para pedir informações, mas não fui bem recebido”.

Além disso, argumentei que, em algumas ocasiões, quando entro em uma loja de departamento, sinto como se não pertencesse àquele ambiente. As roupas parecem ter sido criadas para um tipo específico de corpo, deixando pouco espaço para a diversidade. Frequentemente, tenho dificuldade de encontrar roupas que me sirvam adequadamente e que me façam sentir bem. Já aconteceu comigo de encontrar algo que servisse, mas que não fosse do meu estilo ou que eu não me sentisse confortável usando. 

Jamme citou que a questão feminina em relação à moda plus size é conhecida por ser desafiadora, mas ele pessoalmente nunca enfrentou muitas dificuldades para encontrar roupas de tamanho grande. Na verdade, ele até fez um curso de costura para criar algumas peças que desejava, mas não encontrava no mercado. No entanto, ele geralmente usa roupas casuais. Ele acredita que os homens não enfrentam tantos problemas porque são mais aceitos pela sociedade quando são gordos do que as mulheres.

Nós dois sabemos que o processo de autoaceitação envolve reconhecer e valorizar a diversidade de corpos, desenvolver uma imagem corporal positiva e cultivar amor próprio. Requer autocompaixão, desafiar padrões estéticos impostos pela sociedade, cuidar da saúde física e mental, e adotar uma mentalidade de respeito e aceitação em relação ao próprio corpo, independentemente de seu tamanho ou forma.

É um processo contínuo que envolve aprender a valorizar a si mesmo e encontrar paz e felicidade no corpo que se tem. Jamme lembra que seu processo de evolução pessoal envolveu superar as opiniões negativas sobre seu corpo. Ele não se importa mais com comentários sobre seu peso e aparência, e se sente bonito e confiante mesmo sendo gordo. Agora, ele valoriza sua própria beleza e não se deixa afetar pelas expectativas externas. “Eu compreendi que as pessoas possuem maneiras de pensar distintas, e a minha é essa. Eu não vou mudar de repente sem uma grande razão”.

Jamme relatou também que, recentemente, terminou um relacionamento. Como um homem gay, ele compartilhou suas experiências relacionadas à gordofobia dentro da comunidade LGBTQIAP+. “Infelizmente, a comunidade LGBT também sofre com o problema da gordofobia. É muito difícil para pessoas gordas encontrar um parceiro amoroso ou mesmo amigos, pois muitas vezes são excluídas ou julgadas por não se enquadrarem em um padrão de beleza estabelecido pela sociedade. Essa imposição de padrões pode ser muito prejudicial e excludente, além de ser uma forma de machismo presente em todos os gêneros e orientações sexuais. Não importa se é gay ou hetero, mas ainda acredito que seja mais presente com os gays.”

A partir da nossa conversa, tive a percepção que ele está se tornando mais bem resolvido com o seu corpo, enquanto eu ainda tenho dificuldades com relação a isso. O perguntei como podemos desenvolver nossa autoestima e lidar de maneira eficaz com a pressão social em relação ao corpo. Ele ressaltou a importância de não se preocupar com o que os outros falam, pois ao não dar atenção, os comentários negativos tendem a diminuir. Para ilustrar essa ideia, ele compartilhou uma experiência pessoal. 

Anteriormente, quando ele se envolvia em discussões com as pessoas, era uma situação desgastante. No entanto, desde que passou a não se importar, as críticas cessaram. Ele enfatizou a importância de olhar para frente e não dar poder às palavras prejudiciais dos outros, pois essas podem afetar negativamente a autoestima.

Além disso, ressaltou que, muitas vezes, as pessoas não estão falando para ajudar, mas sim para ferir. Portanto, aconselhou a seguir em frente e fingir que essas situações nunca ocorreram. “Nós temos que nos autoafirmar e construir a autoestima aos poucos, tijolo por tijolo. Isso não significa que um dia vamos acordar e tudo estará resolvido, é um processo contínuo”, finalizou.

Foto de capa: Acervo pessoal / Jamme Costa.

Supervisão e edição da matéria: Victória Lôbo.

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