Especial REC Conquista | Qual a sua identidade? Ela é compreendida?
Por Afonso Silvestre* - 10 de março de 2023
Durante a programação da 2ª Semana de Projeção REC Conquista, trazemos em nosso site textos produzidos por professores, pesquisadores e críticos de cinema que refletem sobre os filmes e temáticas do evento.
Com o que você se identifica? Os debates e reflexões sobre identidade, ainda frágeis, carentes de suporte afetivo, epistemológico e metodológico, também teórico, tentam trazer à luz os entendimentos sobre quem somos, o que somos, a que lugar pertencemos ou que lugar nos pertence, com quem falamos, com quem lidamos. Acreditamos viver em crise de identidade, mas não é bem isso que acontece. Nossas identidades estão diante de nós, porém, nem sempre nos identificamos. Nosso problema é que vivemos uma crise de identificação.
Esta reflexão foi trazida como provocação, ao ser convidado para mediar uma conversa entre duas realizadoras sobre três filmes (por razões de acúmulo de agendas o terceiro realizador não pôde participar, embora o tema de seu filme tenha perpassado todo o bate-papo). O tema da conversa, o fio que costurava as três obras foi “cinema, política e sociedade: afirmando identidades”.
As obras em questão foram Não é só isso, de Yasmin Rocha, Pinote, de Rayane Teles e As memórias de um quilombo, de Rogério Sagui. Nahla, em Não é só isso, sabe de si, percebe que não tem que ser forte, mas sim resistente para suportar a carga de ignorância alheia que recai sobre seu corpo todos os dias. Pinote, o personagem do filme de Teles, também sabe de si, e faz as vezes de um Puck, um Erê, ou um simples palhaço que, para suportar seus fardos, vive de fazer as pessoas rirem dele e de si próprias.
Enquanto isso, um quilombo chamado Lagoa do João, no município de Poções, Bahia, vive, em sua história lenta, memórias das dificuldades, sofrimento, desassistência, esquecimento, invisibilidade, atraso, lembranças de trabalho infantil, analfabetismo, opressão que se reproduz no dia a dia, e dessas memórias tira a força necessária para enfrentar a vida. Esses quilombolas também sabem de si. Todos lutam contra a ignorância do outro.
São três histórias sobre entes que vivem sob o aspecto do não-olhar, o manto que torna invisíveis os ditos diferentes. Entes que têm sentimentos, inclusive dores, e emoções, que os movem em direção a seus desejos. Mas sua invisibilidade, a invisibilidade da sua condição humana, demasiado humana, das suas dores, é uma parede diante do seu desejo. Recai sobre elas as consequências da ignorância de um mundo inteiro, um mundo covarde, cruel, cheio de garras que ameaçam o tempo todo, por todos os lados.
Nos três casos, Nahla, Pinote e o Quilombo, os atores sofrem como consequência da ignorância alheia, da ignorância de quem, muitas vezes, vai depender o seu bem estar, a sua qualidade de vida, a sua autoestima. Porque entre o alheio está o Estado, coitado, absolutamente ignorante, incompetente. Porque eles, que sabem de si, e por isso deveriam ter mais amor próprio por conhecer-se, sua autonomia pode acabar tornando-se razão de angústia porque o conhecimento não pode ser compartilhado. Afinal, todos têm um preconceito que nunca foi trabalhado e ele, há muito, se tornou um animal assustador em algum lugar recôndito do sujo inconsciente.
Nahla quer que suas relações sejam comuns, quer ter acesso aos serviços públicos de que necessita. Sim, ela é carente de políticas públicas e entendimento. Pinote e os habitantes do quilombo também. De que adianta entender-se? Pedir a Deus para morrer sem sentir dor, não sentir-se capaz de ser o que sente e quer ser. Depois, a coragem de não morrer, e, mesmo vítima do ódio ao redor, permitir que as experiências a moldem enquanto pessoa que dia a dia entende melhor que cada um é uma ilha de sofrimentos, idiossincrasias, ideias, desejos, devires. A grandeza que indivíduos podem ter ao compreender a possibilidade e a dimensão do sofrimento alheio, não obstante o próprio sofrimento.
Família nem sempre é um lugar seguro. É o primeiro lugar a nos oprimir. É na família que aprendemos o que é o mal, a dor, o sofrimento, a repressão, a culpa, e muitas vezes isto vem sob a forma do cuidado. Se não fossem as defesas naturais do intelecto das crianças, todas teriam se tornado loucos incuráveis diante das violências cometidas por amor e ignorância dos pais? Depois, vêm a Igreja e o Estado para reforçar e assegurar que nos mantenhamos, em vida, devidamente oprimidos e “cuidados”. Assim foi com Nahla, assim foi também com Pinote. Pinote é um cara que percebe o outro. Ali, por trás da máscara dos seus personagens, ele confirma, protegido, que o mundo é mesmo insano. Protegido pela máscara e pelo codinome, ora Pinote, ora Juvenal, em oposição ao nome real que rima com o do pai e por isso ele não usa mais.
Pinote não se importa. É abusado e seus conteúdos são memórias de intensidade. “ET’s filosofando em yorubá”, ninguém vai entender, mas, ora… foda-se! Há um personagem da ópera Il Pagliacci, de Leoncavallo, que, em cena, vive a realidade mas o público não percebe e ri, grita Bravo! Pinote, o Juvenal, está vivendo sua felicidade e seu gozo no meio da rua, na frente de todo mundo. Como “o diabo na rua, no meio do redemoinho” do desespero de Riobaldo ao ver o corpo morto e nu de um Diadorim mulher. Estava ali desde sempre. Por isso ele não se importa. Por estar ali desde há dez mil anos e não pode haver nada neste mundo que ele não saiba a respeito. Todos riem, ninguém faz ideia da piada.
Cannio, o personagem que faz Il Pagliacci, às vezes se olha no espelho e diz a si mesmo que não passa de um palhaço, mesmo ele que sabe de si e seu valor. Como Nahla e Pinote, cansam de saberem de si, algo de fato valoroso, mas sem serventia numa sociedade ignorante. Na distante comunidade de Lagoa do João, as pessoas se reconhecem e aceitam a si próprias em suas diferenças religiosas ou quaisquer outros tipos de orientação. Inclusive, a união entre religiões da maneira como ocorre ali só é imaginável num quilombo. Da mesma forma se observa, não apenas ali mas também em outros quilombos, uma propensão maior a aceitar o outro em suas particularidades e diferenças.
O que leva uma comunidade remanescente de quilombo à angústia é o fato da sua legitimidade ser reconhecida apenas por si mesma, como acontece com Nahla e Pinote. O Estado cria políticas públicas e até dá um nome para ser etiquetado e colado em alguma gaveta orçamentária. Dá um nome, mas o conceito é como uma colcha de retalhos que surge a posteriori, em consequência do frio inesperado, no caso da colcha, ou da necessidade da política, no caso do nome a ser colocado na gaveta.
Resumindo. Uma coisa (ruim) é o Estado conhecer o povo e proibir o mesmo de se conhecer. Outra coisa (pior) é o povo que se reconhece ser vítima da ignorância do Estado. A humilhação é suprema, e isso acontece com povos e indivíduos ao longo da história, de forma tão violenta que nos tira as forças, mas o orgulho das gentes faz a sua resistência, a sua resiliência, a sua permanência. Mas não tem sido possível viver sem sofrer desde o início dos tempos.
*Afonso Silvestre é historiador, foi coordenador de políticas para populações LGBTQIA+ e atualmente trabalha com comunidades tradicionais, onde realiza projetos e conversas sobre memória e identidade.
Foto de capa: Reprodução / TV Povo / As memórias de um quilombo vivo.
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