Erro do IBGE? O que é afroconveniência e porque esse tema foi central para as eleições de 2022 na Bahia
Por Letícia Mendes - 1 de novembro de 2022
O fenômeno acontece quando pessoas brancas se apropriam de um pertencimento étnico-racial para usufruir indevidamente de benefícios sociais, financeiros e eleitorais.
Um caso de suspeita do uso indevido de cotas eleitorais movimentou as redes sociais no 1º turno das eleições para o cargo de governador da Bahia. O ex-candidato ACM Neto, do União Brasil, foi acusado de se autodeclarar pardo para promover a própria campanha com os benefícios destinados ao incentivo de candidaturas negras, conforme decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que passou a valer este ano.
Durante debate na TV Bahia, no dia 27 de setembro, ACM teve sua autodeclaração questionada pelo então adversário João Roma (PL), que chamou o ex-prefeito de Salvador de “afroconveniente”. Após a repercussão do programa, Neto deu uma entrevista na TV Bahia com a aparência bronzeada e questionou os critérios de declaração racial definidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “Eu me considero pardo. Você pode me colocar ao lado de uma pessoa branca, há uma diferença bem grande”, afirmou.
O ex-candidato do UB se autodeclara pardo desde 2016, mas, naquele ano, não houve repercussão generalizada em torno do assunto. No entanto, Ana Coelho (Republicanos), sua vice na chapa, resolveu mudar a autodeclaração de branca para parda, em 2022, o que chamou ainda mais atenção para o caso do próprio ACM.
Inversão identitária
Essa não é uma situação isolada, já que mais de 1.380 candidatos que disputaram cargos no pleito de 2018 também alteraram a sua autodeclaração racial para concorrer este ano. De acordo com um levantamento realizado pela CNN, com base nos dados do TSE, a mudança que mais ocorreu foi a de branco para pardo, feita por 547 políticos.
Dentre os 39 candidatos a deputado federal que foram eleitos na Bahia, cinco alteraram a sua declaração racial de branca para parda em 2022: Alice Portugal (PCdoB); Félix Mendonça (PDT); Cláudio Cajado (PP); José Rocha (UB) e Elmar Nascimento (UB).
Os candidatos conquistenses que foram reeleitos este ano também se autodeclaram pardos. O deputado federal Waldenor Pereira (PT) se autodeclara pardo desde 2014. Fabrício Falcão (PCdoB), reeleito para a Assembleia Legislativa da Bahia (Alba), também se autodeclarou pardo em 2014 e mantém a identificação até hoje.
Já o deputado estadual José Raimundo Fontes (PT) mudou sua autodeclaração algumas vezes ao longo das últimas eleições. Declarou-se preto pela primeira vez nas eleições de 2014. No entanto, no pleito para prefeito, em 2016, ele alterou sua declaração racial para branca. Em 2018, identificou-se como preto novamente. Neste ano, na sua ficha eleitoral, permanece a cor/raça preta.
Afroconveniência eleitoral
O debate sobre a representatividade negra e as tentativas de inviabilizar sua importância histórica e social ficou em evidência durante as eleições 2022, que se encerraram neste último domingo, 30. Um termo muito citado em meio ao pleito foi afroconveniência eleitoral. Trata-se de um fenômeno no qual pessoas brancas requerem a si “um pertencimento étnico-racial para usufruir indevidamente de benefícios sociais, financeiros e eleitorais”, explica a professora de Ciências Sociais, Núbia Regina Moreira, docente na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em Vitória da Conquista.
Na disputa eleitoral deste ano, as suspeitas de afroconveniência vieram acompanhadas de estatísticas surpreendentes. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pela primeira vez desde 2014, quando foi instituída a autodeclaração racial, o número de candidaturas de pessoas que se identificam negras superou o de pessoas autodeclaradas brancas, o que representa 49,49% do total de requerimentos.
Durante as eleições gerais de 2018, o percentual de candidaturas negras foi 46,56%, enquanto a porcentagem de candidatos declarados brancos foi 52,46%.
Os dados chamam atenção, especialmente, por se fazerem presentes após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de equilibrar o fundo eleitoral entre negros e brancos, obrigando os partidos políticos a dividirem os recursos de campanha de forma proporcional entre candidatos de ambas as cores/raças, incluindo o tempo de propaganda eleitoral na TV.
Outra medida que busca incentivar a eleição de negros e negras aconteceu através da Emenda Constitucional nº 111, aprovada em setembro de 2021. A resolução dispõe de um Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Segundo o Portal da Câmara dos Deputados, com a emenda, os votos dados a mulheres e pessoas negras contam em dobro para a distribuição de verba do Fundo Eleitoral entre os partidos políticos.
No pleito de 2022, de acordo com dados disponíveis no site de divulgação de candidaturas e contas eleitorais, ACM Neto recebeu R$16.717.577,27 de Fundo Especial (FEFC), o que corresponde a 63,69% do total líquido de recursos recebidos (R$26.248.741,27).
Para o professor e militante do Movimento Negro, Herberson Sonkha, a autodeclaração de ACM Neto foi uma forma do ex-candidato usufruir de recursos financeiros para vencer a disputa eleitoral dentro de um sistema capitalista burguês. “Alguma pessoa branca iria querer ocupar esse lugar do oprimido, explorado, racializado, exterminado, criminalizado e hostilizado, senão para acessar recursos que o manteria no espaço de poder?”, questiona.
Apesar da polêmica envolvendo a autodeclaração de Neto ter perdido força conforme a disputa foi se estreitando, segundo o historiador Belarmino Souza, o episódio impactou sob sua popularidade entre os eleitores. “Ele tinha uma forte base eleitoral na capital baiana. Mas não podemos esquecer que Salvador é a maior cidade negra fora da África. Por isso, o oportunismo barato do qual ele lançou mão ao se afirmar pardo, com o intuito de criar uma falsa identidade com a população baiana, especialmente com os soteropolitanos, lhe custou caro”, afirma.
“Negação do racismo”
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pesquisa a cor/raça da população brasileira com base na autodeclaração. Isso significa que as pessoas são questionadas sobre como se identificam e precisam escolher entre branca, preta, parda, indígena ou amarela. No âmbito da política, os registros de candidatos seguem o mesmo modelo do IBGE.
Diferentemente do que acontece com as candidaturas femininas, que devem representar, no mínimo, 30% dos nomes lançados pelos partidos, não existe uma cota estabelecida para candidatos negros. Portanto, nesse cenário eleitoral, não há medidas de fiscalização da autodeclaração previstas por lei. O que pode acontecer, eventualmente, é a punição por falsidade ideológica, conforme prevê o Código Eleitoral.
Para a professora Núbia Regina, qualquer tentativa de fraudar a documentação racial é uma conduta oportunista de grupos que tentam atacar as conquistas por igualdade racial obtidas pelo movimento negro. “Há uma tentativa de negação do racismo, do privilégio branco, e uma ofensiva contrária em garantir o acesso de políticas de ações afirmativas (cotas) à população negra.”
Foto de capa: Reprodução.
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