Belarmino Souza: “O que está em jogo agora é o futuro da democracia”

Por - 28 de outubro de 2022

Às vésperas do 2º turno das eleições 2022, o historiador destaca a importância da votação que ocorre neste domingo, 30, e faz uma análise sobre o cenário político a nível federal e estadual.

Doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Belarmino de Jesus Souza é professor e pesquisador, e tem se dedicado ao estudo da política e das relações internacionais. Em sua dissertação de mestrado, se debruçou sobre o cenário político conquistense, mais especificamente o período da Primeira República, entre 1889 e 1930. Já no doutorado, voltou o olhar para os governos de José Pedral, desde sua primeira eleição até a última, com ênfase na ditadura empresarial militar e seus reflexos em Vitória da Conquista.

Na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), integra o quadro de docentes do Departamento de História. Nos últimos dez anos, tem pesquisado sobre as relações entre Brasil e Portugal, especialmente a respeito da ditadura do estado novo português. Além disso, vem acompanhando a vida política a nível municipal, estadual e federal.

Às vésperas do 2º turno das eleições 2022, em entrevista ao Conquista Repórter, Belarmino falou sobre o avanço conservador no Congresso brasileiro, o projeto político declaradamente autoritário de Jair Bolsonaro, a importância do processo eleitoral que se encerra neste domingo, 30, e sua análise sobre o pleito para o Governo da Bahia.

CR: Compreendendo a situação atual do nosso país, como é possível interpretar o cenário político e entender o avanço conservador e fundamentalista?

Belarmino Souza: O conservadorismo se faz presente na sociedade desde sempre, ligado às elites agrárias, à defesa, no passado, da preservação da escravidão, e depois com a abolição, à insistência na permanência do latifúndio. Nós temos também setores médios urbanos que têm um temor patológico de qualquer ascensão social das camadas subalternas. Portanto, esse quadro é antigo. Outra coisa importante a considerar é que temos uma cultura política bastante marcada pelo tradicionalismo familiocrático, ou seja, o domínio de famílias no cenário político. Além disso, há uma política que controla, nos rincões, através de lideranças, boa parte do eleitorado. Só que existem coisas novas emergindo, como por exemplo, o conservadorismo ligado à questão religiosa. Temos uma pauta criada em cima de supostos princípios morais e éticos, que, na verdade, apresenta uma leitura distorcida da religião para justificar o apoio às lideranças mais conservadoras. E o que mais existe de novo? O surgimento de um candidato, em 2018, que deu voz e rosto aos segmentos conservadores pré-existentes na sociedade.

CR: Nas eleições para o Legislativo deste ano, esse avanço conservador ficou muito claro, com a eleição de nomes como Damares Alves e Sérgio Moro para o Senado. O que podemos esperar dos próximos anos diante de votações e até da manutenção da Constituição Federal de 1988?

Belarmino Souza: Um Congresso brasileiro majoritariamente conservador não é novidade. Nós sempre tivemos a bancada ligada ao agronegócio, a bancada da bala, a bancada evangélica. Nunca houve a rigor um Congresso brasileiro com predomínio de forças progressistas. Aquela política tradicional de controle dos currais eleitorais, da tradição familiocrática, do controle dos rincões Brasil afora, acaba produzindo bancadas conservadoras. Só que agora há uma identidade muito clara, especialmente pela votação que teve o Partido Liberal, o PL, ao qual se filiou o presidente. Essa maioria conservadora no Congresso, na Câmara e no Senado, pode abrir a possibilidade de retrocessos, inclusive de retirada de conquistas relevantes da Constituição Federal. Existe esse risco, que se torna maior caso ocorra a reeleição do presidente Jair Messias Bolsonaro. Nesse cenário, nós teríamos um Executivo controlado pela extrema direita, um Legislativo também com predomínio de direita e extrema direita. Com isso, ele [Bolsonaro] teria todo o instrumental, inclusive, para intervir no Judiciário, podendo aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), indicar aqueles que se identificam com seu projeto ultraconservador ou tentar afastar outros de suas posições. Quando você tem um projeto político controlando os três Poderes de Estado, se configura um quadro de ditadura. Daí porque esta eleição de 2022 tem se tornado a mais importante desde a redemocratização. Antes o que estava em jogo era qual seria o modelo de gestão: liberal com menor presença do Estado, com maior abertura à iniciativa privada, ou um projeto nacional de desenvolvimento com maior presença do Estado. Era isso o que estava em questão antes, mas todos no campo democrático. Agora nós temos um projeto político declaradamente autoritário. O atual presidente defendeu a ditadura. Ele apontou como herói, quando foi votar o impeachment da presidente Dilma Rousseff, um militar torturador. Ele declarou que a ditadura tinha que ter matado mais trinta mil, e se morresse alguns inocentes, não tinha problema. E já anunciou várias vezes o desejo de intervir nos outros Poderes. É um risco muito grande que corre a sociedade brasileira, o estado democrático de direito e a nossa democracia. E as pessoas não percebem o que isso representa. O que está em jogo agora é o futuro da democracia e isso não está sendo um caso único no Brasil. Algo semelhante ocorreu na Hungria e na Polônia. E vale lembrar que nos Estados Unidos, a mais antiga e consolidada democracia, houve também investida de tarefa golpista. Quando Donald Trump perdeu nas urnas, ele tentou articular com as suas milícias armadas uma tentativa de impedir a posse do Biden. Se nos Estados Unidos a democracia esteve em risco, imagine no Brasil. Portanto, essa eleição se transforma em um ponto crucial. Defender as liberdades democráticas perpassa por esse processo eleitoral.

CR: Ainda falando sobre o 1º turno das eleições 2022, muita gente se assustou com a ampla votação para o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), mesmo com o aumento da fome, do desemprego e as questões relacionadas à pandemia da covid-19. Na sua visão, o que ainda faz ele ter tanto apoio entre a população?

Belarmino Souza: Ele catalisa diferentes vertentes conservadoras. O agronegócio de prática não sustentável, o setor do desmatamento, do garimpo ilegal, da grilagem de terra, milícias do Rio de Janeiro. E também aquela classe média que se sentiu atingida quando viu, durante os governos do Lula e da Dilma, uma ascensão da classe trabalhadora em termos de poder de renda e aquisição de bens e serviços. São pessoas que sentiram que estavam perdendo status quando viram o filho do porteiro indo para a universidade e a empregada doméstica viajando de avião. Junto ao presidente, vamos encontrar também o fundamentalismo religioso. Jair Messias Bolsonaro é aquele indivíduo capaz de representar os anseios e bandeiras desses grupos que citei. Por outro lado, estamos diante de um Brasil que voltou a matar pela fome. Eu vivi um tempo em que as pessoas saíam batendo de porta em porta pedindo comida. Isso desapareceu durante o governo do PT (Partido dos Trabalhadores). As políticas sociais permitiram a integração e o acesso a bens e serviços. Mas agora essa realidade está de volta. Quantas vezes a gente não passa na rua à noite e vê senhoras, já com uma certa idade, acompanhar seus filhos pequenos ou netos no recolhimento de reciclagem? Temos pessoas disputando ossos para comer. Além disso, uma situação mais grave ainda foi a pandemia. Inclusive, os dados são importantes para nos fazer refletir. O governo Bolsonaro claramente desenvolveu uma política que foi na contramão das evidências científicas. Ele optou pela imunidade de rebanho. O que significa isso? Você deixa o vírus se disseminar e, quando ele contamina 70% ou mais da população, naturalmente perde força. Mas isso é de extrema crueldade. Nós temos uma população de 217 milhões de habitantes. Com a aplicação da imunidade de rebanho, 150 milhões de brasileiros seriam contaminados. Esse quantitativo representa a população das regiões sudeste, nordeste e norte. Ora, pense bem, no Brasil, nós tivemos 35 milhões de contaminados pela covid-19, o que dá cerca de 14% da população. Imagine a tragédia que seria se 70% dos brasileiros fossem contaminados. Por isso, quando o presidente é acusado de ser um genocida, não se trata de força de expressão. A ex-esposa do ministro Pazuello declarou à imprensa que o governo optou por usar o estado do Amazonas como laboratório para o que seria a imunidade de rebanho. Foi uma prática criminosa. Bolsonaro incentivou as aglomerações e sabotou o trabalho dos governadores e prefeitos. A prova clara de que a gestão da pandemia foi uma prática criminosa é que o Brasil tem cerca de 4% da população mundial. Mas nós tivemos mais de 11% dos mortos por covid-19. Diante de tudo isso, fica a pergunta: como as pessoas ainda apoiam esse candidato? Meu filho é um jovem advogado e ele tem a teoria da chamada anestesia moral. É tudo muito óbvio, mas as pessoas negam. Para compreender esse nível de fanatismo e cegueira moral, vamos ter que estudar muito o que aconteceu.

CR: Desde o início da campanha para o 2º turno das eleições 2022, aumentou a violência política e a quantidade de disseminação de informações falsas através das redes sociais. É possível que isso interfira nos resultados das eleições? Qual a sua avaliação desse cenário e da votação que acontece no próximo domingo, 30?

Belarmino Souza: Precisamos entender que a extrema direita, os fascistas de um século atrás e os neofascistas de hoje, sabem lançar mão das novas mídias. No século passado, o fascismo se apropriou da transmissão via rádio para atingir toda a Itália com os discursos do Benito Mussolini. A Alemanha nazista também se utilizou do cinema. Praticavam o uso das novas mídias que podiam atingir todos os públicos, os alfabetizados e os iletrados. Cem anos depois, demorou-se a perceber o poder das redes sociais nas decisões dos processos eleitorais. O primeiro impacto sentido aconteceu no Reino Unido, durante a votação que iria decidir sobre a permanência ou não dos países na União Europeia (UE). Uma enxurrada de fake news levou ao voto, que considero equivocado, a favor da saída da UE. Nos Estados Unidos, em meio à disputa entre Donald Trump e Hillary Clinton, mais uma vez uma enxurrada de fake news surgiu. Inventaram até que a candidata era dona de pizzarias que, na verdade, funcionavam como uma rede de prostituição infantil. Era tudo mentira. Só que no exterior, o fenômeno do compartilhamento de notícias falsas aconteceu via Facebook, aqui no Brasil, o meio principal é o WhatsApp. Em nosso país, mesmo com todas as medidas para tentar combater esse cenário, as fake news ainda geram um impacto nas eleições. Por isso, temos que estar alertas, sempre checar as informações e não difundir qualquer coisa.

CR: A Bahia também passará por um segundo turno e há a possibilidade de ser eleito um novo governo carlista. Como o senhor compreende esse cenário estadual?

Belarmino Souza: A presença do neto de Antônio Carlos Magalhães disputando uma eleição é mais uma comprovação do tradicionalismo familiocrático. É um exemplo das famílias que, por gerações e décadas, controlam o cenário político. Mas sobre o quadro estadual, percebo que ACM Neto não tem a capilaridade que o avô construiu. Ele não possui alianças por todo o estado ou uma boa projeção de liderança. Isso ficou provado durante o processo eleitoral. Nas eleições da Bahia, o candidato tem que ter uma forte base em cidades como Salvador, Conquista, Itabuna e Ilhéus, mas também precisa de uma aliança com o sertão. Neto não conseguiu construir isso. O outro lado tem o capital político dos governadores do PT (Partido dos Trabalhadores), constituído através das grandes obras infraestruturais, como metrôs e estradas. Há também o forte capital político dos senadores Jaques Wagner e Otto Alencar. Tudo isso acabou determinando a projeção de Jerônimo Rodrigues para o segundo turno. E esse capital político foi ampliado. Muitos prefeitos do interior já debandaram, temendo ficarem distantes do Governo do Estado e da capacidade de articulação dos senadores. Alguns já abandonaram a candidatura de ACM Neto e aderiram à campanha de Jerônimo. Então, acredito que a tendência, no 2º turno, é que haja uma confirmação do que aconteceu no primeiro. 

CR: O candidato ACM Neto (UB) passou por uma onda de polêmicas relacionadas à sua declaração como pessoa parda para o IBGE. Como o senhor avalia essa questão da afroconveniência e a redução da popularidade do candidato na Bahia?

Belarmino Souza: O ACM Neto se qualificou como candidato, nem tanto por ser neto de Antônio Carlos Magalhães, mas porque fez administrações de boa qualidade em Salvador. Então, ele tinha uma forte base eleitoral na capital baiana. Mas não podemos esquecer que Salvador é a maior cidade negra fora da África. Por isso, o oportunismo barato do qual ele lançou mão ao se afirmar pardo, com o intuito de criar uma falsa identidade com a população baiana, especialmente com os soteropolitanos, lhe custou caro. O desgaste foi grande, especialmente numa região do estado onde ele teria forte peso eleitoral. Foi um erro crasso que lhe custou muitos votos. Na verdade, nós vemos isso também no Governo Federal. O presidente se diz evangélico, mas vai na igreja católica, na sinagoga, na maçonaria, e as pessoas percebem essa falta de identidade. Portanto, ao negar sua autenticidade, você acaba perdendo capital político. Foi o que aconteceu no caso do ACM Neto. Outra coisa importante de se destacar é que, nessa disputa, o que qualifica Jerônimo não é o seu nome exatamente. Mas sim a sequência de êxitos da administração do Partido dos Trabalhadores (PT) na Bahia. Eu digo com muita serenidade e a maior isenção que, em termos de investimento infraestrutural, de fato, o maior da história aconteceu nos governos do PT. Em Salvador, temos o metrô e todas as outras obras que ocorreram por ali. Em Ilhéus, a promessa da ponte ligando o Centro ao Pontal era antiga, e só foi efetivada nesse governo [de Rui Costa]. Quando a gente anda pelo estado, percebemos como essas obras têm impacto na vida dos baianos. E tudo isso reflete no que vimos no primeiro turno, com Jerônimo quase vencendo a disputa. 

CR: Como o senhor observa o Brasil e a Bahia quanto às expectativas para os próximos anos, em relação aos avanços de direitos fundamentais e a manutenção dos direitos já existentes?

Belarmino Souza: Quando o mundo passou a viver a chamada onda neoliberal, que começa no final dos anos 70 e início dos 80, com Reagan nos Estados Unidos e Thatcher na Grã-Bretanha, e depois se alastra com o Acordo de Washington, o que se buscava reverter era o estado de bem-estar social. Os direitos trabalhistas e sociais que haviam sido conquistados durante a chamada idade de ouro. Mas agora tem algo diferente, existe uma investida de uma extrema direita que direciona o seu ódio não apenas contra os direitos trabalhistas, como foi com o neoliberalismo, mas aponta para reverter as conquistas do campo dos direitos civis. Sabe aquele discurso de que bandido bom é bandido morto? Ou aquela história de que reclamação contra um ato racista, misógino ou homofóbico, é “mimimi”? É uma tendência e não apenas no Brasil. Portanto, é algo preocupante quando você tem um Congresso com esse perfil ultraconservador, de extrema-direita, que pode investir nesse sentido. Por isso eu falo que essa eleição é de grande importância. Está em jogo o estado democrático de direito e a própria democracia. Com esse Legislativo, precisamos derrotar a direita no Executivo. Isso permitirá um certo equilíbrio de poder e poderá ser um ponto de barreira. Já o cenário na Bahia, eu vejo com esperança. Acredito que o estado vai continuar progredindo em termos de progresso econômico, avanço infra estrutural e conquistas sociais. Mas eu não sou daqueles que acham que a vitória é a porta do céu e a derrota é a descida do inferno. É sempre um processo. Além disso, temos que lidar com as contradições e entender que, talvez, a eleição do Bolsonaro, em 2018, tenha prestado o grande serviço de revelar a cara da sociedade brasileira. De lá para cá, as pessoas ficaram à vontade para se revelar verdadeiramente. Para a minha surpresa e meu pesar, vi isso acontecer com pessoas próximas a mim. É como diria o poeta Cazuza: “Brasil, mostra a tua cara”.

Foto de capa: Arquivo pessoal

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