Artigo | O genocídio palestino e a moção de quatro linhas do Legislativo conquistense

Por - 26 de fevereiro de 2024

Por conta da cegueira político-religiosa da extrema direita, uma guerra no Oriente Médio vai entrar no rol de temas das eleições deste ano para prefeitos e vereadores.

Desde que o Estado de Israel tornou-se uma nação autônoma, sempre foi grato ao Brasil pelos esforços do diplomata Osvaldo Aranha que, em 1947, desempenhou, como presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, o papel de aprovar a resolução que recomendava a partilha da Palestina em dois estados independentes, um judeu e outro árabe. O diplomata brasileiro, que foi o primeiro presidente do Conselho de Segurança da ONU, trabalhou nos bastidores e garantiu o voto favorável de países latino-americanos e outras nações que inicialmente estavam indecisas ou inclinadas a se opor à proposta. Este desempenho foi fundamental para o sucesso da resolução, aprovada em 29 de novembro de 1947, que estabeleceu as bases legais para a criação do Estado de Israel em 1948.

Como presidente do Conselho de Segurança da ONU, Aranha desempenhou um papel importante nas negociações de cessar-fogo entre Israel e seus vizinhos árabes, após a declaração de independência do Estado judeu. Israel já iniciou sua existência de forma belicista. Suas primeiras ações foram ataques contra palestinos e tomadas de território, criação de guetos e condições subumanas de vida. Miséria, doença, fome e ataques em massa contra civis indefesos. Esta história está disponível para um(a) que, em perfeito juízo, queira discutir a questão judaico-palestina.

Raramente políticos criticam a política sionista de extrema direita israelense. Uma tradição que tem dado a eles a liberdade para manter os palestinos em condições desumanas. Da mesma forma, Hitler, ao invés de repreensão, recebeu elogios de Winston Churchill, e muitos investimentos por empresários europeus, inclusive semitas. Tirando os povos palestinos, que sofrem na pele a violência do governo de Israel, normalmente, ninguém na política se arrisca a criticar fatos como a existência de uma pilha de 30 mil corpos de mulheres, idosos e crianças. Mas Luiz Inácio Lula da Silva o fez, quebrando tradição. Netanyahu, primeiro ministro israelense, ficou dodói com a fala.

De fato, não obstante Israel esteja combatendo terrorismo com terrorismo, a comparação do Lula foi desproporcional. Afinal, nos cerca de 72 meses da Segunda Guerra Mundial, a extrema direita alemã matou 6 milhões de judeus, o que dá cerca de 80 mil por mês, ou 320 mil em quatro meses. Já os judeus nem mataram tanto assim nos últimos quatro meses (contém ironia), foram 30 mil crianças, mulheres e idosos, nenhum terrorista nessa conta. O que dá em torno de 7.500 palestinos mortos por mês. Se persistem na matança por 72 meses, como os nazistas fizeram com eles, terão matado ao final “apenas” 540 mil palestinos civis e inocentes (mais uma vez, contém ironia).

Mas existem muitas razões para a fala do presidente brasileiro, e eu diria que ela foi bem colocada por ter como consequência imediata o isolamento progressivo do primeiro ministro de Israel, verdadeiro alvo do discurso contundente. O recalque foi tão grande que Netanyahu chegou a anunciar um rompimento de relações com o Brasil, e iniciou uma série de ataques “informais”, ele e seu staff, através de redes sociais. Seguiu-se uma série de atitudes passionais, entre elas uma reprimenda diplomática desenhada para constranger um diplomata brasileiro. O pavor de se ver colocado no lugar do seu algoz do passado gerou atitudes completamente inconsequentes.

Para além das consequências econômicas futuras, há questões práticas, do interesse mundial. É preciso cessar a matança de civis em Gaza, sob o risco dela se espalhar pelo Oriente Médio, em primeiro lugar. Assim será possível negociar a paz. Não se negocia paz enquanto se guerreia. Neste momento em que a conjuntura anuncia uma duração maior para aquele conflito, e considerando a má vontade dos Estados Unidos ao vetar recentemente resoluções de paz (embora, após a fala de Lula, venha acenando favoravelmente para um cessar fogo), um líder no mundo [Lula] resolve colocar, de forma contundente, a gravidade da situação de mortes de inocentes, dezenas de milhares.

Quando apresentei os números de mortes no 4º parágrafo deste texto (de forma irônica), foi para mostrar que a matança de uma grande quantidade de pessoas de um mesmo povo é, sim, algo bastante grave. Não importa se tenham acontecido contra judeus no passado ou contra palestinos hoje e desde que foi criado o Estado de Israel há 76 anos. O Hamas provocou Israel com atos terroristas, incitou a praticar este genocídio. Mas já era um desejo expresso pela nação judaica eliminar os palestinos da região. Qualquer pessoa que acompanha minimamente, conhece pelo menos alguns detalhes desta história.

Qualquer pessoa que entenda de política, ou até mesmo a exerça, comete um pecado ao deliberar sobre algo que não conhece. Certa vez, conversava com uma amiga, e ela, ao citar o livro Exodus (Leon Uris, 1958), disse que os judeus nunca deveriam ser atacados. Curioso é que o livro trata da saga judaica até o ano de 1947, tempo até o qual eles tinham sido vítimas, quando se tornam uma nação independente. Foi justamente a partir dali que o país assumiu uma posição de algoz dos povos árabes ao redor.

A fala do presidente brasileiro não parece ter sido inconveniente ou intempestiva, pelo contrário, foi contundente diante de uma situação gravíssima, os assassinatos de civis cometidos por Israel, entre os quais não há sequer um terrorista do Hamas. Considerando o seu efeito imediato, a declaração gerou um anúncio de mudança de intenções dos Estados Unidos, e a adesão de outros países que até então observavam calados os assassinatos dos dezenas de milhares de inocentes na Faixa de Gaza.

A fala foi oportuna porque existe a necessidade de políticos terem coragem para defenderem a vida diante das injustiças, e serem contundentes em casos graves. Ir na direção contrária, a favor da continuidade das mortes, é ser a favor das mortes. Na década de 1930, ninguém na política levantou a voz contra o nazismo, apenas cientistas e filósofos. A Segunda Guerra Mundial poderia ter sido evitada.

Uma outra razão para a fala do presidente brasileiro é simples. Todos sabem que é uma política genocida, o próprio Estado de Israel afirma que não há lugar para a Palestina ou para os palestinos no mundinho do sionismo de extrema direita. Desde 1948, o país tem demonstrado isso com uma chacina após outra. Sendo assim, basta que alguém mais corajoso faça um barulho e estimule os mais tímidos a dizerem o que pensam sobre o assunto.

Após o reboliço que a declaração de Lula gerou diante a opinião pública, esvaiu-se a fumaça e restou uma fala digna, parada no ar, chamando Israel à responsabilidade de parar de exterminar o povo palestino. Restou um rei nu no Twitter, expondo ignorância, falta de educação e incapacidade diplomática, mentindo, inclusive, ao modo da extrema direita pelo mundo. Felizmente, após algumas horas, os juízos a respeito se restabeleceram e a voz do presidente brasileiro passou a ser reproduzida por outras nações. Outro motivo para não acreditar que aquela fala foi intempestiva.

Um levantamento feito pela Arquimedes, empresa que realiza monitoramento e avaliação de performance e estratégia, mostra que, no domingo, 18, dia em que Lula comparou o conflito com o Holocausto, as menções negativas representavam 57% do total. Porém, já na segunda-feira, 19, as menções positivas passaram a representar 61%.

Nesta altura do campeonato, diante de todo o desdobramento, devido ao nível de ignorância sobre o que ocorre, os detalhes e a história daquele conflito, o Legislativo conquistense aprova “moção de repúdio”, com quatro linhas de texto (parece piada), à atitude do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de criticar de forma contundente o genocídio cometido pelos israelenses em Gaza.

Uma moção de quatro linhas. Um documento com ausência de argumentação, de justificativa para o injustificável, que é repudiar quem condena o assassinato em massa e propõe o fim de uma matança para que haja negociação. Uma ação de repúdio à mesma pessoa que condenou o ataque terrorista do Hamas em outubro do ano passado.

As pautas defendidas pelas extremas direitas, sejam elas da caatinga baiana, de Tel Aviv ou de Brasília, são incríveis (contém ironia). Defesa da violência, da morte, opção pela crueldade e falta de empatia pelo outro. Uma moção de quatro linhas que sequer se digna a explicar, ou tipificar, a pilha de dezenas de milhares de corpos que morreram por estarem no caminho das bombas de Israel. Uma moção que também não explica por que Israel tem o direito de matar dezenas de milhares de pessoas inocentes.

Falar em moção de quatro linhas é lembrar-se, inevitavelmente, do ex-presidente, hoje inelegível, prestes a ser preso após legítimo processo legal, com direito a contraditório e todo o ritual (antes que algum aventureiro revolucionário diga alguma coisa). Aquele sujeito chegou a sugerir algumas vezes que a Constituição tem quatro linhas, e nunca houve ninguém daquela imensa família para avisá-lo do fato de que o documento é muito mais complexo, e que ele o desrespeita há pelo menos 37 anos.

Existe também a confusão que as pessoas fazem entre a nação bíblica de Israel e o Estado de Israel, da atual geopolítica mundial. Normalmente, os que têm essa visão fantasiosa daquele país reproduzem mentiras contadas por religiosos. Há comícios protestantes onde a multidão carrega bandeiras de Israel, o que pode deixar algumas pessoas bem confusas. Judeus não creem no Cristo como o filho de Deus. Pelo contrário, este ícone do cristianismo é visto por eles como um profeta e fundador de uma religião que promoveu perseguição, matança e conversões forçadas de judeus. Mas por que a veneração cega, a ponto de usarem um país como símbolo para adoração? Porque na Bíblia Deus disse que o “povo de Israel” é o povo escolhido. Não, ele não estava falando do país que nos últimos quatro meses matou 30 mil crianças, mulheres e idosos.

Mas talvez o Legislativo conquistense não tenha percebido a razão mais importante para a fala do Lula. Com o olhar nas eleições de outubro, ele vai demarcando espaço, deixando claras as posições e diferenças entre a extrema direita e outras matizes e opções republicanas de política.

Se você defende a vida, não vote em ninguém que apoie a extrema direita, o genocídio, a quebra da democracia, a matança de palestinos, a quebra violenta do estado de direito, o atraso econômico, a banalização da cultura. Se você defende a extrema direita, não vote em ninguém que se pareça, mesmo de longe, um progressista. Tenha medo dos “comunistas”, mesmo que não saiba o que isto significa.

Por conta da cegueira político-religiosa da extrema direita, uma guerra no Oriente Médio vai entrar no rol de temas das eleições deste ano para prefeitos e vereadores. A julgar pela simplicidade das quatro linhas, será um processo eleitoral salpicado de mentiras, desinformação, distorções. Não será para amadores.

*Afonso Silvestre é historiador e coordenou os processos de certificação quilombola de 2004 a 2012, em Vitória da Conquista, como coordenador de planejamento (2004-2006), secretário de governo (2006-2008) e técnico em projetos (2009-2011). Também foi responsável pelas atividades de certificação do quilombo urbano da Comunidade de Vó Dôla, em 2022, e pela modernização do Arquivo Público Municipal (2012-2016) e dos arquivos da COOPMAC.

Foto de capa: Secom/PMVC.

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