Artigo | Ainda é preciso avançar na garantia do acesso da população negra às universidades
Por Herberson Sonkha* - 30 de março de 2023
Caso do estudante conquistense David Libarino evidencia que, apesar de estabelecida em lei, o efetivo cumprimento da política de cotas raciais no ensino superior brasileiro ainda é motivo de luta do Movimento Negro.
Depois de três difíceis semestres cursando Medicina na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o jovem negro David Libarino viu seus sonhos ruírem numa única canetada de um processo marcado por equívocos. Ele dividia seu tempo entre o estudo acadêmico e a venda de guloseimas, que o ajudava a se manter na graduação.
Estava prestes a se matricular no quarto semestre do curso, quando foi impedido de seguir estudando, após ter sua reserva de vaga por cota indeferida pela banca de heteroidentificação racial da instituição, responsável pela aferição dos candidatos aprovados através dessa modalidade, que busca garantir um acesso mais democrático ao ensino superior público, gratuito e de qualidade.
Neto de pedreiro e filho de uma mulher trabalhadora assalariada, David, que sempre estudou em escolas públicas, não mediu esforços para ingressar na universidade. Realizou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e com a nota obtida na prova, se inscreveu no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para o curso de Medicina da UFBA oferecido em Vitória da Conquista, no processo seletivo 2021.1.
Selecionou a modalidade de concorrência por cotas destinadas especificamente para pessoas pretas, pardas e indígenas oriundas de escolas públicas. Teve sua inscrição habilitada e o resultado atestou o bom desempenho que obtivera no Enem. Ele foi aprovado na seleção. Então, aguardou a realização da aferição da sua autodeclaração racial enquanto homem negro de cor parda, em conformidade com os critérios definidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Mas, concomitantemente a isso, a UFBA disponibilizou o acesso ao portal restrito a pessoas aprovadas para que os candidatos selecionados pudessem anexar toda a documentação exigida para a realização da matrícula na universidade. Assim David o fez e, uma vez concluído o processo que antecede a autorização de acesso à sala de aula, a instituição lhe concedeu a condição de estudante regular do curso de Medicina.
Com isso, ele frequentou normalmente a graduação por três semestres, ao tempo em que esperava a aferição da sua autodeclaração racial, que só veio a ser realizada, entretanto, em outubro do ano passado, quando a banca de heteroidentificação da UFBA decidiu, então, indeferir sua candidatura, apesar de David atender às exigências do edital da instituição que regulamentou esse processo.
Essa decisão já é questionável se considerarmos que o processo de aferição racial deveria ter sido realizado pela banca antes mesmo da UFBA conferir a David, ou a qualquer outro candidato aprovado através de cotas raciais, a condição de aluno regular da instituição. Mas chama mais atenção ainda o fato de terem indeferido a candidatura de um estudante que concorreu a uma vaga nessa modalidade justamente por se reconhecer e ser reconhecido, social e fenotipicamente, como um jovem negro de cor parda.
Por isso, o Movimento Negro Brasileiro, representado em Vitória da Conquista pelos Agentes de Pastoral Negros e Negras do Brasil (APN’s), assumiu o compromisso de defender o caso de David. E é legitimo questionar e tomar todas as providências cabíveis, inclusive jurídicas, para que a universidade corrija esse que consideramos um erro.
Só existe a Lei de Cotas porque o Estado Brasileiro foi cumplice da escravidão e boa parte da sociedade se calou frente às atrocidades cometidas por senhores de escravos. Cabe ao Estado, portanto, desenvolver e implementar políticas públicas de reparação, visando superar todas as inúmeras violências históricas cometidas, desde o século 16, contra as nossas populações negras (pretos e pardos) e os povos originários. Nesse sentido, não existe nenhuma dúvida de que a Lei nº 12.711/2012 é uma dessas medidas necessárias para combater a perpetuação do racismo em nosso país, principalmente no âmbito institucional.
A Lei de Cotas foi criada para garantir que 50% do total de vagas ofertadas em universidades e institutos federais seja reservado a um determinado público-alvo racializado, constituído por estudantes oriundos de escolas públicas brasileiras. Após uma década de sua vigência no Brasil, analistas apontam que os resultados gerados por essa política pública são visíveis.
Inevitavelmente, problemas como esse ocorridos na UFBA vão surgindo a medida em que mais pessoas acessam as instituições públicas de ensino superior por meio dessa política de reparação social. Isso demonstra que a efetivação do ingresso na universidade mediante a reserva de vagas destinadas à população negra (de cor preta e parda) e indígenas, apesar de possível, precisa ser cada vez mais aprimorado.
Por ser um sistema recente, precisa de monitoramento adequado, avaliação processual e de melhorias constantes que evitem retrocessos. A compreensão dos APN’s de Vitória da Conquista, que trago neste texto, é de que essa modalidade de promoção da justiça social e equidade racial precisa de Controle Social Externo, constituído por representações das organizações sociais do Movimento Negro, Quilombola e de Povos Originários.
Assim, precisamos propor e lutar pela correção de fatos lamentáveis como o ocorrido com David. Trata-se de uma situação que vêm causando desgastes à própria reitoria, docentes e corpo técnico da UFBA, que é, inclusive, uma das instituições pioneiras no Brasil na adoção da reserva de vagas por cotas raciais.
Também por isso, o Movimento Negro de Conquista organizou intensa mobilização e articulação junto a outros movimentos sociais, a exemplo da União da Juventude Rebelião (UJR) e do coletivo Correnteza, para realizar um ato público em conjunto em frente ao Campus Anísio Teixeira da UFBA, no dia 20 de março. Além disso, provocamos a Comissão de Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) – Subseção de Vitória da Conquista e o Conselho Municipal de Igualdade Racial para construir uma agenda especifica em torno dessa questão.
A repercussão da manifestação nas redes sociais se fortaleceu com a adesão do movimento quilombola da cidade, que passou a se articular para garantir o efetivo cumprimento das disposições previstas pelo edital de “Heteroidentificação Complementar à Autodeclaração” da UFBA, de modo que outras pessoas não tenham suas candidaturas indeferidas pela UFBA/CAT. Esse processo de cobrança da militância negra no país visa definir atos administrativos contínuos de correção das mazelas sociais específicas contra a população negra.
Mesmo com a Lei Áurea de 1888, que dizia abolir totalmente o destrutível sistema escravagista que tomou conta do país, o que dele decorre são as formas mais abomináveis de racismo, que continuam causando graves problemas com consequências sociais, econômicas, culturais e políticas que impactam negativamente na vida de mais da metade da população brasileira (preta e parda). Segundo o IBGE (2022), 56,1% dos 212,7 milhões de brasileiros são afrodescendentes pretos e pardos.
O Movimento Negro, em sua varias frentes de luta organizada, avançou ao propor e tencionar politicamente a aprovação da política de cotas nas universidades públicas, reparando séculos de exclusão daqueles e daquelas que, mesmo tendo produzido toda a riqueza desse país, jamais pôde desfrutar do fruto de seu trabalho. Portanto, precisamos continuar lutando para garantir a inclusão social efetiva da população negra na academia brasileira.]
*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.
Foto de capa: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil.
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