Artigo | A luta contra o governo neoliberal da Bahia em defesa da universidade pública
Por Herberson Sonkha* - 4 de maio de 2022
"Os movimentos de docentes, discentes e servidores se tornaram o 'Calcanhar de Aquiles' do governador Rui Costa, e isso explica seu vandalismo econômico com as universidades", escreve o professor Herberson Sonkha em novo artigo para o Conquista Repórter.
Na última semana, o município de Salvador acolheu baianos e baianas de várias outras cidades do estado para movimentar a Praça da Piedade com o ato “Reajuste Já”, convocado pelo Fórum das Associações Docentes das Universidades Estaduais da Bahia. Esse grito crítico contido na garganta de professores, estudantes e movimentos sociais eclodiu com o movimento #NegociaRui, após quase mil dias de suspensão arbitrária da mesa de diálogo com a categoria docente.
O lugar escolhido para a manifestação não poderia ter sido melhor, por se tratar do logradouro ícone de lutas por liberdade dos povos e de grandes batalhas e resistências dos povos originários de África desde o século XVIII. E, mais recentemente, a Praça da Piedade foi também palco das movimentações pela reabertura democrática do Brasil com as chamadas “Diretas Já”, em meados dos anos 1980, que foram seguidas por efervescentes manifestações contra o governo do carrasco coronel ACM, que se instalou por toda a Bahia como um câncer.
Contudo, ninguém imaginaria que um dos sujeitos forjados no curso desse processo histórico de oposição sindical ao capitalismo e às representações oligárquicas se tornaria o principal algoz das universidades baianas, mesmo estando ele em um partido que integrou memoráveis lutas sindicais por conquistas sociais para a classe trabalhadora baiana.
De sindicalista a neoliberal implacável, o governador Rui Costa se tornou o principal responsável pela precarização e sucateamento das universidades públicas do estado, da docência e do corpo técnico de servidores. Um governo que se dedicou a asfixiar as instituições estaduais de ensino superior com cortes constantes de recursos continua dando um tratamento especial às manobras de contingenciamentos compulsórios do pouco que restou de verbas.
Nesse contexto, o filho de uma respeitável doceira que nasceu e cresceu na Liberdade parece não ter aprendido absolutamente nada com as lutas de resistência e o sofrimento do povo negro nesse histórico bairro de Salvador. Um bairro que possui o segundo maior reduto de populações afrodescendentes (depois de Pernambués) em estado de extrema-pobreza.
Costa abandonou o palco da luta do povo baiano após ser eleito, revelando o seu verdadeiro caráter de capitão do mato ao reproduzir o comportamento escravagista das oligarquias baianas atrasadas, a exemplo da declaração que legitimou a ação policial que exterminou 12 jovens negros inocentes do Cabula, sem nenhum registro na polícia.
O gestor cumpre na Bahia o mesmo que Fernando Henrique Cardoso (FHC) fez no Brasil na década de 1990 ao exercer com fetichismo a teoria do equilíbrio nas contas públicas. Um defensor incondicional da improvável ideia de racionalidade dos mercados, FHC apostou na hipótese segundo a qual a oferta cria sua própria demanda para evitar, assim, uma crise geral de superprodução e para reafirmar a tese capitalista de sistema de mercado auto-regulável, refutando a intervenção estatal.
O governo do PT na Bahia que se pretendia keynesiano, se tornou, portanto, reconhecidamente neoliberal depois de eleito. Abandonou o questionamento do economista liberal britânico Keynes sobre a validade dos pressupostos neoclássicos de equilíbrio. E mostrou que desconhece a alegação keynesiana de que a Lei de Say seria aplicável apenas numa economia baseada no escambo, por se tratar de uma economia não monetária.
Esse equilíbrio é impossível porque, na economia capitalista, as transações são intermediadas por moedas, criando a possibilidade de adiar ou interromper a decisão de compra, causando a retração de demanda e resultando em crise econômica. Para um neoliberal, a sociedade precisa do Estado apenas para desenvolver o papel de força unilateral e policial com autorização para matar as pessoas, pois a economia privada faz o restante.
Isso inclui garantir a funcionalidade das leis de manutenção da reprodução do capital e suas instituições políticas, mas também sair das crises cíclicas do capital se apropriando da riqueza do setor público através de privatizações a preço de banana. Além disso, há ainda a regulação legal do mercado de trabalho para garantir a reserva de mão de obra como mecanismo de barateamento do preço da força de trabalho e aumento exorbitante de lucros para empresas.
Ao que tudo indica, para o governador Rui Costa, o Estado não deve intervir no mercado, pois essa seria a única força motriz do desenvolvimento econômico capaz de operar o equilíbrio entre a circulação e a troca de mercadorias e títulos. Assim, os investimentos públicos realizados em saúde e educação na Bahia não têm a ver com o social, mas sim com a ideia de tornar nosso território um excelente atrativo para os negócios privados, visando tão somente agregar valor aos serviços públicos para privatizá-los ou terceiriza-los.
Para tanto, é certo que o governo vem criando um cenário externo para desviar os olhares críticos mais atentos com relação a isso, pois a intenção é minimizar as reações políticas e sociais e facilitar a liberação das condições materiais por meio de recursos públicos (privatização e terceirizações). Dessa forma, se garante o equilíbrio de transações nas contas correntes do governo a custa dos bens públicos, o que precariza a carreira de servidores.
As propagandas reproduzem o material midiático necessário para alimentar o programa eleitoral petista em que se vende aos investidores capitalistas uma situação animadora voltada para grandes oportunidades de negócios direcionados ao crescimento econômico do estado da Bahia. Afinal, nenhum capitalista compra empresa “quebrada”, mesmo que esse custo seja garantido com o sacrifício dos trabalhadores e trabalhadoras do Estado e das políticas públicas, articulado ao assalariamento de funcionários públicos do Estado, a precarização e o sucateamento de serviços essenciais para justificar uma política neoliberal privatista.
O receituário seguido por Rui Costa na Bahia conta com a privatização de empresas estatais estratégicas, a exemplo da Embasa, de serviços de média e alta complexidade em saúde e educação, mineração e etc. Esse caminho em busca da conversão da liquidez de serviços do setor público em dinheiro rápido tem como objetivo reduzir o déficit histórico (criado pelas elites econômicas) nas contas correntes do governo. É um alerta para a balança de pagamento deficitária.
A maquiagem nas contas do Estado é uma prática muito usada por governos de direita e de extrema-direita para tentar influenciar positivamente o mercado financeiro para atrair novos investidores, inclusive visando ampliar a oferta de novos postos de trabalho (vagas de empregos) na Bahia. Pois o Estado, na lógica neoliberal, também terceiriza esse papel de indutor do desenvolvimento econômico.
Essa é uma jogada ilusionista muito arriscada para a população baiana porque, numa economia capitalista, é perfeitamente possível obter bom desempenho com o superávit na balança comercial e, simplesmente, perder para o saldo devedor do balanço de pagamento, convertendo em déficit. A propaganda do governo de superávit primário, com base no relativo desempenho positivo das contas do governo (balança comercial, de serviços e transferências unilaterais) por causa das exportações maiores que as importações, podem ser um alerta para possíveis manobras nas operações em transações correntes ou movimento de capitais.
Os burocratas da macroeconomia neoliberal sabem que o governo não poderá realocar essa divisa porque não existe esse recurso disponível. Por isso, a propaganda de Rui Costa é enganosa, porque não existe dinheiro para ampliar investimentos em educação, sobretudo folha de pagamento há sete anos sem reajustes, despesas fixas, tecnologias, plano de carreira e etc. Como o próximo governo não será dele ou de seu partido, ele não se sente responsável com a catilinária neoliberal de exceder o teto de gastos, publicando edital de concurso para docência.
Os movimentos docentes, discentes e de técnicos das universidades estaduais se tornaram o “Calcanhar de Aquiles” do governo de Rui Costa e isso explica seu vandalismo econômico com as universidades. Já se sabia antecipadamente que ele suspenderia a qualquer momento e de qualquer jeito, sem nenhuma explicação plausível, a mesa de dialogo com representares de entidades docentes. Isso tem a ver com a escolha política conscienciosa pela modalidade de governança neoliberal de Rui Costa, que impediria o governo de atender minimamente as pautas de entidades como a Associação dos Docentes da Uesb (Adusb) e demais sindicatos de professores das universidades estaduais.
O não diálogo com o Fórum da AD’s explora o senso comum da população que não enxerga a dimensão inconsequente Lei de Responsabilidade Fiscal para a classe trabalhadora e as populações vulnerabilizadas. Infelizmente, a maioria ainda não alcança a intencionalidade destrutiva dessa lei para classe, raça e gênero.
É o subterfugio “intelectual” para representantes políticos neoliberais do capitalismo criado por FHC como aporte linguístico para o discurso neoliberal presente na LRF. Além, obviamente, de se apegarem ao discurso legalista de impedimento que trata investimentos públicos como “gastos” como os únicos responsáveis pelo déficit na balança de pagamento por serem “temer-ários” ao Tribunal de Contas.
Para a equipe da burocracia econômica do governador, orientada pelo próprio Rui Costa, que é economista, a discussão é eminentemente “técnica” e restrita ao campo da economia formal, não cabendo um debate teórico profundo sobre a natureza ideológica das contas públicas. Como se as categorias oferecidas pela economia política não fossem suficientes, não obstante, são consideradas pelos burocratas neoliberais de plantão no Estado como não ciências. Portanto, optam pela cilada da “lei” natural mecanicista que os impedem de analisar criticamente o conjunto dessas três contas consolidadas nas transações correntes que apresenta superávit.
O governador da Bahia tem tratado a dívida interna com a devida obediência ao maintream neoliberal baiano. Sempre que as despesas do governo superarem a receita, impõe-se o receituário neoliberal que é cortar no dispêndio os investimentos sociais para sobrar dinheiro para cobrir o déficit. Se não for suficiente, o governo determina às autoridades econômicas algumas medidas: a emissão de papel-moeda; o aumento de carga tributária; e o lançamento de títulos. Faz parte da política econômica de governos da Bahia desde gestões carlistas sacrificar a classe trabalhadora (setor público e privado), as universidades e, de modo geral, a população mais carente.
A saber, emissão de papel-moeda é impossível porque não cabe ao governador da Bahia, mesmo que não inflacione a depender da conjuntura, o Estado não possui competência sobre à Casa da Moeda porque é uma atribuição do governo federal. A colocação de títulos, além de provocar altas violentas nas taxas de juros, gera aumento da própria divida interna acrescida pelos juros. Restando apenas o aumento da carga tributária, mesmo sendo uma medida politicamente antipática, e, por isso, o governo sempre fez em intervalos eleitorais para evitar efeitos colaterais dessas medidas na preferência dos eleitores. Ignorou seu impacto, inclusive a consequência recessiva e a redução do meio circulante (total de cédulas e moedas em circulação no país, na posse do público e dos bancos).
O nível do déficit do governo Rui Costa o levou a adotar esse caminho, a exemplo do aumento da carga tributária para servidores do Estado, elevando a alíquota para 14%, que já era considerada a mais alta (12%) entre os estados brasileiros. Mesmo sendo do Partido dos Trabalhadores (até o momento não existe nenhum documento formal do PT se opondo ou propondo essa conduta neoliberal), o governo o faz sem ao menos questionar publicamente as consequências desastrosas desse neoliberalismo do governador Rui Costa para as populações mais carentes do Estado.
Quase sempre cedem facilmente à subserviência dos cargos para permanecerem no governo, negando agressivamente o debate à luz de matrizes macroeconômicas contrárias ao liberalismo econômico. Apesar dessas manobras econométricas, o Estado da Bahia continua deficitário, mesmo diminuindo drasticamente os investimentos de capitais, serviços e folha de pagamento. Aqui entra a crítica acompanhada da reação política organizada pelo Fórum das AD’s.
O ato “Reajuste Já” contou com várias intervenções críticas dando conta da desastrada política educacional neoliberal do atual governador do PT. O ato cumpriu o papel de nos lembrar de que sem docentes, discentes e técnicos, não existe a sistematização e o desenvolvimento de saber científico, não existe pesquisa e extensão, formação sócio técnica e nem avanços tecnológicos. Nesse sentido, o movimento da Adusb tem o respeito e a acolhida de movimentos sociais que não aceitam ser transformados em correia de transmissão de nenhum governo neoliberal, a espreita da conciliação de classe.
*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.
**Foto de capa: Ascom Adusb.
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