“Vamos cobrar nossos direitos”, diz Nelson Quilombola sobre dados do Censo 2022

Por - 9 de agosto de 2023

Pesquisa apontou Vitória da Conquista como uma das dez cidades brasileiras com maior população quilombola em números absolutos. Segundo o ativista, dados farão com que o Poder Público seja pressionado a garantir que as políticas públicas cheguem efetivamente aos quilombos do município.

Nelson Quilombola

Reconhecido por sua atuação como ativista de movimentos sociais antirracistas no Sudoeste da Bahia, Nelson Quilombola tem 52 anos e é natural da cidade de Wenceslau Guimarães, no Sul do estado, onde vivia no Quilombo Jericó. Veio para Vitória da Conquista na década de 1990 e, desde então, decidiu permanecer no município. 

Atualmente, mora no bairro Guarani, mas vive percorrendo diversas outras localidades da zona rural e urbana, além de outras cidades da Bahia, na luta por direitos e políticas públicas para a população quilombola. Sua trajetória como militante começou em um movimento conhecido como CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), vinculado à Igreja Católica. Foi em Conquista que ingressou no movimento negro, juntamente com outros companheiros da militância.

“Dentro do movimento negro nós descobrimos o nosso verdadeiro movimento, que é o movimento quilombola. E então, a partir de 1998, começamos a nos articular de forma organizada”, afirma. Tal articulação foi fundamental para o processo de identificação e reconhecimento de comunidades quilombolas conquistenses junto à Fundação Palmares, processo esse iniciado nos anos 2000 com o apoio da Prefeitura Municipal.

“Tem algumas que foram identificadas, porém ainda não são reconhecidas. Mas seguimos em busca desse reconhecimento”, ressalta Nelson. Ele também é cofundador do Conselho Estadual das Comunidades e Associações Quilombolas do Estado da Bahia, órgão vinculado à Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), da qual o ativista também participou do processo de fundação. 

Hoje, segue atuando como um dos articuladores do conselho no estado, que concentra a maior quantidade de habitantes autodeclarados quilombolas do Brasil. O militante integra ainda o Fórum Permanente de Educação Escolar Quilombola da Bahia, composto por professores, gestores e lideranças quilombolas. Em entrevista ao Conquista Repórter, Nelson comentou os dados divulgados no último dia 27 de julho pela pesquisa Brasil Quilombola, que integra o Censo Demográfico 2022.

O levantamento apontou que Vitória da Conquista é a 10ª cidade com maior população quilombola do país em números absolutos: 12.057 pessoas. O município possui 32 quilombos reconhecidos pela Fundação Palmares. Eles estão representados por um total de 20 associações. Mas pelo menos outras 11 comunidades foram identificadas e aguardam a certificação, segundo dados da Coordenação Municipal de Promoção da Igualdade Racial. As condições de vida e as dificuldades enfrentadas por moradores dessas localidades também foram abordadas por Nelson na entrevista. Confira:

CR: Na sua opinião, o que o fato de Conquista figurar entre as dez cidades do país com maior população quilombola revela sobre a realidade do município?

Nelson Quilombola: Esse dado não foi uma surpresa para nós porque sabemos onde a gente mora. Já tínhamos estimativas internas dentro do movimento que indicavam que a população quilombola de Conquista chegava a pelo menos 10 mil pessoas. O que essa nova pesquisa [do IBGE] nos deu foi uma dimensão mais concreta do tamanho do povo quilombola em nosso município, no estado e no país como um todo. E isso é algo com que o Poder Público tem que se preocupar, porque vai precisar fazer com que as políticas públicas cheguem efetivamente até nossa população. Para nós, isso é um desafio, mas para o município será maior ainda, porque nós vamos pautar e cobrar nossos direitos, como saúde e educação de qualidade, bem como a devida aplicação dos repasses de verbas feitos pelo governo federal. Com essa realidade escancarada, a Prefeitura vai ser mais pressionada a investir nas comunidades quilombolas, até porque o recurso vem, e não é pouco. Vamos, inclusive, marcar uma reunião com a Coordenação Municipal de Igualdade Racial para tentar destrinchar essa pesquisa, com o apoio do próprio IBGE. Afinal, o que se sabe agora é o montante de pessoas que constitui essa população, mas precisamos entender melhor quantos são crianças, jovens, idosos, quantas são mulheres, pois isso tudo nos ajudará a entender as nossas necessidades também com base nesses recortes.

CR: E como o senhor avalia a importância de dar visibilidade a essa informação, uma vez que os dados foram amplamente divulgados pela imprensa e que essa foi a primeira vez que o Censo Demográfico identificou, de forma direcionada, o número de brasileiros autodeclarados quilombolas?

Nelson Quilombola: Primeiramente, é importante por mostrar que nós existimos. Eu vejo muitos estudantes e outras pessoas que nem sequer sabem o que é ser quilombola e que existem comunidades quilombolas aqui na cidade. Até mesmo dentro das próprias comunidades há moradores que não se identificam. Então, é também algo importante para que nós possamos nos organizar mais ainda. Se já vínhamos nos organizando através de associações, agora precisamos nos organizar através de grupos específicos, como um de mulheres e outro de jovens, por exemplo. Entendemos que essa pesquisa veio para nos ajudar e para mostrar a nossa cara e a nossa luta.

CR: Em uma publicação feita no último dia 27 de julho, em seu site oficial, a Prefeitura também deu destaque aos dados do Censo e aproveitou para afirmar que as comunidades quilombolas de Vitória da Conquista são assistidas pelo Poder Público Municipal. Até que ponto essa afirmação se traduz na prática?

Nelson Quilombola: O que temos tido de apoio da Prefeitura, ainda assim com muito esforço, é o carro-pipa que ajuda a abastecer as comunidades. Mas conforme vai se aproximando a eleição, aí as coisas começam a fluir, né? Hoje, o povo quilombola de Conquista sofre, sobretudo, com a falta de acesso à água e saneamento básico. Nós não temos estradas decentes. As estradas estão todas acabadas. Na saúde, faltam médicos e remédios para atender às nossas demandas. A iluminação também é outra coisa bastante precária. Então, eu desconheço essa afirmação segundo a qual está tudo um mar de rosas. Não está não.

Registro de Nelson durante reunião com a prefeita Sheila Lemos e com outras lideranças quilombolas. Foto: Secom / PMVC.

CR: Em novembro do ano passado, a Defensoria Pública promoveu uma audiência pública para expor e debater essas diferentes violações de direitos enfrentadas por quilombos conquistenses. E a falta d’água e saneamento básico foi uma das principais queixas apresentadas no evento. Quais fatores, a seu ver, agravam essa situação nas comunidades, bem como na zona rural como um todo, e que saídas o senhor vislumbra para que esse problema comece a ser resolvido?

Nelson Quilombola: Eu vejo que há um despreparo do Poder Público para lidar com a questão hidráulica do município. Se perde muita água quando chove e, quando estia, necessitamos da água e não tem, aí ficamos à mercê de carro-pipa. Tem quilombo onde a merendeira levava água de sua casa para fazer a merenda dos alunos. Acredito que a Prefeitura deveria dialogar melhor com a Embasa para que a empresa possa se comprometer a levar água e saneamento básico para as comunidades, ou pelo menos naquelas que podem ser mais facilmente alcançadas pelo sistema de água e esgoto. Outra alternativa seria a implantação de poços artesianos, porque carro-pipa é uma medida paliativa. Pôr três mil litros de água para uma família inteira usar durante um ou até mais meses não basta. 

CR: De acordo com o IBGE, apesar de contar com a maior população quilombola em números absolutos e a segunda maior em termos relativos do Brasil, a Bahia apresenta o terceiro menor percentual de quilombolas residindo em áreas oficialmente delimitadas do Brasil (5,23%). Como é essa realidade no âmbito municipal e de que forma a luta pela regularização fundiária de territórios quilombolas tem sido encampada em Conquista?

Nelson Quilombola: Aqui no município temos várias comunidades com processo aberto no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) aguardando até hoje pela regularização fundiária, como o Quilombo do Velame, Laranjeiras, Ribeirão dos Paneleiros, Lagoa de Melquíades e Baixa Seca. O processo da comunidade do Velame mesmo está na mesa do presidente Lula só aguardando assinatura e a posterior indenização dos fazendeiros. Mas até agora nada de demarcação. Barreiro do Rio Pardo é outra comunidade que está com o processo parado, apesar das terras não pertencerem a nenhum fazendeiro. E isso prejudica o acesso a políticas como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), por exemplo. Então, o Incra precisa efetivar esse processo e conceder a titulação de terras urgentemente. Essas terras eram nossas. Portanto, isso torna a regularização também um grande desafio a ser enfrentado pelo Estado para melhorar a vida da população quilombola. E sobretudo na Bahia, precisamos avançar com essa pauta.

CR: Em maio deste ano, o senhor esteve em Salvador para discutir a política educacional em quilombos junto a autoridades públicas da Bahia. Qual a importância desse debate para a população quilombola de Vitória da Conquista e quais desafios o senhor observa para a educação escolar quilombola no município?

Nelson Quilombola: Aquela foi uma reunião muito produtiva. Teve a participação de lideranças de Conquista muito importantes para a educação escolar quilombola, como o professor Flávio Passos. E um dos nossos maiores desafios é ampliar o número de escolas dentro dos quilombos do estado. O que temos visto e acompanhado, sobretudo aqui no município, é o contrário disso, que é o fechamento de unidades localizadas em comunidades quilombolas. Além disso, é preciso promover uma formação qualificada de professores para atuar nessas comunidades, para que eles possam ir pra sala de aula sabendo o que é um quilombo. Até algum tempo atrás, não queriam nem mesmo implementar o cardápio próprio de cada quilombo na alimentação escolar. Nós temos região aqui em Conquista como o Capinal, por exemplo, onde o beiju se destaca na culinária da localidade. Já no Boqueirão e em Lagoa de Maria Clemência é o andu. São especificidades culturais que precisam ser respeitadas. 

CR: Em 2012, 2016 e 2020, o senhor concorreu às eleições municipais, chegou a obter uma quantidade expressiva de votos, mas não foi eleito. Quais os desafios e preconceitos que o senhor observa no cenário político local ao se colocar enquanto candidato a vereador e, mais que isso, representante do povo quilombola da cidade?

Nelson Quilombola: Conquista é uma cidade tipicamente preconceituosa, uma cidade que não costuma aceitar candidato pobre e negro, principalmente. Basta olhar para a composição atual da Câmara de Vereadores, que é majoritariamente branca. Então, é difícil conquistar espaço e representatividade diante dessa conjuntura. A gente não compra voto, dependemos, na verdade, de um voto consciente, seja da militância, seja de pessoas que conhecem a nossa luta e sabem que, se conquistarmos esse espaço, vamos mudar a história da nossa cidade.

Foto de capa: Acervo Pessoal.

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