Nana Aquino: “Nós temos a sociedade que tenta criminalizar o Hip Hop e temos a resistência”

Por - 26 de março de 2024

A educadora social começou a profissionalizar o seu gosto pela música a partir do envolvimento com movimentos sociais. Desde fevereiro deste ano, ocupa a posição de vice-diretora da Associação de Hip Hop de Vitória da Conquista.

Educadora, cientista social, pesquisadora e artista, Nana Aquino ingressou na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Vitória da Conquista, em 2015. Foi nesse espaço que ela conheceu o Coletivo Feminista Negro Pretas da Dió, que surgiu por iniciativa da professora Núbia Regina Moreira. A partir da conexão com esse grupo de mulheres pretas e com outros movimentos sociais, começou a profissionalizar o seu gosto pela música. Com o apoio dos artistas que vieram antes dela, Nana iniciou sua trajetória musical até se tornar a DJ Afrolatina.

Entre suas grandes referências estão nomes conhecidos da cena cultural conquistense como DJ Guerrero, DJ Loro Vudu e Nessyta Lopes, uma figura feminina muito importante para a cultura Hip Hop de Vitória da Conquista. O som do Complexo Ragga, grupo conhecido pelos hits “Sensimilla” e “Poder da Palavra”, também faz parte do repertório que ajudou a construir a arte de Nana.

Desde que iniciou seu trabalho musical, os ritmos que surgem a partir da população negra, como o Rap e o Dancehall, são as raízes da sua arte. “Eu comecei a procurar músicas que fizessem a galera dançar, mas que tivessem a ver com o que eu penso, o que eu pratico e o que eu quero passar com o meu fazer artístico. E o que une essas coisas é justamente a música preta”, explicou.

A DJ Afrolatina é uma das pessoas que integram a Associação de Hip Hop de Vitória da Conquista, criada oficialmente no dia 25 de fevereiro de 2024. Junto a Nana, que ocupa a posição de vice-diretora, constituem a entidade Dernevaldo do Carmo Santos (diretor executivo), Aécio Andrade (primeiro secretário), Tayrine Lopes (segunda secretária), Lucelia Novaes (primeira tesoureira) e Danilo Oliveira (segundo tesoureiro).

Em entrevista ao Conquista Repórter, a artista detalhou como se deu o seu envolvimento com a cultura Hip Hop e o preconceito que ainda existe contra as pessoas que fazem parte desse movimento. A educadora social também destacou a importância da Associação de Hip Hop de Vitória da Conquista para os fazedores de arte do município. Confira a seguir:

CR: Como você se envolveu com a cultura Hip Hop?

Nana Aquino: Tudo começou quando eu iniciei o curso de Ciências Sociais na UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia). Passei por uma mudança drástica de realidade porque sempre estudei em colégios particulares. Mas quando cheguei na universidade, comecei a ter contato com outras vivências e foi a partir daí que teve início a minha caminhada nos movimentos sociais, principalmente o meu envolvimento com o movimento negro. Eu ingressei no Coletivo Feminista Negro Pretas da Dió, fundado pela professora Núbia Regina. Um tempo depois, junto com algumas amigas desse coletivo, comecei a fazer ações socioeducativas no presídio Nilton Gonçalves com mulheres encarceradas. Eram atividades pedagógicas, artísticas e de cuidado. Em 2018, fundamos o COMAIB (Coletivo de Mulheres Antiproibicionistas do Interior da Bahia). E foi a partir da minha entrada nos movimentos sociais que passei a profissionalizar o meu gosto pela música e a pensar uma pesquisa musical mais direcionada. Todo mundo falava: “Nana, você tem jeito pra coisa, só bota música boa no rolê”. Mas teve uma grande figura aqui de Conquista, DJ Guerrero, que foi minha referência, além de outros, como DJ Rodrigo Freire e DJ Loro Vudu. Todos me auxiliaram. E assim eu comecei a me profissionalizar na música, sendo DJ. E a minha vertente musical sempre pendeu para os ritmos pretos em geral, o Rap, o Dancehall, o Coco, tanto que o meu nome artístico é DJ Afrolatina. Foi a partir daí que comecei a participar de eventos de Rap. Eu fiz parte de um grupo, o Rosas do Gueto. Nós ganhamos um concurso chamado Vozes da Rua e começamos a ter uma expansão boa, a fazer vários eventos, inclusive um que se chamava Beco, que acontecia próximo à Praça Barão do Rio Branco. Era um movimento cultural muito incrível que conseguia juntar todos os bairros. Então, segui fazendo o meu trabalho, fui apadrinhada pela banda Complexo Ragga e comecei a ter boas oportunidades. Já toquei com o grupo ADL, do Favela Vive, e na turnê do KL Jay, o DJ do Racionais MC’s.

CR: Para você, qual a importância do Hip Hop para a juventude, especialmente em uma cidade como Vitória da Conquista, onde as opções de atividades e espaços culturais gratuitos são limitadas?

Nana Aquino: O Hip Hop surgiu justamente desse grito das periferias, do movimento de perceber o mundo, se perceber no mundo e questionar as coisas. Então, essa cultura ajuda os jovens a entenderem a posição deles no mundo. Às vezes a gente chega, enquanto educadores sociais, e perguntamos se eles gostam de poesia. Nenhum aluno levanta a mão. Mas aí a gente recita um verso do Racionais MC’s e eles dizem: “eu conheço, é poesia?”. Quando a gente fala de Hip Hop, estamos falando da sabedoria das ruas, de saber se portar, conhecer o seu lugar no mundo e ajudar a coletividade de onde você estiver. E aqui em Conquista nós temos a característica da pessoa branca muito valorizada, inclusive com o apelido da cidade, Suíça Baiana. Isso acaba abafando o resto da cultura do município. Então como sempre, essas pessoas da periferia e os movimentos chamados underground, que são subversivos, começam a criar os seus próprios espaços. Mas acabam ficando restringidos porque temos a violência policial, o preconceito da sociedade e a falta de investimento. São mais de 20 anos do movimento Hip Hop de Vitória da Conquista e, nesse tempo todo, o que conseguimos de apoio financeiro foi menos de R$20 mil. Nossa cidade é a terceira maior da Bahia. Nós já deveríamos ter uma casa do Hip Hop. Então, o que a gente vem fazendo é tentar subverter o sistema e falar para a galera: “vocês são capazes, é possível passar num edital, é preciso a gente se organizar”. Temos uma batalha de rima aqui na cidade, a Batalha Chapahalls, que já sofreu muita perseguição e são apenas meninos que se organizam porque gostam de rimar. Nós temos essa sociedade que tenta o tempo todo criminalizar e acabar com esses movimentos, mas ao mesmo tempo, temos também a resistência.

A Associação de Hip Hop de Vitória da Conquista teve a primeira diretoria eleita em 25 de fevereiro de 2024. Foto: Thiago Gama.

CR: O Hip Hop sempre foi um movimento que buscou transformar espaços marginalizados pela sociedade em lugares de vida, que pulsam arte, cultura e criatividade, mas também sempre foi um gênero musical discriminado justamente por denunciar questões como o racismo e a desigualdade social. Na sua avaliação, ainda hoje existe esse preconceito contra as pessoas que fazem parte do movimento?

Nana Aquino: Nós temos professores de Hip Hop dando aulas nas escolas estaduais e o que ouvimos é que existe muita resistência em aceitar esse movimento. Isso porque esses professores estão falando sobre o que incomoda. Além disso, tem o fato de que a nossa expressão também é estética. É um tipo de existência que entra em embate com o que as pessoas pensam, que choca e afronta essa sociedade conservadora. Quando a gente chega para falar nesses espaços temos que ter muito mais referências para sermos aceitos. Quando a gente pensa, por exemplo, em Vitória da Conquista, com um show no Centro de Cultura, os meninos que moram no Vila América ou na Lagoa das Bateias não conseguem e nem querem chegar nesse espaço. Por quê? Porque há muita opressão até esse corpo chegar nesse espaço. E aí que entram as ferramentas do sistema dizendo: “então não precisa ter show de Hip Hop e de Rap, né? Eles acabam não indo mesmo”. Mas se eles fazem esse percurso, vão sofrer discriminação, tomar baculejo da polícia e enfrentar os olhares de pessoas achando que são assaltantes, porque temos a sociedade trabalhando para que a cultura do Hip Hop continue sendo marginalizada.

CR: O Hip Hop ainda é visto por alguns como um movimento dominado por pessoas do gênero masculino, apesar de que temos acompanhado mulheres ocupando esse espaço e fazendo dessa música um instrumento de combate ao machismo e à misoginia. Como você observa a participação das mulheres no movimento Hip Hop em Conquista?

Nana Aquino: O Hip Hop, assim como todos os âmbitos da vida social, reflete o que tem na sociedade. Então, ele carrega essa cultura machista, embora a gente saiba que a raiz do movimento também é matriarcal. Até porque para esses homens estarem no auge, as mulheres deles trabalharam para que eles pudessem estar ali. No documentário do Racionais MC’s, o Pedro Paulo (Mano Brown) fala que não há Racionais sem Eliane, que é a companheira dele e empresária da banda, que fez tudo acontecer. Então, mesmo que as mulheres não estejam na posição principal, que é no palco, elas são essenciais na base dessa cultura. Em Vitória da Conquista, a gente sempre teve um protagonismo feminino muito grande no Hip Hop. Temos uma figura muito importante na cidade, Suzete Lima, que possibilitou várias capacitações, e muitas das meninas, inclusive, que são trancistas hoje, são fruto desse movimento Hip Hop. A gente teve também um grupo essencial para a cultura Hip Hop local, o Elo, formado por Tayrine e Nessyta. Elas tinham uma casa, localizada no bairro Pedrinhas, onde ofereciam oficinas e atividades para os jovens periféricos daquela região. Além disso, sempre tivemos meninas participando da batalha de rimas, as minas do Breakdance e aquelas que ficam no apoio, responsáveis por passar o quinto elemento do Hip Hop, que é o conhecimento.

Apadrinhada pelo Complexo Ragga, a DJ Afrolatina já tocou na turnê de KL Jay, o DJ do Racionais MC’s. Foto: Arquivo Pessoal.

CR: Você é uma educadora social e uma mulher envolvida em movimentos e projetos que atravessam gênero, raça e classe. Como tudo isso e as suas experiências de vida estão conectadas com a sua arte?

Nana Aquino: Eu sempre costumo usar uma frase de uma música do Complexo Ragga que diz: “o meu som é de protesto, mas é pra dançar também”. Em Vitória da Conquista, a gente tem a cultura do DJ da pista, que bota a música que a galera quer dançar e fica todo mundo de frente, não é muito uma cultura de lounge, de som ambiente. Então, eu comecei a procurar músicas que fizessem a galera dançar, mas que tivessem a ver com o que eu penso, o que eu pratico e o que eu quero passar com a minha arte. E o que une essas duas coisas é justamente a música preta. Mesmo que a gente pegue um pagode baiano, ele vai estar dando uma aula de Sociologia, como por exemplo a música “Firme e Forte”, do Psirico, que diz: “êee chuá chuá, ê chuá chuá, temporal que leva tudo, mas minha fé não vai levar”. A gente está falando de gentrificação, de racismo ambiental. Então, a minha música é muito unida a esses recortes da denúncia e da valorização do povo.

CR: Com mais de 20 anos de atividade, o movimento Hip Hop conquistense agora se organiza com a criação da Associação de Hip Hop, que teve a primeira diretoria eleita no dia 25 de fevereiro deste ano. Qual a importância da fundação dessa entidade e qual papel ela assume junto aos fazedores de cultura do município?

Nana Aquino: Temos uma figura primordial no Hip Hop de Vitória da Conquista, que é Nessyta Lopes, professora de Sociologia. Ela acompanhou muito desses 20 anos de caminhada do Hip Hop e sempre existiu essa inquietação de conseguir mais espaços, mais oportunidades para essa galera ser valorizada e ter retorno financeiro. Foi assim que a associação surgiu. Nessyta se juntou com outra figura muito importante que é Cangaço, o nosso diretor executivo. Eles pensaram em botar para frente esse projeto que já estava na gaveta há muito tempo. Porque quando a gente se organiza, começamos a responder institucionalmente enquanto movimento, a ter visibilidade e podemos começar a disputar verbas. E nós acreditamos que isso vai dar um suporte estável para o nosso movimento. A gente já conseguiu adquirir o som, uma iluminação e é só o começo. Nós também estamos oferecendo cursos de capacitação para essas pessoas que estão dando aula nas escolas. Então, a gente busca esses avanços com a sabedoria de quem veio antes e com a força da galera jovem. Com a associação, queremos perpetuar de forma sólida o movimento Hip Hop aqui em Conquista, dar mais oportunidades para quem faz parte dessa cultura e servir como base e referência para quem está chegando.

A assembleia para eleição da diretoria executiva da Associação de Hip Hop de Vitória da Conquista aconteceu na Praça CEU, no Alto Maron. Foto: Nana Aquino.

CR: Nós sabemos que a Cultura é um dos setores mais desvalorizados pelo Poder Público de maneira geral. Em 2022, a Prefeitura de Vitória da Conquista retirou mais de R$ 2 milhões do orçamento da Cultura para acrescentar nas pastas de Mobilidade Urbana e Infraestrutura. Além disso, temos espaços culturais abandonados no município, como a Praça CEU, o Teatro Carlos Jehovah e a Praça da Juventude. Enquanto artista, como você avalia a gestão da pasta da Cultura no município?

Nana Aquino: É muito difícil ser artista no Brasil e, sobretudo, no interior da Bahia, principalmente numa cidade que vem conseguindo implementar uma política conservadora a partir dos últimos governos. Quando eu comecei a fazer música, a gente tava num momento bom, que era o governo de Zé Raimundo, que valorizava muita a cultura. Nós recebíamos inúmeros festivais nas praças públicas. Tinha, por exemplo, o Festival da Juventude, que era riquíssimo, com uma semana de atividades. Tivemos grandes nomes nesse evento como Ponto de Equilíbrio, Baiana System e Nação Zumbi. Era um movimento que permitia que a cultura acontecesse. Mas depois entrou um governo bem conservador e em sequência tivemos a pandemia, que acabou desarticulando muitos grupos. A desarticulação também aconteceu por causa do conservadorismo da gestão e de toda a burocracia que é utilizada como estratégia do sistema para que a gente não consiga se organizar. Além disso, temos esses espaços culturais que deveriam ser usados pelo povo. O que não falta aqui na cidade é grupo de teatro, de dança, pessoas que tocam, cantam, fazem artes plásticas e diversas outras representações artísticas. E essas pessoas precisam de lugares para expor sua arte. Então, percebo que a gente vem desse histórico recente de governos que acabam dificultando a circulação da cultura e setorizando muito o que é arte. Nós tivemos aqui espaços musicais que tentaram acontecer, como o Canto do Sabiá, que foi um grande abrigo musical para muitos artistas, e também o Manifesto. Mas esses lugares encontram dificuldades para se estabilizar e continuar existindo. Foram vários espaços culturais que surgiram e tentaram se sustentar, mas não conseguiram por conta dessa sociedade que está o tempo todo tentando criminalizar e acabar com a nossa Cultura.

Gosta do nosso trabalho? Então considere apoiar o Conquista Repórter. Doe qualquer valor pela chave PIX 77999214805 ou assine a nossa campanha de financiamento coletivo no Catarse. Assim, você nos ajuda a fortalecer o jornalismo independente que Vitória da Conquista precisa e merece!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  • some
  • Somos uma organização de mídia independente que produz jornalismo local em defesa dos direitos humanos e da democracia no sertão baiano.
  • Apoie

© 2021-2024 | Conquista Repórter. Todos os direitos reservados.