Fechar escolas é uma tentativa de dizimar a história dos povos quilombolas, aponta Niltânia Brito

Por - 20 de março de 2024

Segundo a pesquisadora e professora da rede municipal de ensino há 30 anos, a desativação de unidades de ensino em comunidades quilombolas de Vitória da Conquista é uma negação de direitos que leva à invisibilidade dos povos tradicionais.

Professora da rede municipal de ensino há 30 anos, Niltânia Brito Oliveira iniciou sua trajetória profissional em uma escola no quilombo do Boqueirão, um dos mais de 30 certificados pela Fundação Cultural Palmares em Vitória da Conquista. A partir dessa experiência, ela passou a se interessar cada vez mais pelas temáticas das relações étnico-raciais, da educação escolar quilombola e da cultura afro-brasileira.

A pesquisadora foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) na terceira maior cidade da Bahia. Ao lado de outros profissionais da educação, iniciou pesquisas na área da educação escolar quilombola e participou, em 2005, da implementação de um núcleo de diversidade dentro da Secretaria Municipal de Educação (SMED), que hoje se encontra desativado.

“Nós iniciamos esse trabalho para que as pessoas pudessem compreender que em Vitória da Conquista não só tem uma elite branca. Temos também populações negras, que estão alocadas nos bairros periféricos, mas que precisam ganhar seu espaço dentro da sociedade porque constroem essa sociedade enquanto classe trabalhadora”, ressalta.

Niltânia é pedagoga, graduada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e mestre em Educação pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Em sua dissertação, pesquisou a política de educação escolar quilombola em Vitória da Conquista, no período de 2012 a 2017. 

Sete anos após a realização da sua pesquisa, o cenário no munícipio aponta uma crescente do fechamento de escolas do campo, o que inclui unidades escolares situadas em comunidades quilombolas. Desde 2018, foram ao menos 14 instituições de ensino fechadas em quilombos conquistenses, considerando um total de 26 existentes naquele ano. Os dados são de um levantamento exclusivo do Conquista Repórter, que resultou no especial ‘Educação Quilombola’.

Na entrevista a seguir, a professora fala sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, definidas por uma resolução do Conselho Nacional de Educação, publicada em novembro de 2012. Ela explica ainda quais os impactos de retirar alunos de escolas nos quilombos e transferi-los para instituições fora dos seus locais de origem. Além disso, destaca a importância de uma educação antirracista. Confira: 

CR: O que dizem as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola, definidas por uma resolução do Conselho Nacional da Educação, publicada em novembro de 2012?

Niltânia Brito: As diretrizes definem como deve ser o trabalho, do ponto de vista educacional, para que haja a valorização e o respeito às tradições e religiosidade desses povos. Mas o que estamos vendo dentro dos quilombos hoje? A gente vê a demonização das religiões de matriz africana, e isso vem sendo colocado também através da educação. Quando você não trabalha numa perspectiva da educação laica, mas sim com base numa educação que tem moldes cristãos, você nega essa religiosidade de matriz africana que é tão importante para a continuação da memória e para que a gente não esqueça o nosso passado e as nossas raízes.

CR: Qual o papel dos profissionais que vão atuar dentro dos quilombos para que seja de fato implementada essa educação que respeita as tradições dos povos quilombolas?

Niltânia Brito: As diretrizes orientam que os profissionais sejam preferencialmente pessoas que compõem aquele território quilombola. Por quê? Porque conhecem as tradições, a história, as pessoas que lá estão, as suas especificidades e necessidades. Na minha pesquisa de mestrado, eu pude perceber e constatar, através dos dados coletados, que dentro do quantitativo de 25 escolas que eu pesquisei, nós tínhamos 82 professores atuando nas comunidades quilombolas. Desses 82, apenas 20% eram dos quilombos. Além disso, 80% não eram efetivos e eram contratados sem nenhum vínculo com as questões étnico-raciais. Então, nós podemos perceber que existe uma negação da política no dia a dia dessas comunidades. Isso acaba sendo um problema historicamente crônico. O negro já se insere tardiamente no processo educacional. Tínhamos um decreto de 1850 já dizendo que o negro não poderia estar dentro dos bancos escolares, e caso estivesse, teria que ser à noite. Por isso estamos tratando de uma construção histórica. E a educação quilombola surge para enfrentar essa construção histórica de negação de direitos.

CR: Em 2005, você foi uma das pessoas que participou da implementação de um núcleo de diversidade que existia dentro da Secretaria Municipal de Educação (SMED). Qual era o papel dessa entidade?

Niltânia Brito: O núcleo servia como um suporte pedagógico para que os professores pudessem buscar a produção de material específico para trabalhar dentro das escolas. Me ajudou com a minha pesquisa de mestrado, inclusive. Eu, juntamente com os professores que atuavam nas comunidades quilombolas, nos sentamos e pensamos numa sequência didática, em como deveria ser o trabalho com a matemática, a história, a ciência, a geografia, o português, levando os conteúdos para as realidades dos nossos alunos e unindo com a temática que a gente queria trabalhar, das relações raciais, do combate ao racismo e aos preconceitos. Os professores trouxeram o material que eles tinham, sem nenhuma organização curricular, e a gente pôde organizar isso dentro da sequência didática. O livro foi publicado pela EDUFBA (Editora da Universidade Federal da Bahia). É um trabalho que contém os saberes das escolas quilombolas e foi uma construção coletiva. Isso aconteceu quando o núcleo ainda estava em funcionamento. Naquele momento, havia uma exigência nacional para que os municípios implementassem uma política de educação, mas de lá para cá, o que estamos vendo e vivenciando é uma descontinuidade de tudo o que foi construído.

CR: Na sua visão, qual o impacto de retirar alunos de escolas nos quilombos e transferi-los para instituições fora dos seus locais de origem? Essas escolas que recebem os alunos sabem que eles são quilombolas?

Niltânia Brito: Elas sabem, mas negam, invisibilizam e não trazem a temática. E quando pensam em fazer algo é um trabalho pautado em uma data específica, que é o 20 de novembro [Dia de Zumbi e da Consciência Negra]. Mas na verdade, nós sabemos que o debate não pode ser pontual. O trabalho das relações étnico-raciais, da educação quilombola e da educação do campo precisa ser contínuo. Não adianta tratar da temática em datas específicas, porque no máximo, o que você vai fazer é folclorizar uma questão que é tão séria no nosso país: o racismo estrutural. O Silvio de Almeida conseguiu traduzir isso muito bem na sua pesquisa. O racismo estrutural toma conta de toda uma estrutura, e a educação é uma estrutura que fortalece o racismo. Mas essa mesma educação que fortalece o racismo pode ser uma outra educação, aquela pautada no respeito, na diversidade, no reconhecimento dos direitos de todos os sujeitos.

CR: Em Vitória da Conquista, há uma crescente do fechamento de escolas do campo, de maneira geral, e também daquelas situadas em comunidades quilombolas. Como você analisa esse cenário?

Niltânia Brito: A educação é um processo que fortalece a identidade da criança, fortalece a sua capacidade de intervenção no mundo. Quando você tira isso, tira essa criança do seu espaço, o impacto é formar pessoas simplesmente para atender as necessidades do mercado de trabalho e do capital. É uma negação de direitos que vai levando cada vez mais os sujeitos quilombolas para uma invisibilidade. Ao meu ver, é uma tentativa de dizimar toda a história dos povos quilombolas através da educação. Esse cenário é totalmente negativo porque isso nega o que é um direito inalienável, o direito à educação e, preferencialmente, à educação dentro do espaço onde você reside e tem seus laços familiares e na história. 

CR: Qual a importância da existência de uma escola dentro do quilombo?

Niltânia Brito: Além da garantia de direitos, existe o aspecto da valorização da própria comunidade, porque uma escola dentro de um quilombo não é só uma escola, é um espaço onde as pessoas se reúnem, confraternizam, onde elas buscam essa coletividade que é tão característica para as pessoas dentro de um quilombo. Na verdade, quando a escola está em funcionamento modifica todo o território. Então, é uma importância para além das condições materiais, mas também simbólica da memória, da ancestralidade e de garantir que esse espaço vai ser um lugar garantidor dos momentos de coletividade, de continuidade, dessa acolhida que é bem presente dentro dos quilombos. 

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