Escrita SEL: um sistema para a língua de sinais desenvolvido pela professora Adriana Lessa
Por Victória Lôbo e Karina Costa - 2 de agosto de 2021
Reconhecido nacionalmente e internacionalmente, o sistema comprova a importância do incentivo à Ciência nas instituições de ensino superior

A professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), Adriana Lessa, é a idealizadora do projeto que resultou na Escrita SEL, um sistema de escrita para os gestos da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com doutorado e mestrado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas, a docente é titular no Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL).
Segundo Lessa, a ideia de criar o sistema surgiu enquanto preparava uma disciplina de Aquisição da Linguagem que seria ministrada num curso de Especialização em Linguística em 2008, na Uesb. Para o Conquista Repórter, ela contou a importância da pesquisa e do desenvolvimento da Escrita SEL, confira:

CR: Como surgiu a ideia de criar a Escrita SEL?
Adriana Lessa: Ao fazer um levantamento bibliográfico sobre as várias questões que envolvem a aquisição da linguagem, deparei-me com artigos que falavam do problema que os surdos enfrentam no processo de aquisição da escrita de uma língua oral, pelo fato de a língua oral não ser a língua que os surdos possam naturalmente adquirir e falar. Eu fiz os meus cursos de mestrado e doutorado na Unicamp (entre 2001 e 2008) e lá tive contato com pesquisas sobre línguas de sinais, através de duas colegas de turma que faziam suas pesquisas sobre a Libras. Entretanto, as pesquisas delas eram sobre a gramática da Libras e não sobre aquisição da linguagem por surdos. Então, embora eu já tivesse tido a oportunidade de conhecer estudos sobre alguns aspectos gramaticais da Libras, o problema que os surdos enfrentam com a aprendizagem da escrita do Português era, até aquele momento, desconhecido para mim, como ainda é para boa parte das pessoas. Eu levei essa questão para as discussões, em sala de aula, com a turma do curso de Especialização em Linguística de 2008, e debatemos a questão frente às teorias estudadas durante as minhas aulas. A partir dali, fui amadurecendo minhas reflexões e análises e decidi começar um projeto de pesquisa, que dei o título de: “Inclusão de pessoas surdas no mundo letrado: proposta de criação de um sistema de escrita para Libras e de métodos de alfabetização em Libras e em Português para pessoas surdas”. Foi no âmbito desse projeto que a escrita SEL foi criada.
CR: Esse é um projeto que está em desenvolvimento há quanto tempo? Quantas pessoas trabalharam/trabalham nele?
Adriana Lessa: O projeto se iniciou em abril de 2009 e foi financiado, nas etapas iniciais, pelo CNPq e depois pela FAPESB. Em 2012, como resultado dessas etapas, eu já tinha obtido duas versões do sistema, sendo a de 2012, uma versão já bastante completa. Nesse mesmo ano, produzimos também um primeiro editor para digitação do SEL, utilizando o teclado do computador. Mas o SEL veio sendo aperfeiçoado chegando a uma versão que não sofreu maiores alterações em 2019. Entretanto, como continuamos trabalhando em desdobramentos desse projeto, como na produção de um novo Editor SEL, por exemplo, podemos dizer que estamos nesse trabalho há doze anos. Nas primeiras etapas do projeto, eu contei com a valorosa contribuição de um surdo, Joziel Porto, e de uma aluna de iniciação científica, Lizandra Prado, que faziam a testagem das versões do sistema. Os dois realizaram esse trabalho de testagem do sistema durante dois anos. Joziel, na época, era aluno do Ensino Médio. Em 2012, eu contava com um grupo de mais cinco surdos e um ouvinte, que também participaram de um teste do sistema. Esses surdos e o ouvinte também eram alunos do Ensino Fundamental e Médio, na época. Além desses colaboradores, tive também outros orientandos de iniciação científica que vieram trabalhar em pesquisas com o SEL, mas já em fases posteriores do projeto. Com o início do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Uesb, em 2011, do qual sou docente até o momento, vários pesquisadores juntaram-se ao trabalho de pesquisa sobre a Libras, utilizando o SEL como instrumento de transcrição de dados ou ferramenta metodológica para observação e análise da estrutura dos sinais e de frases em Libras. Então, formamos hoje um grupo de 22 pesquisadores das instituições UESB, UNEB, UESC, UFRB e IF Baiano, além de professores da rede estadual baiana.
CR: De forma didática, no que consiste a Escrita SEL?
Adriana Lessa: É um sistema criado para possibilitar a escrita dos sinais da Libras. Da mesma forma que ocorre com escritas como a greco-latina, que utilizamos para escrever o Português, por exemplo, a escrita SEL representa a articulação do sinal. Esta representação ocorre de forma que, através dos caracteres (letras e diacríticos) da escrita SEL, identificamos: como a mão fica configurada e em que posição, na realização do sinal; qual parte do corpo compõe o sinal e onde essa parte é tocada; e o tipo de movimento feito pela mão, incluindo o plano e a direção desse movimento. Então, ao ler um sinal escrito em SEL, identificamos exatamente como esse sinal é realizado.
CR: Qual foi a maior dificuldade no processo de criação da Escrita SEL?
Adriana Lessa: Criar um sistema de escrita, obviamente, não é uma coisa simples. Haja vista o tempo que a humanidade levou para criar a escrita que utilizamos hoje para escrever as línguas ocidentais modernas, foram cerca de 14 séculos e com a contribuição de vários povos. Deve estar claro que me fundamentei nesse conhecimento já desenvolvido pela humanidade sobre sistemas de escrita. Entretanto, precisei realizar uma pesquisa paralela sobre a articulação de línguas de sinais, para conseguir obter o conhecimento que eu precisava para criar um sistema de escrita do tipo que eu pretendia, ou seja, um similar aos sistemas alfabéticos. Então, eu realizei uma investigação sobre a estrutura fonológica da Libras. Isto porque, para um sistema de escrita funcionar eficientemente, ele precisa representar com fidelidade essa estrutura, favorecendo um fator chamado ‘automatização do processamento’. Em outras palavras, podemos dizer que o cérebro da pessoa que está utilizando a escrita precisa reconhecer o que as letras representam automaticamente, sem que a pessoa precise pensar nas regras do sistema. As poucas pesquisas já existentes, as quais tive acesso, sobre esse aspecto, não se mostraram suficientes para servir de base para a construção do sistema de escrita, atendendo ao requisito da automatização do processamento, que era um dos principais requisitos levados em consideração por mim, na criação da SEL. Assim, fui realizando essa investigação sobre a estrutura fonológica da Libras, concomitantemente ao trabalho de criação do SEL, e acabei por descobrir e propor um modelo fonológico para as línguas de sinais que é a estrutura que chamei de MLMov. Essa estrutura é que, por fim, serviu de base para a criação do SEL. Posso dizer que esse foi o maior desafio – buscar uma base fonológica para o SEL, algo que exigiu uma investigação paralela e acabou por resultar numa descoberta que pode contribuir com os próprios estudos sobre a estrutura das línguas de sinais.
CR: Como você pretende fazer com que o SEL alcance outros grupos de pessoas surdas, como crianças em idade escolar, por exemplo?
Adriana Lessa: A partir de 2019 começamos a oferecer cursos mais longos para surdos e ouvintes em formato de projeto de extensão. Também estaremos realizando oficinas, como a que será oferecida no VIII ECLAE (Encontro das Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino), um evento do GELNE, que ocorrerá de 10 a 12 de novembro de 2021. Pretendemos também publicar material didático para ensino da escrita SEL e ensino da Libras, utilizando-se a escrita SEL. Além disso, a SEL já é divulgada desde 2012 pelo blog “ESCRITA SEL – Sistema de Escrita para Línguas de Sinais”. Inclusive, pessoas do mundo inteiro têm acessado frequentemente esse blog. Nele viemos apresentando as várias versões do SEL ao longo de quase uma década. Também postamos lá material para aprendizagem do sistema.
CR: Como a criação da Escrita SEL, dentro de uma universidade pública, evidencia a importância da produção e valorização da Ciência em nosso país?
Adriana Lessa: Segundo pesquisa publicada na página da Academia Brasileira de Ciência, as universidades públicas são responsáveis por mais de 95% da produção de ciência nesse país. Então, podemos dizer que o projeto de criação da escrita SEL está considerado dentro desse número estatístico, fazendo parte dessa locomotiva que move o progresso do país. Nesse sentido, o projeto de criação da escrita SEL contribui para que a universidade pública cumpra o seu papel como carro chefe na tarefa de alavancar o progresso, promovendo a inclusão e a justiça social. Sabemos que, livres de restrições de mercado, que sempre limitam os setores privados, são as universidades públicas as grandes promotoras do desenvolvimento científico e as responsáveis por realizar pesquisas sobre assuntos que jamais vão ser do interesse do setor privado, porque não envolvem e nunca vão envolver objetivos de mercado. Esse é o caso das questões sobre a inclusão social de pessoas surdas pela via do letramento, que encontra em projetos como o de criação da escrita SEL investimentos científicos necessários à busca de soluções e desenvolvimento de recursos para o melhoramento das condições de vida de pessoas surdas e das relações sociais de modo geral.
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