“Conquista precisa ser mais solidária”, afirma o diácono José Dias

Por - 4 de maio de 2023

Presidente da Comunidade de Aliança Anuncia-me conta que ficou quase dois anos na fila de espera para falar com a prefeita Sheila Lemos e pedir apoio ao projeto, que existe há cerca de 28 anos.

Diácono, professor de Filosofia e presidente da Comunidade de Aliança Anuncia-me, em Vitória da Conquista, José Dias é um dos fundadores do projeto que existe há mais de 28 anos com o objetivo principal de acolher pessoas em situação de rua, andarilhos e migrantes. Aos 69 anos, o diretor da Anuncia-me também é colaborador na Paróquia Nossa Senhora das Vitórias, além de ter sido secretário, prefeito e professor de Filosofia da Natureza no Instituto de Filosofia Nossa Senhora das Vitórias.

Apesar do vasto currículo, José Dias foi fisgado pelo desejo de ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade quando, em um dia de trabalho formal, um homem em situação de rua chamado Fernando lhe disse: “seu lugar não é aqui não, seu lugar é na Anuncia-me para cuidar de nós”. Desde então, José Dias trabalha na missão de cuidar do ser humano através da comunidade. 

Em entrevista ao Conquista Repórter, ele falou sobre a sua trajetória, a história e as dificuldades de tocar a Anuncia-me nesses longos anos de projeto, além de descrever a sua missão de acolher e ajudar as pessoas que precisam de solidariedade.

CR: Como surgiu a ideia de criar a Comunidade Anuncia-me?

José Dias: Nós tivemos a ideia a partir de um trabalho social e, mais especificamente, religioso, onde nos encontrávamos na capela do São Vicente, ao lado do hospital localizado no bairro, justamente do ano de 1994 para 1995. O trabalho começou a partir de algumas pessoas que ficavam ali em frente à capela, a partir do insight de um senhor que estava pedindo para poder ajudá-lo. O nome dele era Fernando. Começamos esse trabalho mais social, justamente no dia 2 de setembro de 1995. Primeiramente, conseguimos uma casa e, a partir dessa casa, fomos às ruas. Era muito difícil, muito perigoso. À noite não conhecíamos esse público e a partir dele foi justamente tomando essa iniciativa e o trabalho continuou. O nome “Anuncia-me” quer dizer anunciar a pessoa de Jesus Cristo para onde fosse necessário, e o trabalho social nasceu dentro dessa conjuntura daquilo que se fazia espiritualmente.

CR: Quais são as suas crenças e os valores pessoais que te inspiraram a liderar esse projeto?

José Dias: Justamente na época, eu ainda trabalhava na área da educação, não tinha muito vínculo com essa dimensão social. E desde o início a iniciativa foi da doutora Regiane. Hoje ela ainda atua como médica no Hospital São Vicente e em outros hospitais que existem em Conquista. Eram três pessoas que estavam iniciando, depois me convidaram e eu fui. Na época, eu lecionava no colégio Dicocesano, na área religiosa e também outras matérias mais voltadas para a dimensão social, como psicologia e sociologia. E eu trabalhava também em outra dimensão da área filosófica, que era um curso praticamente universitário, uma ação religiosa para essas indústrias. Então, eu tinha esse vínculo com o pessoal, ia lá, mas não estava muito ligado. A minha decisão de poder assumir foi [tomada] no início dos anos 2000. A doutora Regiane afastou-se, queria eminentemente uma função mais religiosa, mais interna, e aí a partir de 2001 eu assumi como presidente da Anuncia-me.

Eu tive de deixar todas as coisas, a parte especificamente profissional. Eu ainda trabalhava no Colégio Diocesano, no Instituto de Filosofia, era professor, e até cheguei a assumir a parte da diretoria do Instituto. Vendo toda a necessidade [da comunidade], eu tive que me desprender de tudo, a partir da saída da doutora, então, como família, reunimos, e eu tive que abraçar a casa. Certa vez um homem em situação de rua falou comigo, quando eu estava trabalhando em uma empresa. Ele foi para o Diágua, quando chegou lá, ele se deparou comigo e falou: “seu lugar não é aqui não, seu lugar é na Anuncia-me para cuidar de nós”. 

Foi fantástico porque eu despertei para essa realidade. Não era algo que eu realmente fazia. Eu trabalhava muito essa dimensão teórica no sentido de passar o conhecimento, mas quando eu me deparei com essa realidade, tomei como referencial, abracei a causa e tive que deixar o Instituto de Filosofia, onde me sentia como um rei. Deixei o Colégio Diocesano e também outras coisas que eu fazia, de modo que valeu a pena. Se me perguntassem hoje: “você voltaria a lecionar?” Eu responderia que voltaria, mas o referencial hoje é o trabalho social que fazemos aqui na cidade, especialmente com esse público que é muito discriminado, mas que tem muitos valores dentro desse grupo com o qual trabalhamos. 

CR: Quais as principais dificuldades encontradas há 28 anos e que vocês ainda encontram para manter o projeto?

José Dias: Manter o projeto é difícil porque não temos uma ajuda específica de um órgão público, municipal, estadual ou federal, por exemplo. Embora nós tenhamos todos os títulos como entidade reconhecida pelo Município, pelo Estado e pela Federação, [o apoio] ainda é muito tímido, o pessoal não chega junto. As dificuldades existem porque se nós tivéssemos apenas voluntários, seria ótimo. É bom o voluntariado prestar o serviço gratuitamente, uma vez ou duas vezes por semana, mas se tratando de um trabalho contínuo, precisaríamos de pessoas que fossem contratadas.

Todo trabalhador merece o seu salário e a gente tem que trabalhar nesse intuito. Por exemplo, como a sociedade conquistense, ela é muito solícita quando a gente pede, ela ajuda, mas só quando pede. Não tem um grupo que chega assim e fala: “olha, vamos caminhar juntos”. Eu acho que isso é muito importante. Por exemplo, nós temos pessoas em situação de rua, viciados em drogas e outros entorpecentes. E o que ocorria? Eles vinham para a comunidade, mas chegou um momento em que, vendo a nossa realidade, eles começaram a se aproximar. Por incrível que pareça, descobrimos muitos profissionais na área da construção civil. Eram carpinteiros, nós nem sabíamos. Quando deixaram o vício, eles começaram a caminhar conosco, até hoje muitos caminham, mas dificuldades existem.

Atualmente, nós temos uma média de 20 voluntários. Eles têm uma escala de segunda a sexta, vêm em dias alternados, e gostam muito do trabalho. Nós temos uma ajuda de um órgão ligado à Justiça, quando, por exemplo, um cidadão comete um delito e passa a cumprir uma pena lá dentro da instituição, sendo voluntário. Ele vai por determinação jurídica, mediante essa orientação, e presta o serviço.

Hoje também temos sócios voluntários. A pessoa pode se tornar sócia para contribuir, porque através dessa doação, vamos correspondendo à questão trabalhista. Isso ajuda muito, porque nós temos duas casas: uma para pessoas em situação de rua, peregrinos e famílias em estado de pobreza, e uma para mulheres e idosos. Na casa de idosos, temos profissionais que trabalham, pessoas que são agentes de saúde ou pessoas que fazem o curso de Enfermagem. Desde o início foi muito difícil, porque nós não tínhamos uma receita, era só despesa, e tínhamos que correr para viabilizar toda essa parte econômica.

CR: Como a Prefeitura e o governo local apoiam o projeto Anuncia-me e quais são os tipos de suporte oferecidos?

José Dias: Eu fiquei quase dois anos na fila de espera para falar com a prefeita Sheila Lemos e tinha essa expectativa porque, primeiramente, pedi o apoio para ela na qualidade de gestora do município. Ela me atendeu apenas por 10 minutos, mas, no tempo que eu tive, fiz um pedido, no sentido da ajuda material e econômica. Ela disse que não podia. O objetivo era conseguir um terreno para que pudéssemos produzir, por exemplo, mantimentos. Nós temos muitas pessoas que trabalham na área agrícola. A agricultura é muito importante, sobretudo a agricultura familiar, em que a gente planta e o que se planta se pode usufruir na própria casa, como também tem uma destinação para pessoas que possam adquirir esses produtos.

A minha ideia foi essa, uma vez que ela não podia determinar valores. Então, pedi um terreno para que a comunidade pudesse criar subsídios e, através desses valores, manter o seu trabalho. Ela falou que estaria disposta a ver o terreno, uma área que pudesse destinar à comunidade, mas teria que redirecionar para a Câmara de Vereadores, para que lá pudessem ver o projeto de lei e determinar um parecer em favor do pedido. Então, existem todas as formalidades, mas a gente tem que caminhar por aí, porque é uma perspectiva boa.

CR: Quais são os tipos de atendimentos oferecidos pela comunidade à população em situação de rua, andarilhos e migrantes e como são realizados?

José Dias:  A gente fornece o café da manhã, e depois do café da manhã, tem três dias da semana em que se libera o banho, e através do banho eles sempre pedem uma roupa, porque o público é 90% masculino. Então, a pessoa quer tomar um banho. Acho que é uma dignidade do ser humano. Eles pedem o que a gente tem, a gente dá. Conquista precisa ser mais solidária nesse aspecto, de poder partilhar uma roupa conosco, por exemplo. Tudo na comunidade parte do sistema de doação. A gente não cobra um real. É realmente um trabalho difícil por isso, porque não há um retorno no que se refere ao Poder Público, que poderia viabilizar uma verba para nós, mas até o momento isso não acontece, então, as pessoas estão nessa situação de vulnerabilidade social.

Depois, meio-dia, antes do almoço, tem o momento de reflexão. Como nós pertencemos a uma organização católica, tem a celebração da missa e eles participam. Tem outras pessoas que são profissionais e vão lá também transmitir uma mensagem. Então, de segunda a sexta, pode faltar até o alimento, mas a palavra para eles não falta. E eles ficam muito felizes. Têm pessoas que gostam da música, todos os dias. Então, tem esse trabalho que é feito não apenas no direcionamento do alimento ou do banho adjacente, mas o ponto principal eles me falam que é a parte espiritual, isso é muito gratificante.

A gente sai à noite em determinado dia da semana e vamos até eles. Isso é muito importante porque é o reconhecimento daquilo que é feito. Como Conquista tem uma diversificação de lugares e eles já têm os lugares próprios, nós vamos até esses lugares para levar comida também. É um trabalho que se chama ‘Pastoral de Rua’. Pastoral que leva a necessidade de alimento e a palavra também. Hoje, nós servimos uma média de mais de 50 refeições diárias. 

CR: Como as pessoas podem se tornar voluntárias da Comunidade Anuncia-me?

José Dias: Para ser voluntário você vai ver o trabalho, escolhe o dia em que pode dedicar o seu tempo e preenche um formulário, porque faz parte de toda a dimensão voluntária que a gente sabe que precisa muito disso. É realmente uma convivência fantástica. Nós temos exemplos de pessoas que se tornaram voluntárias. Umas estavam em situação de rua, a gente deu apoio, e a pessoa mudou de vida. 

Foto de capa: Blog do Anderson.

Supervisão e edição da matéria: Victória Lôbo.

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