Beth do MST: “A esquerda precisa urgentemente se reorganizar para fazer cumprir o seu papel”
Por Lays Macedo - 30 de outubro de 2024
Integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) há mais de 30 anos, Elizabeth Rocha de Sousa saiu do extremo sul da Bahia em direção à Vitória da Conquista em 1997. Em 2024, disputou uma vaga na Câmara Municipal.

Aos 14 anos, quando iniciou sua atuação em movimentos sociais em Itamaraju, no extremo sul da Bahia, Elizabeth Rocha de Sousa não imaginava que, na vida adulta, viria a disputar um cargo eletivo na terceira maior cidade do estado. Nas eleições municipais de 2024, em Vitória da Conquista, participou do pleito como candidata a vereadora pelo Partido dos Trabalhadores (PT). “Sempre ajudei e contribui com as campanhas de outros, mas não me via nesse lugar”, conta a ativista.
A disputa eleitoral deste ano foi a primeira a ser incluída no extenso currículo de Beth, como prefere ser chamada. Não foi eleita, mas obteve 1.901 votos e representou para muitas pessoas, principalmente para meninas e mulheres negras, a possibilidade de ter no Legislativo conquistense alguém que carrega na sua história as lutas de grupos socialmente invisibilizados, como os trabalhadores(as) do campo.
Há mais de 30 anos, ela integra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Desde muito jovem, por meio do ativismo de sua mãe, se dedica aos trabalhos sociais. “Minha mãe era uma professora e o meu maior exemplo de vida militante. Nosso ativismo era mais religioso, vinculado à Igreja Católica, às Comunidades Eclesiais de Base (CEBS). A partir dali, a gente veio descobrindo que a sociedade é desigual demais, que existe riqueza e pobreza”, explica Beth.
Foi na década de 1980, quando começou a trabalhar no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itamaraju (SRI), que ela se aproximou das pautas do campo e, alguns anos depois, conheceu o MST. Presente em 24 estados nas cinco regiões do país, o movimento representa a resistência do povo do campo que, de maneira organizada, luta pela reforma agrária e pela democratização do acesso à terra.
“Em 1986, por meio do sindicato, ocorreu uma ação com um movimento social que estava surgindo e vindo fazer um trabalho na Bahia, começando pelo extremo sul do estado, para discutir o processo da reforma agrária. Para mim, era, até então, uma questão pouco conhecida”, relata Beth. Um ano depois, após se dedicar a formações políticas, ela participou da primeira ocupação de terra, realizada no município de Alcobaça e, posteriormente, se tornou membro do MST.
Quase 10 anos depois, veio o convite do MST para que Beth se mudasse para Vitória da Conquista. No ano de 1997, sua presença no município era necessária para auxiliar no processo de formação da regional do movimento no sudoeste baiano. “Vim com a minha família, dois filhos pequenos, um com um ano de idade e outro com três. Minha filha ficou em Itamaraju. Dentro do MST, você vai para os lugares como parte da tarefa e é aquilo que define a sua direção”, destaca a ativista e bacharel em Direito.
Após a mudança, Beth se dedicou por dois anos ao setor de formação do MST. Mais tarde, assumiu a direção da regional por seis anos. Depois, se tornou dirigente nacional do movimento na Bahia. Com o passar do tempo, Conquista se tornou a sua casa. “Fui cativada por esta região. É um lugar bom, desde que você tenha condições, né? Porque também existe muita desigualdade no nosso município”, ressalta.
Em entrevista ao Conquista Repórter, a ativista e militante falou sobre a sua participação nas eleições de 2024, os desafios enfrentados durante a campanha e a ausência histórica de mulheres negras na política conquistense. Além disso, fez uma análise do avanço da extrema direita no país. Confira a seguir:
CR: No pleito de 2024, você obteve quase dois mil votos. Em números absolutos, isso representa mais votos do que alguns vereadores que foram eleitos em razão dos cálculos a partir da legenda partidária. Quais foram os desafios enfrentados durante a campanha, especialmente diante de um contexto local onde há pouca diversidade no Legislativo?
Beth Sousa: O primeiro desafio foi conseguir me enxergar como candidata. Essa foi uma questão muito individual, tem a ver com a forma como a sociedade nos impõe um lugar, mesmo sendo uma militante ou dirigente que tem uma bagagem. Era um lugar que eu ainda não tinha ocupado e tinha receio de não cumprir esse papel. O segundo desafio tem muito a ver com a sua pergunta. É um espaço onde a gente não se enquadra, mesmo dentro do nosso partido e de uma federação política. Quando você coloca isso em um município como Vitória da Conquista, onde infelizmente temos pessoas muito preconceituosas, com uma mentalidade ainda conservadora do que é ser mulher, por exemplo, isso também se torna um desafio. Mas ainda acho que meu maior desafio foi interno, porque existia aquele bloqueio inicial de ver meu nome, minha figura e minha estética colocados em xeque. Nós tivemos uma campanha leve e bonita, com a aceitação de pessoas que compreendem o nosso papel. Eu não tive nenhuma porta na cara ou rechaço ao chegar nas pessoas. Nós chegávamos em espaços como a feira, que é onde você ouve muitas críticas sobre a política e quem a representa, e as pessoas pegavam santinhos, conversavam com a gente, queriam conhecer melhor quem era Beth. Isso me surpreendeu. Outro desafio é que eu não tinha a força e a estrutura do poder econômico. Nós conseguimos levar boas propostas, as pessoas gostavam, mas precisavam da caixa d’água, da cesta básica, de alguém que lhes desse alguma coisa e, eticamente, esse não é nosso papel, não é o formato de política em que a gente acredita. No campo, nós tivemos muita dificuldade, não de dialogar, mas de fazer com que as pessoas enxergassem no nosso projeto uma saída, não imediata, mas por meio da representatividade na política.
CR: Com o resultado das eleições municipais deste ano, pouca coisa irá mudar na composição da Câmara de Vereadores em 2025. Foram reeleitos 15 parlamentares e, além disso, serão apenas quatro mulheres na próxima legislatura, sendo que nenhuma delas se declara uma mulher preta. Como você observa esse cenário de uma ausência histórica de mulheres negras na política conquistense? Como isso interfere na vida da população?
Beth Sousa: Na minha percepção, o cenário do Legislativo ficou um pouco pior. Eu não acredito na representatividade apenas pelo gênero, então não uso o argumento de que “só tínhamos duas mulheres na Câmara, agora teremos quatro”. Quem são as mulheres que estarão lá? Quais serão as bandeiras delas? E teremos ainda menos representação a partir do recorte racial. Quem está lá, salvo raras exceções, são pessoas que perpetuam a ocupação desses lugares por mesmos grupos. O fato de a gente ampliar o número de cadeiras e ter a manutenção do mesmo círculo político demonstra que nós tivemos um retrocesso. Eu não vejo a nossa Câmara hoje como uma instituição que vai, de fato, construir um projeto político. Mesmo com o imbróglio judicial pendente para a eleição da Prefeitura, nenhum gestor terá nesse Legislativo um retrato de impulsionamento para o avanço do nosso município. Nós vamos ter, em 2025, um grupo pequeno, menor ainda do que tivemos, para ser oposição no cenário atual.
CR: Nascida no Sul da Bahia, você chegou no Sudoeste baiano no ano de 1997. Portanto, conseguiu acompanhar os vinte anos do Partido dos Trabalhadores (PT) na gestão do município e a transição para um governo de direita e conservador. Qual a sua análise sobre esse cenário, que acontece não só em Vitória da Conquista, mas tem se repetido no Brasil?
Beth Sousa: Nós temos que fazer uma autocrítica muito grande. E não estou me referindo somente ao PT, mas sim à esquerda como um todo. No cenário nacional, os vencedores dessas eleições foram os partidos de centro e também da extrema direita. Os partidos de centro se acomodam de acordo com a conveniência, seja a nível municipal, estadual ou federal, então não se espera muito uma perspectiva de construção política. A extrema direita já diz para quê veio, não esconde quem são. E é esse extremismo que nos preocupa. Nós sabemos que foi muito difícil o período que vivemos desde o golpe [impeachment de Dilma Rousseff] até o final do governo do inominável, mas nós temos perdido o vínculo com a sociedade. Nenhuma representatividade consegue se manter sem esse vínculo. O que nos vincula à população? Depois de transformar condições de trabalho, de renda, de moradia e de outras políticas públicas, nós estamos nos distanciando daquilo que a gente conquistou. Eu vejo que tem uma falha enorme da esquerda no trabalho de formação política ideológica. Quem tem feito formação, principalmente dos mais pobres, são as igrejas neopentecostais e a política do “toma lá, dá cá”. Isso ficou muito nítido nas eleições em Conquista e em outros lugares também. A esquerda precisa urgentemente se reorganizar para fazer cumprir o seu papel. Nós percebemos isso com a derrota em São Paulo, que era nossa via de esperança. O número de cidades com partidos que têm debate político de esquerda à frente diminuiu. Do ponto de vista dos números, o PT, mesmo avançando um pouco, alcançou menos Prefeituras do que todos os outros partidos. E quem cresceu foi o ‘centrão’. Nós tivemos um alento com a diminuição dos bolsonaristas raízes. Isso significa que temos campo para cobrir. Eu sempre acreditei em dois instrumentos que formam a consciência: a mobilização direta e a formação política ideológica. Então, nós, da esquerda, que sempre fizemos isso, nos afastamos desse lugar, deixamos campo aberto para quem não precisa fazer formação atrair as pessoas. E acho que esse é o grande desafio para o PT, para os partidos de esquerda, retomar para os trabalhos de base. Isso precisa ser feito urgentemente.
CR: Você é uma das fundadoras do MST na Bahia, um movimento muito criminalizado em todo o país. Em Vitória da Conquista, nós temos uma grande população do campo, tendo em vista a extensão da zona rural. Como você avalia a atuação do Poder Público municipal para atender as demandas e garantir os direitos dessas pessoas que vivem distantes da área urbana da cidade?
Beth Sousa: Os direitos não são atendidos na zona rural. Nós passamos por um retrocesso, um processo de desmantelamento do Programa da Saúde da Família no município de Vitória da Conquista. Não existe mais atendimento básico, que é aquele com médico, enfermeira, uma equipe multidisciplinar. Hoje, a maioria dos distritos têm um atendimento médico mensal. E estou falando de distritos, que são aqueles polos maiores. Quando você vai para o povoado, para as comunidades, não existe nada na saúde. Nada. Aí entra o básico, vacina, medicação e o acompanhamento. As pessoas que têm doenças crônicas, que precisam de um acompanhamento direto, não têm assistência. Quando você parte para a água, é outro problema. Durante a campanha eleitoral, que é um período em que as pessoas são melhores cuidadas pelo Poder Público, nós estivemos em lugares em que as crianças não estavam indo para a escola porque não tinham água para tomar banho. Isso foi na região de Cercadinho e de Inhobim. Tivemos pessoas nos ligando e nos pedindo para providenciarmos um carro-pipa. Aí você vai para o aspecto da produção na agricultura: se não tem água, não tem produção. Nós estamos numa região em que a seca está assolando. Então, se você não produz comida, você também não tem alimentação. Outra questão é o acesso a direitos para mulheres que sofrem violência física, psicológica ou sexual. Não tem quem as acompanhe. Inclusive, eu só descobri que existia uma Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres (SMPM) na pré-campanha, quando estivemos em um evento e apareceu uma representante deste órgão. Então, o acesso a direitos e políticas públicas não chegam no campo, mas é no campo também que as pessoas que deveriam ser responsáveis por fazer chegar esses direitos, conseguem fazer a política para se perpetuar no poder. Foi principalmente no campo que muitas dessas figuras que não representam nada conseguiram os votos. É muito complicado analisar isso, mas eu vejo que o cenário no campo pode piorar devido à questão climática. Nós temos nas áreas rurais uma população que vive com o auxílio das políticas de assistência social, mas são políticas paliativas, que nem todo mundo têm acesso e que não constrói um processo de autonomia. Infelizmente, nós podemos ter um cenário ainda pior.
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