Artigo | Zé Baticabo: o carnavalesco marcado na memória de Vitória da Conquista

Por - 14 de fevereiro de 2024

Apesar das tentativas de promover o apagamento da cultura no município, a cidade mantém fortes laços com seus antepassados afrodescendentes, que começaram a organizar as primeiras escolas de samba e afoxé.

Falar de Zé Baticabo nos dias de hoje parece ser muito fácil. Difícil mesmo é manter vivo o histórico legado cultural desse grande compositor carnavalesco, exímio puxador de enredos, organizador determinado de escolas de samba. Era um detentor de uma inteligência cultural aguçada, um homem negro que respeitava as lutas do campo de esquerda de Vitória da Conquista desde os tempos sombrios da ditadura civil-militar burguesa no Brasil (1964-1985).

Foi esse sentido aguçado que lhe permitiu compreender que sem investimento na cultura, prevalecem os interesses de mercado que causam efeitos prejudiciais às culturas populares. Zé Baticabo soube surfar nas ondas do modismo sem romper com suas raízes no auge do carnaval da capital baiana, que se tornava cada vez mais planetário. Ele tinha consciência da força de quem escolhia as bandas, os blocos, os abadás e os trios elétricos que se espalhavam feito rastilho de pólvora por todos os municípios baianos.

Imagino que ele já sabia a verdadeira dimensão dos efeitos retumbantes do trio elétrico na brincadeira popular de rua. Por isso, jamais duvidou da força dessa parafernália irresistível que fazia a alegria do povo da periferia desde os tempos remotos da “fobica”, criada em 1950 por Antônio Adolfo Nascimento (Dodô) e Osmar Álvares Macedo. Contudo, Zé diria que o carnaval é um majestoso sol que estende seus longos braços sobre todas as possibilidades de expressões musicais populares, sobretudo àquelas periféricas das escolas de samba.

Ele tinha razão. O carnaval é mesmo uma festa popular com profundas raízes culturais e tem muito a ensinar à frágil democracia brasileira. A festa representa o livre exercício da diversidade, um imenso guarda-chuva que acolhe a todos, sem se descuidar da cultura popular afrodescendente e dos nossos povos originários. Isso torna o festejo uma das mais fascinantes e expressivas manifestações culturais da classe trabalhadora. Por isso, o Poder Público deveria resgatar, proteger e promover a celebração. Mas, infelizmente, essa memória dos nossos antepassados vem sendo eliminada pelo apagamento institucional promovido pelo governo “para pessoas” da prefeita Sheila Lemos.

A Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista ignora a laicidade definida pela Constituição Federal de 1988 e se afugenta na orientação religiosa fundamentalista (fascista bolsonarista) para promover a eliminação histórica do carnaval que nos conecta à cultura de povos originários e afrodescendentes. E o faz sob o pretexto de que o recurso público tem “outras prioridades”, quando na verdade promove o enriquecimento de empresários capitalistas sem qualquer ligação com a memória afetiva da cidade.

Na prática, esse governo promove o apagamento da cultura. Contudo, Vitória da Conquista mantém fortes laços culturais com seus antepassados afrodescendentes, que começaram a organizar as primeiras escolas de samba e afoxé, a partir de Zé Baticabo e das mulheres do Beco de Vô Dola.

Tive a grata satisfação de entrevistar o historiador, compositor e professor João Paulo Pereira, filho do carnavalesco José César Pereira, o Zé Baticabo. Uma longa conversa em que ele me contou os bastidores da trajetória de um carpinteiro e marceneiro negro da periferia conquistense, que trabalhou duro pela subsistência de sua prole, lutou contra o alcoolismo e aproveitou o curto tempo disponível para ajudar a criar escolas de samba, compor e puxar sambas enredo.

A vida nunca foi fácil para qualquer trabalhador brasileiro, pois a burguesia branca opressora não alivia o dedo apertando o suspiro. Por isso, homens e mulheres negras agarram a primeira “oportunidade” que surge. Com Zé Baticabo não foi diferente. Ele e Jacy Pereira, com quem se casou nos anos 60, seguiram para o Rio de Janeiro para tentar a “sorte” na cidade grande, pois a “cidade maravilhosa”, além de sinalizar um lugar promissor para trabalho, era a terra onde o samba exalava pelos poros.

Incialmente, foram morar na zona norte carioca, no bairro da Penha, ou melhor, no complexa da Penha. Uma comunidade populosa, constituída por aproximadamente 100 mil habitantes distribuídos em 13 favelas formadas no processo migratório motivado pela industrial têxtil. Mas Dona Jacy Pereira não se adaptou bem ao estilo de vida na cidade grande e retornaram à Vitória da Conquista, trazendo de lá apenas a filha primogênita do casal.

Zé Baticabo, ao retornar do Rio de Janeiro, vai morar em uma fazenda na zona rural do município de Barra do Choça (BA). Um tempo depois, ele volta para Vitória da Conquista, se mudando para uma casa na Rua do Peru, no bairro Pedrinhas. Mais tarde se estabelece em um casarão na Rua dos Fonsecas, na esquina da Praça Sá Barreto. Era uma casa que herdou dos seus avós.

A família Pereira, de raiz afrodescendente, sabia bem qual era o peso de se criar crianças negras em uma cidade racista como Vitória da Conquista, controlada pela perversa burguesia branca latifundiária. Isso era perceptível, dada a repressão da família do lado paterno. Zé Baticabo observava criticamente e repudiava o comportamento comparativo da parentela ao julgar seus filhos com base no único critério de racialização, comparando-as à outras crianças, com a finalidade de criminalizá-las o tempo todo.

A reminiscência étnica racial em alguma medida explica a veia artístico cultural de Zé Baticabo. Ele era filho de pais mestiços, como o mesmo dizia. O avô paterno era negro e a avó era branca dos olhos esverdeados. Havia um pertencimento e identidade cultural afro-brasileira que o atravessava musical e culturalmente. Tinha o respeito e a admiração pelas expressões culturais e religiosas presentes nas religiões de matriz africana, pela musicalidade, pela cantoria e pelo batuque.

Toda a família preservava relações com as artes, a exemplo de uma prima que fazia teatro, televisão, cinema, outras que dançavam. Jacy Pereira canta e tem uma voz aveludada muito parecida com a de Dalva de Oliveira. Zé Baticabo era afinadíssimo, cantava muito bem e tocava um pouco de acordeom. Dono de uma voz ímpar, recebeu um segundo apelido, era o nosso Nelson Gonçalves da Bahia.

Zé Baticabo foi um dos grandes carnavalescos de Vitória da Conquista, um carnavalesco negro e puxador de escolas de samba, inclusive da instituição carnavalesca que ele próprio ajudou a criar nos anos 1980. Um homem que nos deixou precocemente aos 48 anos. Um sujeito extraordinário para a família e amigos, que o caracterizavam como uma pessoa alegre, inteligente, bem-humorada e extremamente cuidadosa. Era um detentor de uma inteligência cultural aguçada, que compreendia a necessidade de investir na cultura e em uma das maiores manifestações culturais da classe trabalhadora, o carnaval.

*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do Blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

Foto de capa: Secom/PMVC.

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