Artigo | Um relato sobre Zé Baticabo e o carnaval popular de Vitória da Conquista
Por João Paulo Pereira* - 6 de fevereiro de 2024
Registrar a memória histórica de nossa cidade é fundamental para mantermos vivas as tradições e a cultura de nosso povo.
Sou João Paulo, filho de José César Pereira, mais conhecido como Zé Baticabo, um dos homenageados do Bloco Algazarra, que esteve nas ruas de Vitória da Conquista no último domingo, 4. Quero parabenizar e agradecer a organização do bloquinho pela belíssima homenagem feita a meu pai e também a Vó Dôla, duas figuras icônicas que contribuíram para a história do carnaval da cidade.
Agradeço por me permitirem contar um pouco da história de “painho” (era assim que eu o chamava). Na ocasião, tive a oportunidade de falar sobre a sua importância histórica como folião e incentivador desta festa popular, que aprendi a amar com ele. Até pensei em estender um pouco minha fala no evento de homenagem, mas ali não era o espaço para me aprofundar. Entretanto, agora posso descrever melhor como as histórias de painho, de Vó Dôla e do Carnaval se entrelaçam.
Painho foi um incentivador do Carnaval de Vitória da Conquista dos anos 80. Membro de uma família de foliões da festa momesca, ele tinha o sonho de montar sua própria escola de samba, a “Unidos da Ponte”, mas lhe faltava o dinheiro para dar o pontapé inicial. Diante dessa impossibilidade, buscou a solução que lhe pareceu mais acertada naquele momento: incentivar os amigos donos das batucadas a transformá-las em escolas de samba.
Mas essa solução não surgiu apenas de uma vontade pessoal. No final dos anos 70 e início dos anos 80, o Carnaval de rua da cidade estava definhando. As festas principais haviam se concentrado nos bailes de salão, no Clube Social Conquista, no Clube Serrano, no Taquara e na AABB. As batucadas e os afoxés de caboclo estavam perdendo espaço nas ruas e muitos haviam deixado de desfilar. Caídor, Fae, Mãe Vitória de Petu e outros que não me recordo dos nomes, já tinham aberto mão dos desfiles carnavalescos. Um trio elétrico, o Alegria do Povo, tirava os holofotes das tradicionais entidades de bateria.
Zé Baticabo então percebeu que havia uma necessidade de ressignificar a festa de Momo em Vitória da Conquista, antes que ela sucumbisse à modernidade soteropolitana. Não que ele acreditasse que não deveria existir o trio elétrico no Carnaval, até gostava do som, mas achava que deveria ter espaço para todos os jeitos de brincar a festa.
Painho não era um acadêmico letrado, era um carpinteiro e marceneiro, que estudou até o que hoje seria o 8° ano do ensino fundamental II, portanto, seu olhar era a partir do empirismo puro, mas com uma boa visão crítica da realidade. Ele temia que a festa popular feita pelo povo da periferia desaparecesse com a chegada do trio elétrico e, principalmente, com a debandada da classe média para os bailes nos clubes, o que se tornava cada vez mais comum, já que a festa de rua começava às 13h e terminava às 18h, com o encerramento da apresentação do trio elétrico Alegria do Povo.
Zé Baticabo acreditava que era preciso ressignificar a participação popular na festa de Momo, estender o horário do desfile das entidades carnavalescas, e ampliar o número de foliões nas batucadas e nos afoxés de caboclo. A saída que encontrou para tudo isso foi a criação das escolas de samba, uma novidade que atrairia mais pessoas. Esta crença era validada pela existência de um único bloco do Bairro Brasil, o belíssimo “Apaches”, que só em sua bateria tinha mais participantes do que nas duas batucadas que restavam nas Pedrinhas, pois as do Alto Maron já haviam acabado.
Neste sentido, a transformação de uma batucada em escola de samba foi fundamental para a continuidade do Carnaval popular de nossa cidade, mas não foi uma tarefa fácil. As batucadas tinham uma batida própria, uma musicalidade típica. Eram sempre alguns jovens fazendo os mesmos passos coreografados, enfileirados, seguindo uma ordem pré-estabelecida, uma ala de baianas, e atrás, a bateria, composta por algumas caixas claras, dois ou três reco recos, dois ou três gazares, atabaques, além dos surdos de marcação, que ocupavam um papel de destaque.
Para transformar a batucada numa escola de samba, seria necessário introduzir novos instrumentos nestas baterias, tambores 105, 115, repiques, pandeiros, cuícas, pratos, timbales e preparar os instrumentistas para tocar as novas adições. Para isto, painho levou alguns dos instrumentistas para fazer uma oficina nos ensaios do Bloco Apaches, do Bairro Brasil. Além disso, Vane trouxe integrantes da já existente escola de samba de Itambé, que passaram a desfilar também em Conquista.
As alegorias eram feitas por painho. Ele também era um dos diretores da escola de samba e o cara que pegava o livro de ouro e ia bater nas portas de alguns empresários conhecidos para arrecadar dinheiro, já que os foliões eram trabalhadores e trabalhadoras e não tinham como fazer nenhum investimento. As fantasias eram doadas. O poder público municipal subsidiava todas as entidades carnavalescas, mas os recursos eram insuficientes para a manutenção e os custos totais.
Era difícil manter uma entidade carnavalesca na cidade, mas a turma era resiliente. Painho, além de diretor da escola de samba Unidos da Serra, era o puxador oficial, cantava muito bem, afinadíssimo, dono de uma voz grave e possante. Ele se encarregava de sair da sede da escola cantando sambas enredos e entrar no circuito oficial, que começava na Praça Sá Barreto e terminava na Praça Barão do Rio Branco.
É importante lembrar que no Bairro das Pedrinhas ainda tinha a Batucada Conquistense, que era de Enedino, patriarca da Comunidade de Vó Dôla. É aqui que as histórias de Zé Baticabo e de Vó Dola se entrelaçam. Painho era muito amigo de Enedino, avô e pai desta turma que constitui hoje o primeiro quilombo urbano da cidade, devidamente reconhecido pela Fundação Palmares.
As entidades carnavalescas da periferia de nossa cidade eram muito mais do que apenas entidades carnavalescas. No Bairro das Pedrinhas, eram um meio de sociabilidade, de convivência social harmônica, com uma rivalidade saudável e solidária.
O mais importante aqui é trazer um pouco da história e da relevância das entidades carnavalescas para a festa de Momo em nossa cidade e para a população da periferia. Como participante e testemunha ocular destes eventos, hoje, na condição de historiador, tenho o dever de manter viva essa memória cultural de Vitória da Conquista, sem permitir que ela seja apagada pelo tempo e, principalmente, pelos avanços do capital sobre a nossa sociedade.
*João Paulo Pereira é historiador e filho de Zé Baticabo.
Foto de capa: acervo pessoal.
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