Artigo | O que nos espera quando temos uma educação municipal militarizada e pentecostal?

Por - 14 de fevereiro de 2023

Uma análise sobre o que um simples erro ortográfico pode revelar sobre a gestão do ensino público em Vitória da Conquista.

A resposta é simples: o que nos espera é um evento pedagógico onde se escreve “mestre de serimonia (sic)” e um ambiente no qual profissionais da educação são perseguidos e mentiras são contadas desavergonhadamente sobre o suposto reajuste do Piso Nacional. Certamente, com uma educação militarizada e pentecostal, continuaremos no lugar insalubre de reprodução do nazifascismo dos terrivelmente bolsonaristas de plantão na Prefeitura de Vitória da Conquista e na Câmara Municipal.

Em Conquista, quando o assunto é educação, são quase oito anos de destruição, abandono e sofrimento. Eles não só assassinaram a língua portuguesa como vêm aniquilando todas as políticas públicas da Secretaria Municipal de Educação (SMED). Tem sido um longo percurso marcado pelo assalariamento, perseguição e aviltamento das condições de trabalho dos profissionais da educação. Diante de tantas dificuldades impostas à população, não escrever direito é o menor de nossos problemas, que pode ser resolvido nas próximas eleições municipais.

A educação municipal é impensável na situação humilhante em que cargos de confiança de livre nomeação do governo impõem comportamentos antiprofissionais aos servidores(as) concursados(as) responsáveis pelo ensino-aprendizagem da população conquistense. É impensável, principalmente quando são impostas aquelas atividades não educativas de caráter devoto judaico-cristão em templo religioso pentecostal. Que diferença faz ter alguém que escreva “serimonia (sic)”, se foi percebido ou não pela organização ou mesmo que haja desconhecimento da regra formal da escrita?

O que importa é o que acontece no chão da escola diariamente, onde persiste a ingerência de estertores a serviço da educação municipal. Para esses, presumidamente poder-se-ia considerar esse fato apenas como lapso de memória, caso não fosse o total desmoronamento de princípios constitucionais que regem a educação pública brasileira. O problema não é apenas esse erro, com certeza seria dos males o menor. Contudo, o problema é o conjunto da obra destrutível bolsonarista que insiste em sustentar esse modus operandi fascista no município.

Terá sido besteira ou implicância de desafeto tratar dessa questão nesse nível (quer dizer desnível, né?) se tomarmos todos os aspectos desse governo apenas pela sua aparência. Mas se buscarmos compreender melhor a essência desse fenômeno extremista que ataca os pilares da educação brasileira, encontraremos as raízes dessa circunstância que está profunda e diretamente ligada à ascensão da extrema-direita ao poder central no Brasil e na Prefeitura de Vitória da Conquista.

O “ato falho” (uso da palavra “serimonia”) crasso do atual governo municipal serve ao momento adequado para abordarmos a essencialidade dos feitos nocivos dessa administração na vida dos profissionais da educação por causa dos retrocessos.

As circunstâncias do dito popular “a ocasião faz o ladrão” são utilizadas para elucidar a conjuntura na qual tais verdades se inserem e as sinceras intenções desse governo para com a população conquistense.

Em agosto de 2021, a Prefeitura de Conquista assinou um convênio para a implementação do sistema de ensino do Colégio da Polícia Militar na rede municipal de educação. Foto: Secom/PMVC.

Desde logo, refiro-me a conjuntura de constantes ataques aos direitos socioeconômicos dos profissionais da educação (excepcionalmente a docência); as mentiras sobre os supostos reajustes salariais com base no novo Piso Nacional de janeiro de 2023; a militarização das escolas como forma de controle (confinamento/doutrinamento/alienação) das massas e a presença expressiva de religiosos de extrema-direita e seu proselitismo religioso nos espaços de poder conquistense.

Seja a escrita ou a história, esse governo municipal sempre escreveu errado, de maneira especial quando é contra a população. Pode ser até compreensivo que um “analfabeto funcional” possa escrever errado e a culpa é do governo municipal e da atual gestão da Secretaria Municipal de Educação (SMED). Muito embora seja inadmissível para quem se propôs fazer a gestão da política pública municipal de educação.

A expressão “analfabeto funcional”, neste caso, serve apenas para moderar o desnível, mediatizando essa relação entre o nível de analfabetismo absoluto, do comando total e versátil da leitura-escrita como àquele mínimo necessário para desenvoltura localizada na realização de tarefas mais elementares, muito comum nas sociedades burguesas pós-industriais. 

Retrocessos quase irreversíveis

Aproveito a ocasião do erro da escrita para relembrar que esse movimento político de caráter ultraconservador, surgido no Brasil depois de 2016 e que alcança o ápice com a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018, vem causando retrocessos quase irreversíveis em conquistas socioeconômicas do povo brasileiro. Razão pela qual o estrangulamento compulsório vem asfixiando todos os nossos direitos constitucionais fundamentais.

Vitória da Conquista foi uma das cidades alvos do crescimento vertiginoso do movimento golpista de 2016, seguindo pela onda fascista que culminou na eleição de Bolsonaro, em 2018, e na reeleição, em 2022, do ex-prefeito Herzem Gusmão, negacionista e adepto da cloroquina, que ironicamente veio a óbito em razão da covid-19.

Esse projeto nazifascista de sociedade tem um foco nas riquezas da economia pública, na revogação irrestrita de direitos sociais financiados com investimento público do Estado e no silenciamento das forças sociais antifascistas, antirracistas e anticapitalistas, opositores a esse regime antidemocrático.

Os canhões estão direcionados para as camadas pobres, as camadas médias urbanas depauperadas e as campesinas empobrecidas, divididas por esse movimento bolsonarista no município. As consequências alcançaram a todos fazendo sentir na pele os efeitos destrutíveis de suas escolhas políticas equivocadas. Essas parcelas da sociedade abandonaram um projeto democrático que há duas décadas vinha sendo formado por uma coalizão entre partidos (de centro e de setores da esquerda) progressistas que, de modo inclusivo, passaram a experimentar o ciclo de mudanças estruturais na cidade.

No entanto, só recentemente começaram a perceber que foram violentamente afetados pela força reacionária da antipolítica bolsonarista que reorientou o papel e a redução do tamanho do Estado (União, Estado e municípios) para atropelar a intervenção com políticas públicas nessas áreas mais esgarçadas pela degradação socioeconomicamente.

Diante dessa realidade caótica brasileira, não há como negar que o governo da atual prefeita de orientação bolsonarista contribuiu substantivamente para o aumento deliberado da inflação em Vitória da Conquista. No curso dessa inflação, intensifica-se a exploração do trabalho e dos desempregados; a fome que se alastra nas periferias; a intolerância religiosa; a xenofobia sudestina; o feminicídio; as múltiplas formas de fobia promovidas pela heteronormatividade; o extermínio da juventude negra, de quilombolas e dos povos originários.

Esse quadro desolador é parte constitutiva de inúmeras violações de direitos fundamentais da população conquistense, que passou a acontecer a partir dos numerosos retrocessos sociais, econômicos, culturais e políticos no município. Essa ala da extrema-direita incrustrada no executivo e no legislativo alçou ao poder municipal por descuido da sociedade conquistense que permitiu que assumisse a institucionalidade, comandando simultaneamente a Prefeitura e a Câmara Municipal.

A volta gradativa ao estado de consciência crítica de parte das massas populares engadas por um projeto nazifascista, acerca do perigo desse movimento ultraconservador à sua sobrevivência, demonstra que a correlação de forças vem mudando. Nesse sentido, um fato bastante constrangedor ocorrido recentemente, que deveria ser uma Jornada Pedagógica, acabou sendo mais um culto da religião protestante pentecostal.

Jornada Pedagógica promovida pela Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, na Igreja Assembleia de Deus, em 10 de fevereiro de 2023. Foto: Secom/PMVC.

Compreende-se por Jornada Pedagógica um espaço-tempo criado antes do início do ano letivo para planejar o ano letivo. Esse é o momento por meio do qual a Secretaria Municipal de Educação (SMED), a Gestão Escolar e a Docência sentam para conversar sobre as experiências pedagógicas, analisar estatísticas do ano anterior, mensurar seus resultados e redefinir as metas e objetivos de acordo com a realidade apreendida com as palestras e oficinas.

A jornada não surge da cabeça de nenhuma pessoa iluminada, antes obedece a alguma linha teórico-metodológica da pedagogia e a Lei 9.394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). No seu primeiro artigo, a LDB nos assegura que a “educação abrange os processos formativos que desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho”, a despeito definir em quais lugares esse processo de ensino-aprendizagem ocorre, afirmando ser “nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organização da sociedade civil e nas manifestações culturais”. 

No seu segundo artigo, define quem tem obrigação com a educação, pois é “dever da família e do Estado”. Diz também quais princípios devem inspirar esse processo formativo, alicerçado na “liberdade e nos ideais de solidariedade humana”. Mas, também define sua finalidade como sendo “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Na sequência, a LDB diz no terceiro artigo que o ensino tem base estrutural em princípios definidos pela Constituição brasileira de 1988, amparada na condição de igualdade para acessar e permanecer na escola. Firma-se na mais absoluta liberdade de aprendizagem, de ensino, da pesquisa e da promoção da cultura, bem como da liberdade de pensamento, da arte e do saber popular, assegurando de modo inexorável a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas.

O atual governo municipal e a SMED negligenciaram um princípio elementar do ensino público, que é a obrigação pautada pelo profundo respeito à liberdade e importância à tolerância. Será que Vitória da Conquista não tem nenhum espaço amplo, confortável e acolhedor que possa receber a SMED, gestores e a docência em um dos momentos mais significativos? Por que o auditório da Igreja Protestante Assembleia de Deus? As universidades e faculdades públicas e privadas da cidade possuem auditórios amplos e confortáveis. E o Centro de Cultura recém-reformado não serve? Até o amplo Centro de Convenções Divaldo Franco serviria para acolher a atividade.

O governo municipal e a SMED optaram por descumprir deliberadamente a obrigação de garantir a convivência de todas as instituições públicas e privadas que ofertam ensino. Deve garantir a gratuidade do ensino público em “estabelecimentos oficiais”. Não obstante todas essas obrigações constitucionais, o governo municipal por meio da Secretaria Municipal de Educação deve valorizar todo e qualquer profissional da educação escolar. O artigo define também que a Gestão do ensino público deve ser Democrática como determina a LDB e a legislação que rege os sistemas de ensino.

Uma das questões mais polêmicas estabelecidas pela LDB, ainda no terceiro artigo, é o direito da população ao padrão de qualidade no ensino. Mas considera também a necessidade de reconhecimento de experiências fora do âmbito escolar, em virtude das qualidades intrínsecas ou raridade que consolida o processo de formação humana do sujeito social. Esse processo deve levar em conta os vínculos da educação nas escolas ao mundo do “trabalho e as práticas sociais”.

O inciso da LDB que mais tem causado polêmica na rede pública municipal é o décimo segundo, que trata do princípio elementar numa sociedade majoritariamente negra e vítima da colonização branca portuguesa. Salientamos que a colonização de nosso país nada mais é do que todo o processo de translado, invasão, ocupação, espoliação e exploração de todo território pertencente aos nossos ancestrais, os povos originários.

Esse debate proposto pela LDB, lá em 1996, é substantivamente ampliado pela Lei 10.639/2003, que trata do ensino das relações étnico-raciais no país; pela Lei 10.678/2003, que criar a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); e pela Lei 12.288/2010, que cria o Estatuto da Igualdade Racial. 

Aqui a LDB estabelece que o Estado crie e possibilite as condições materiais e intelectuais para o ensino-aprendizagem da história do continente africano, a história da diáspora negra no atlântico sul e a história afro-brasileira para desconstruir o constructo mental branco supremacista, racializado nas mais diversas formas de racismos (estrutural, institucional, religioso e ambiental) no Brasil.

Nesse sentido, o governo municipal e a SMED negam peremptoriamente o princípio constitucional da laicidade do Estado, transferindo a Jornada Pedagógica para a Assembleia de Deus, aquela dos deputados que defenderam o projeto “Escola Sem Partido”. Será mesmo que ela está desvencilhada de qualquer orientação religiosa, sobretudo ultraconservadora?

A Jornada Pedagógica de Vitória da Conquista abominavelmente se transformou num culto religioso, um retrocesso ao medievalismo no qual religião e política se fundiam numa mesma coisa. José Scampini, em seus estudos, nos ensina que “o conteúdo da liberdade religiosa não é a verdade religiosa, é a imunidade de qualquer coação externa, enquanto o fundamento da liberdade religiosa é a dignidade humana” (SCAMPINI, 1974). O laicismo assegura a toda e qualquer religião à mesma proteção do Estado, não podendo escolher ou professar esta ou aquela religião.

Isso vem ocorrendo de modo silencioso e clandestinamente na educação municipal de Vitória da Conquista, terceira maior cidade do Estado da Bahia. A militarização, igrejização de escolas públicas municipais como ordenamento moral, com conteúdo teológico atravessado pelo proselitismo religioso fundamentalista, e a falsificação de notícias.

A recente combinação desses três elementos no Brasil é o que a história contemporânea chama de “Terceiro Reich”, no qual o führer (em alemão significa “guia”, “líder”, “chefe”, deriva do verbo “conduzir”) torna-se o ditador do regime nazista destituído de quaisquer direitos básicos retirados da Constituição Alemã. O “Terceiro Reich” exerce o mais absoluto controle da cultura, da economia, da educação e das leis que passam a ser decididos diretamente pelo führer Adolfo Hitler.

No Brasil, esse movimento nazista se deu com o führer tupiniquim Bolsonaro, que foi estrangulando o Art. 6º da Constituição Cidadã, asfixiando compulsoriamente os “direitos sociais à educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados”.

*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

Foto de capa: Reprodução / PMVC.

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Uma resposta para “Artigo | O que nos espera quando temos uma educação municipal militarizada e pentecostal?”

  1. Natanael Oliveira do Carmo disse:

    Sempre oportunas e incisivas as análises apresentadas pelo Prof. Herberson Sonkha em seus artigos. Sem dúvida, a gravidade de questões como a militarização das escolas e as flagrantes violações ao princípio da laicidade do Estado (compreendidas as três esferas políticas da Federação) são relevantes e precisam ser denunciadas e combatidas. Sonkha sintetiza brilhantemente o motivo da escalada recente desse tipo de conduta oficial ao escrever, em seu artigo: “Esse projeto nazifascista de sociedade tem um foco nas riquezas da economia pública, na revogação irrestrita de direitos sociais financiados com investimento público do Estado e no silenciamento das forças sociais antifascistas, antirracistas e anticapitalistas, opositores a esse regime antidemocrático”. Entender a relação entre a ascensão do fascismo no Brasil nos anos recentes e a “serimonia” (só para constar, a grafia correta é “cerimônia”, com acento e tudo) num evento da Educação Municipal é crucial para o posicionamento diante de tais aberrações.

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