Artigo | No mesmo Brasil em que a injúria racial é crime inafiançável, a impunidade é privilégio branco
Por Herberson Sonkha* - 20 de março de 2023
Liberação de médica presa em flagrante por ato discriminatório contra segurança de estabelecimento privado, em Vitória da Conquista, evidencia que a Justiça ainda tem muito a avançar no município e no país quando o assunto é racismo.
No dia 4 de março, veículos de comunicação de Vitória da Conquista noticiaram mais um deplorável episódio de injuria racial que deixou a população conquistense perplexa. Desta vez, o fato ocorreu no estacionamento de um bar no bairro Candeias, após uma mulher branca de classe média alta, natural de Minas Gerais, tentar adentrar o estabelecimento.
Ao ser informada que não seria possível acessar o local, que já estava superlotado, ela ficou bastante exaltada e, com o dedo na cara do profissional responsável pela segurança do espaço, chamou-o de “macaco”. Não obstante o estado de irritação, a mulher argumentou que, na condição de médica, poderia entrar no bar na hora que bem quisesse.
A polícia foi acionada e, ao chegar no estabelecimento, várias testemunhas confirmaram a versão do segurança, dando voz de prisão à médica em flagrante. Em Oficio nº 1377/2023 – APF 11364/2023, expedido pela 1ª Delegacia Territorial de Vitória da Conquista da Policia Civil, o Delegado de Polícia Dr. Ney Lopes Lima encaminhou a médica ao Presídio Nilton Gonçalves, como determina a lei.
O procedimento adotado está absolutamente correto, pois a médica foi enquadrada pelo “Auto de Prisão em Flagrante”. Essa conduta está prevista para o crime injúria por ofensa à dignidade ou decoro em virtude de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Nesse caso, trata-se de injúria racial de acordo o artigo 2º da Lei nº 7.716/1989, que estabelece o recolhimento no estabelecimento prisional à disposição da Justiça.
Porém, um dia depois, a detenta foi liberada mediante um alvará judicial. O que surpreendeu a população foi o fato de que ela teria uma audiência de custódia no dia 6, mas foi solta antes disso. Segundo o Blog do Sena, além de ter agredido o segurança verbalmente, ela teria ainda batido em seu peito e perguntando “quem ele era”.
Não tenho a menor pretensão aqui de “ensinar o padre a rezar a missa”. Digo isso porque nunca foi objetivo de nenhuma pessoa com militância no movimento negro brasileiro doutrinar a matéria de racismo e injúria racial, sobretudo em face de desacordo com a decisão do tribunal. Embora não se pode caracterizar como desacato ou qualquer outro tipo crime cogitar, por menor que seja, a possibilidade de divergir da toga, como nesse caso de soltura da médica que praticou injúria racial contra um segurança negro.
Quem sabe o combate diário contra todas as mazelas da sociedade criadas pelo sistema escravagista no século XVI tenha causado na militância o estranhamento desse tipo de decisão da magistratura. Não precisa ter um doutorado em Sociologia ou Antropologia crítica para perceber o recrudescimento do preconceito e da discriminação étnico-racial manifestadas nas inúmeras formas de racismos (estrutural, institucional, religioso e ambiental) e injúria racial no país.
É possível que a necessidade de desenvolver essa percepção aguçada para sobreviver a essa selva de pedra tenha forjado na militância em Vitória da Conquista ou em qualquer outra cidade brasileira esse filling ancorado pelo senso crítico que desencadeia a responsabilidade com a luta antirracista e, sempre que necessário, evoca-se as leis. Talvez (será?), tenhamos nos dado conta de denunciar que a escravidão contemporânea criada pelos brancos europeus nos defraudou da condição de homo sapiens-sapiens.
Além do mais, o sistema capitalista e a ordem civil burguesa vêm nos asfixiando para nos silenciar até atrofiar a nossa desenvoltura como defensor de nossa gente negra “fragilizada e oprimida”, violentada continuamente por outras pessoas brancas “rebustecidas e desoprimidas” pelos privilégios sociais, econômicos, culturais e políticos estruturais (públicas e privadas). Talvez, sejamos mesmo uma espécie de rábula e, de alguma forma, a gente se pega “advogando” sem ser formada em Direito.
Contudo, longe desse lugar de rábula, prefiro me apoiar no provérbio popular com sentido pedagógico de excelente aprendizagem em duas perspectivas: a que visa evitar um comportamento hostil muito comum das elites e da classe média alta branca raivosa que, na maioria das vezes, utiliza dos espaços de poder para retaliar a quem se opõem e/ou questiona; e a que evita o arroubo de querer “ensinar” algo a uma pessoa talhada para o assunto.
Não obstante, ressalte-se também que essa minoritária parcela branca possui privilégios na sociedade que origina influência e poder suficiente para reagir com enérgica represália já que, historicamente, tem um (ou os dois) pés na Casa Grande. Por isso, peço vênia (permissão) à decisão interlocutória da magistratura que soltou à médica branca que desferiu injúria racial a um profissional de segurança privado. Como disse antes, não se trata de ensinar alguma coisa a Meritíssima Senhora Juíza de Direito, mas de reafirmar enquanto militante do movimento negro brasileiro que o crime de injúria racial é inafiançável.
O respeitado professor e ex-juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão, o jurista Konrad Hesse, da tradição do Direito Constitucional português (cujas obras alcançam o Brasil indiretamente através do jurista José Joaquim Gomes Canotilho e diretamente pelos tradutores Gilmar Ferreira Mendes, Luís Afonso Heck, Sérgio Antônio Fabris, Otavio Luiz Rodrigues Junior) vai nos dizer que “a constituição não é mais apenas a ordem jurídico-fundamental do Estado, tornando-se ordem jurídico-fundamental da sociedade”.
Se esse pressuposto constitucionalista for razoável como fundamento aceitável (Estado e Sociedade), que garante a normalidade constitucional, não há porque não apoiar nele para reafirmar o caráter constitucional das leis em vigência contra o racismo e a injúria racial. Portanto, a médica que cometeu o crime amplamente noticiado pela imprensa local deveria permanecer presa e pagar a multa.
A linha constitucionalista de Hesse está muito distante do Brasil que caminha sem pressa desde o fim da Ditadura Militar (1964-1985) para concluir sua transição ao Estado Democrático de Direito. Procrastina toda vez que chega atrasado (quando chega) para reparar e punir crimes de racismos e injúria racial. Nesse curso, muita gente branca de origem tradicionalmente oligárquica escravocrata ou mesmo de classe média intelectualizada que ocupa espaço de poder, sempre que pode, promove ataques à ordem constitucional. Vide os constantes ataques perpetrados contra a ordem constitucional realizados entre 2016 e 2022.
Essa gente branca com histórico de privilégios desenvolveu o senso de impunidade, resultando na cultura nociva da ausência de punição aos brancos ou na displicência na aplicação da pena. A cada crime de racismo e de injúria racial impune, adia-se a todo instante a exemplar oportunidade de educar quem ainda não entendeu que a República brasileira condena o racismo desde 1988.
Não foi fácil chegar até aqui. Ao longo do processo histórico de lutas incessantes da militância negra e das contribuições teóricas do Movimento Negro Unificado (MNU), mantivemos o tensionamento do Estado para que governos progressistas sancionassem leis no país que condenassem e punissem qualquer prática de racismo ou injúria racial. O Senador Paulo Paim (PT) é uma dessas expressões da intelectualidade negra brasileira que presta relevante serviço para o enegrecimento brasileiro, surgido no berço do MNU.
Militante histórico, Paulo Paim tem defendido incansavelmente que os racismos praticados no Brasil possuem raízes profundas que os torna estruturais. Pessoas mandatárias e a militância negra brasileira promoveram amplos debates para formular e atualizar a legislação de modo a construir as condições favoráveis para a aprovação de leis antirracistas. Mais do que isso, fazer com que essas leis funcionem efetivamente.
Essa tarefa zumbílica é diligenciada à militância negra brasileira que defende a radicalização da pena para tais crimes como forma de banimento da herança cultural supremacista no país que opera como estertor, asfixiando e exterminando a população afro-brasileira, tanto na forma hedionda de racismo quanto de injúria racial. Mesmo depois da Lei de Crime Racial (nº 7.716/89), criada para tipificar qualquer comportamento resultante de discriminação ou preconceito (de raça, cor, etnia, religião procedência nacional), ainda persistem comportamentos racistas no país.
Em qualquer sociedade contemporânea, sobretudo àquelas organizadas por constituições de orientação federalista estadunidense, de tradição anglo-saxônica ou austro-germânica, as formas de racismos não foram superadas. Desse modo, para as constituições liberais (como a nossa), os racismos estão cada vez mais recrudescidos. Espera-se do Estado, que os Direitos Humanos cumpram essa tarefa de erradicar os racismos nas democracias contemporâneas.
Contudo, não é sobre a admissibilidade ou não da prova que esse artigo de opinião se debruça, mas do questionável relaxamento da prisão da médica que cometeu um crime de flagrante delito de injúria racial. Do crime de injúria racial ocorrido, do acionamento da polícia, da abordagem, da condução, da lavratura do Boletim de Ocorrência e da voz de prisão, pode-se afirmar que tudo ocorreu dentro da legalidade. Todas as medidas legais foram tomadas para efetuar a prisão e a condução à delegacia como manda a lei contra racismo e injúria racial.
O hiato começa com a decisão da autoridade judiciária competente de conceder alvará de soltura da mesma, abrindo precedente para que as pessoas continuem compreendendo que vale a pena praticar racismos e a injúria racial porque ficarão impunes. Nesse sentido, o movimento negro questiona o descumprimento da lei em favor daquela que praticou o crime de injúria racial.
Qualquer pessoa minimamente instruída deveria saber que o artigo 5º da Constituição Federal preceitua alguns crimes como inafiançáveis. Esses são aqueles delitos em que não se admite pagamento de fiança com a finalidade de obter alvará soltura da pessoa presa em flagrante delito de crimes: hediondos, dolosos contra a vida, tortura, tráfico de ilícito de entorpecentes, ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, terrorismo, de racismo e, mais recentemente, o crime de injuria racial.
Nesse caso específico de crimes inafiançáveis, cabe ressaltar que nenhuma pessoa que atua como operadora do direito incorre no equívoco grosseiro de cogitar ou recorrer ao expediente do pagamento de fiança visando alcançar a liberdade provisória para quem pratica qualquer um desses crimes responda em liberdade. A priori, nenhum juiz arbitra fiança para crimes dessa natureza sob o risco de incorrer em crime de prevaricação.
Certa vez ouvi de um jurista brasileiro, um constitucionalista renomado, uma explicação didática acerca da expressão “princípio do juiz natural”. O jurisconsulto comentou que essa expressão diz respeito a uma garantia constitucional que restringe os abusos dos poderes do Estado, limitando-os com a finalidade de criar impedimento no estabelecimento de juízo (ponderação) ou tribunal (conselho) de exceção para apreciar determinadas matérias, bem como instituir juízo ou tribunal para processar e julgar um caso específico contrariando o ordenamento jurídico.
O Brasil tem uma curta tradição de república constitucionalista, mas já reformulou noves vezes as constituições brasileiras, inclusive a da independência do Brasil de 1822. Nossas constituições são interrompidas por golpe civil-militar e pelas mudanças vivenciadas na sociedade provocadas por intensas transformações socioeconômicas, culturais e políticas que influenciam nas formas de governo no decorrer de dois séculos.
Nas democracias contemporâneas, qualquer pessoa pode ou deve buscar restabelecer qualquer direito prejudicado, mas terá que fazê-lo perante a Justiça, a quem compete processar e julgar qualquer violação de direito fundamental. Essa questão tem a ver com a garantia do devido processo legal, princípio que assegura a todos o direito a um processo (e todas as etapas previstas em lei) com todas as garantias constitucionais.
Peço vênia, mas afiançar liberdade para quem está preso por cometer crime inafiançável de racismo não caracteriza crime de prevaricação? Óbvio que não sou advogado, mas como militante do movimento negro brasileiro que observa o acontecimento a partir do senso-comum, a soltura da médica sugere, no mínimo, uma inobservância da Constituição Federal (18988) para parte da autoridade judiciária.
Todo militante de Direitos Humanos reconhece a força do artigo 5º ao estabelecer de maneira inequívoca que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e isso se aplica tanto para quem cometeu o crime quanto para quem sofreu a agressão e a violação de direito pelo crime. Não existe exceção e o inciso XXXVII diz que o Estado é o garantidor de que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Não há outro caminho senão o juízo e o tribunal como instancia de resolução de violação de direitos, como diz o referido artigo no inciso LIII, no qual designa o juiz de direito como responsável por processar e julgar, pois “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Nesse sentido, precisamos que a “autoridade competente” que processa e julga crimes inafiançáveis, entre eles o racismo e de injúria racial, reveja a soltura da médica.
*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.
Foto de capa: Reprodução / Redes sociais.
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