Artigo | Dois compadres e os movimentos que eles geram

Por - 28 de janeiro de 2025

Gilberto Gil e Xangai estão conectados por uma relação familiar. Enquanto ministro, um foi responsável pela implementação de políticas importantes para a Cultura. O outro também se envolveu com a política, mas de um lado absolutamente oposto.

Fotos: Secom/PMVC | Laécio Lacerda/Divulgação

Há 38 anos, no Programa Roda Viva, Gilberto Gil teve a oportunidade de esclarecer um mal entendido criado de má fé pela imprensa. Segundo a criação da mídia, o cantor teria dito que Caetano Veloso seria de esquerda, enquanto Maria Bethânia seria de direita. Já ele mesmo, Gil, seria de centro. O artista baiano falava de estética, de posições conservadoras, outras arrojadas ou equilibradas. Mas a extrema direita sempre foi avessa a qualquer análise que demonstre inteligência, defenda os saberes populares, priorize os afetos e o respeito às pessoas em suas identidades e modos de ser e viver.

Gil já se manifestava politicamente na arte, e passaria também a mostrar a sua importância na política. Primeiro, foi presidente da Fundação Gregório de Matos, em 1987. No ano seguinte, elegeu-se vereador. Em 2003, tornou-se ministro da Cultura. Permaneceu no cargo por cinco anos e meio, abriu caminhos para Juca Ferreira, seu sucessor. Foi responsável pela implantação de políticas de reconhecimento sobre Cultura e Identidade no país e pela inclusão de comunidades tradicionais nas gavetas orçamentárias da União, estados e dos municípios que aderiram às práticas.

Definitivamente, Gil não esteve ali como uma grife de ostentação para o Governo Federal, mas, efetivamente, prestou contribuições marcantes para o desenvolvimento das políticas de Cultura no país. Com participações em organismos internacionais, exerceu influência ao defender a disseminação do conceito de cidadania global com autodeterminação dos povos. Um homem adequado ao seu tempo, infelizmente, algo raro na política.

Como ministro do presidente Lula, Gil criou formas de interação e articulação entre comunidades tradicionais e governo. Foi um importante defensor da disseminação do conhecimento, da informação, do compartilhamento de ideias e criatividade. Promoveu iniciativas coletivas, a economia criativa, o exercício da sensibilidade, e a erradicação da pobreza no mundo.

Hoje, por meio da contribuição de Gil, o país pode contar com um Sistema de Cultura que atende, inclusive, comunidades tradicionais antes invisíveis. Embora essas políticas humanas tenham sido extirpadas durante quatro anos durante um governo federal, nos dizeres de Umberto Eco, “Ur-Fascista”, elas voltaram com força graças à vontade popular, apesar de tentativas de golpe e planos de assassinato. Os movimentos, surgidos em todos os estados, têm colaborado ativamente na elaboração de políticas em âmbito nacional, e na devolução do respeito à população e aos saberes.

Gil tem um “compadre” (são avôs das mesmas crianças), aclamado artista brasileiro, Xangai. Este também embrenhou-se nos bosques da política, mas de um lado absolutamente oposto, junto a uma oposição iracunda contra políticas progressistas. Em sua cidade natal, Vitória da Conquista, foi nomeado secretário de Cultura em 2021.

Celebridade artística e patrimônio cultural do Brasil, Xangai assumiu a secretaria com fartura de ideias, como era de se esperar. Conversou com representantes do Conselho de Cultura na ocasião, expressou o desejo de tê-los parceiros. Falou sobre um plano excelente para levar arte até a zona rural de modo itinerante. Não é pequena a euforia nem são poucas as ideias que povoam a cabeça de um artista, principalmente quando elas tocam seu hiperfoco de interesse. Tudo era lindo e viável. Mas não foi possível, por razões acima da sua própria vontade.

Até eventos como o Natal da Cidade, não têm mais a grandeza original. O São João se perdeu da essência. Embora com servidores de carreira e alto gabarito à disposição, optou por (ou a ele foi imposto) manter como auxiliares cargos comissionados que realizam gestões irresponsáveis dessas políticas e cometem atos de prevaricação.

Diante de denúncias graves, o governo e o secretário omitiram-se, permitindo que atitudes (algumas criminosas) continuassem com certeza de impunidade. Seus homens de confiança, ou, nas palavras do secretário, seus “verbos auxiliares”, foram acusados de assédio moral contra ex-secretária do Conselho (que declinou do cargo diante das violências sofridas). O próprio secretário foi oficialmente informado sobre algumas atitudes ímprobas dos seus auxiliares, mas optou pela omissão, bem como a prefeita. A menos que os documentos protocolados tenham sido interceptados e eles permaneceram na ignorância.

Não que essas iniciativas tenham partido da vontade do secretário, mas é a pessoa que deverá responder por elas, ações e omissões da sua secretaria. O desrespeito às oitivas para a utilização dos recursos da Lei Paulo Gustavo fez com que o Município devolvesse mais de R$ 300 mil pela não utilização. A questão é mais grave por terem sido ouvidos os artistas, realizadores e outros trabalhadores da Cultura, e a vontade deles não foi respeitada.

Ficou acertado que a Prefeitura alocaria recursos próprios para somar aos recursos federais e viabilizar questões como a reforma, qualificação e utilização da Casa de Glauber Rocha, do Cine Madrigal, do Teatro Municipal Carlos Jehovah, nenhum deles funcionando. Assim, ficam sem solução nem planos concretos esses três equipamentos que, uma vez funcionando corretamente, seriam de imensa importância para artistas e público.

Os ataques realizados pelos comissionados fazem crer que o secretário não tem voz ativa. Atitudes como injúria, calúnia, prevaricação, incompetência e outras improbidades têm sido a marca da gestão da Cultura em Conquista há oito anos. O secretário anterior, afastado pela incapacidade de medir palavras, chegou a sugerir aos músicos que parassem de “pedir dinheiro à Prefeitura e levassem chapéus à feira” para pedir esmolas. Lembrando que isto foi dito publicamente quando recursos da lei emergencial para ajuda aos artistas já estavam na conta do Município.

O secretário anterior retorna com suas representações, agora como coordenador. O mesmo que não teve condições morais, técnicas ou cognitivas para gerir políticas. Ele marca seu retorno com a presença em um evento para palestrar sobre “como utilizar recursos federais para políticas de Cultura”, o que parece mais uma afronta aos artistas dos quais debochou há quatro anos.

Se dependesse do secretário Xangai, seus homens de confiança estariam realizando suas ideias, do ponto de vista da viabilidade orçamentária, técnica, jurídica. Estaria agregando forças, para levar arte até as áreas rurais, tão carentes de ações que fortaleçam a sua memória. Ele havia imaginado algo completamente diferente. No mínimo, autonomia, criatividade, visibilidade aos povos tradicionais (quando assumiu quis saber sobre as trabalhadoras de bilros, quis visitar a comunidade próxima a Campo Formoso, o Quilombo dos Crioulos, comunidade certificada recentemente), e outras questões que não são discutidas pelo governo por inépcia e desinteresse. O fato é que Xangai viu seus ideais, expressos por ele aos membros do Conselho, escorrerem entre seus dedos.

Diante das atrocidades cometidas pelos comissionados, violências regimentais dentro do Conselho, surgiu uma iniciativa chamada Movimenta Cultura Conquista. Trata-se de um grupo que carrega no nome este imperativo afirmativo, buscando fazer movimentar a cidade a partir de um reconhecimento de si mesma. O grupo faz um diagnóstico e apresenta alternativas. Age com o apoio e a adesão de parte razoável da mídia e imprensa, nutre-a com informações e estimula a reflexão, o questionamento e a criatividade. O grupo cobra do Poder Executivo local coerência, conhecimento técnico e determinação, além de melhor entendimento sobre “políticas de cultura”.

O movimento conquistou adesão massiva da comunidade artística e da população que, nas atividades do grupo, demonstrou estar muito mais instrumentalizada que a secretaria. Nas redes sociais já superou, em interações, o número de votos da prefeita. Sensibilizou outras cidades da região. Isto porque é evidente que, na condição de pólo, as políticas de Conquista têm força para influenciar essas cidades. Trata-se da defesa da Cultura de todo o Território de Identidade e outras cidades influenciadas. O movimento conseguiu, dessa forma, alertar aos municípios sobre os perigos das políticas de extrema direita para as expressões, para o autorreconhecimento da população e para os entendimentos sobre a importância da arte e da cultura na vida das pessoas.

Objetivamente, o movimento quer do governo atitudes coerentes como apresentar, no mínimo, uma justificativa para a omissão e produzir, com dois anos de atraso, um relatório e um Plano Municipal de Cultura, que deveriam ter sido construídos durante uma Conferência realizada em setembro de 2023. Como não houve sequer um relator e, naturalmente, um relatório, muito menos um Plano Municipal de Cultura, que se realize de fato e direito uma Conferência como deve ser, bem organizada e construída sem medo juntamente com a população, com conhecimento e capacidade para tanto.

O movimento quer atitudes respeitosas dentro do Conselho, e o cumprimento dos documentos que regem esses colegiados. Quer ver funcionando o tripé Secretaria-Conselho-Plano de Cultura, com autonomia do Conselho para indicar e discutir com o governo as inclusões nas peças orçamentárias. Entre elas, os equipamentos públicos municipais, praticamente todos necessitando de reformas, requalificações e, obviamente, planos.

No fim das contas, podemos afirmar que os dois compadres (Gil e Xangai) foram responsáveis por movimentos importantes pró-cultura. A diferença é que o primeiro gerou grupos de apoio aos seus princípios. O segundo está sendo responsável pela criação de um grupo para a luta contra as atitudes de um governo que não demonstra nenhum interesse ou ideia sobre Cultura, embora o próprio secretário seja rico em conteúdos. Ou seja, acabou ajudando a criar um grupo que luta contra as consequências danosas da própria omissão do governo.

Para concluir, não se sabe a possibilidade de haver condição para se fazer algo que não é feito há oito anos. Como se vê, o orçamento aumenta, mas a capacidade de utilização desses recursos pela Cultura é mínima. Embora aumentem orçamentariamente, dificilmente conseguem utilizar a dotação e o baixo percentual destinado.

Para piorar a incapacidade, demandas pouco nobres, como consequências de desvio de recursos para testes de covid-19, fraudes em licitações e outras investigações em curso pela Polícia Federal vêm como pedras se atropelando numa avalanche. Colocam-se à frente na ordem do dia. Podem impedir mais uma vez que a Cultura seja contemplada, que artistas tenham a possibilidade de se expressar, que o público tenha capacidade para incorporar ensinamentos provenientes daquelas expressões. Sempre parece haver algo mais importante.

*Afonso Silvestre é historiador, arquivista, memorialista, escritor, músico e artista visual. É funcionário público municipal em Vitória da Conquista, onde já realizou, desde 2004, 32 certificações de comunidades remanescentes de quilombos. Também é responsável pela modernização do Arquivo Público Municipal.

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