Prefeitura de Conquista devolveu mais de R$333 mil de recursos da Lei Paulo Gustavo
Por Karina Costa - 24 de janeiro de 2025
O valor deveria ter sido investido no setor audiovisual, conforme prevê o artigo 6º, inciso II, da legislação. Em julho, o município recebeu o total de R$2,72 milhões destinados à execução de ações e projetos culturais.

Nos meses de julho e agosto de 2023, estados e municípios brasileiros receberam recursos da Lei Paulo Gustavo destinados à execução de ações e projetos culturais. Segundo dados do Ministério da Cultura, órgão responsável pelo repasse da verba, Vitória da Conquista foi contemplado com R$2,72 milhões. Deste total, R$333,1 mil foram devolvidos à União, após o valor não ter sido utilizado pelo governo municipal dentro do prazo estabelecido, que chegou ao fim em 31 de dezembro de 2024.
Com o encerramento do período de execução do recurso, o município foi obrigado a devolver o dinheiro para que pudesse cumprir o que prevê a Instrução Normativa nº 20, publicada no Diário Oficial da União, em 16 de outubro de 2024. De acordo com a norma, os entes que não utilizaram integralmente as verbas públicas até o fim do referido ano deveriam devolver o saldo existente em conta até o último dia 15 de janeiro.
Por meio de consulta ao painel de dados da Lei Paulo Gustavo, atualizado pela última vez no dia 1º de janeiro de 2025, foi possível identificar o saldo de R$330 mil na conta destinada ao setor audiovisual. Já na segunda conta, reservada para as demais áreas culturais, constava o saldo de pouco mais de R$1.600,00. Ambos os valores ainda estavam em conta um dia após o prazo para o uso dos recursos.

Outra ferramenta de transparência do Governo Federal, ligada ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, mostra que, em 16 de janeiro de 2025, havia saldo de R$333,1 mil em conta. Dias depois, em 20 de janeiro, o valor estava zerado, pois já havia sido devolvido ao Fundo Nacional de Cultura. Na plataforma, aberta para o uso de qualquer cidadão, é possível consultar diferentes repasses entre entes federativos.
Impacto no setor audiovisual
O recurso devolvido pela Prefeitura deveria ter sido investido no setor audiovisual. O artigo 6º, inciso II, da Lei Paulo Gustavo, estabelecia a destinação de verba para o “apoio a reformas, restauros, manutenção e funcionamento de salas de cinema, sejam elas públicas ou privadas, bem como de cinemas de rua e itinerantes”. O plano de ação do município previa para essa finalidade a aplicação de R$329.913,13.
Antes mesmo da verba chegar ao município, houve uma mobilização para que o dinheiro do inciso II fosse utilizado para a reforma e a reabertura do Cine Madrigal, cinema de rua desativado há mais de dez anos e adquirido pela Prefeitura em 2014. Em maio de 2023, a Associação do Setor Audiovisual do Sudoeste Baiano (Sasb) lançou um manifesto em defesa da recuperação do equipamento cultural histórico.

Um mês depois, em julho de 2023, a associação convocou a prefeita Sheila Lemos para uma reunião com o setor cultural. A reivindicação do grupo era que a gestora ouvisse as demandas dos trabalhadores do segmento. Foi somente no dia 1º de setembro que o Executivo municipal sentou à mesa para dialogar com profissionais do audiovisual.
Durante a reunião, estiveram presentes a prefeita, representantes da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), o secretário municipal de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer, Eugênio Avelino (Xangai), e outros profissionais do audiovisual. Quem também participou do encontro foi o cineasta e presidente da Sasb, Daniel Leite Almeida.
“A gente sabe que os R$300 mil não são suficientes para a reforma do Madrigal, mas a nossa expectativa era que juntasse o recurso da Paulo Gustavo com o da PNAB (Política Nacional Aldir Blanc), só que isso não aconteceu”, explica Daniel. “Fiquei frustrado com a devolução desse dinheiro depois de toda a mobilização que fizemos”, complementa.
Segundo o diretor do longa-metragem Alice do Anjos e coordenador de distribuição da Umbuzeiro Filmes, mesmo que a verba não fosse direcionada para o Madrigal, esperava-se que pelo menos houvesse o investimento em outros espaços culturais, a exemplo do Teatro Carlos Jehovah, que também está fechado. “Não foi cumprido e agora a gente fica com receio sobre qual vai ser o futuro da PNAB. Vão deixar voltar recurso mais uma vez?”, questiona o artista.

Assim como Daniel, o historiador Afonso Silvestre acompanhou de perto o processo que antecedeu a implementação da Lei Paulo Gustavo no município. Antes da execução dos recursos, foram realizadas consultas públicas para que o governo pudesse ouvir as demandas dos trabalhadores da cultura. Mas segundo quem esteve lá, os pontos destacados pelos artistas não foram levados em consideração.
“O que foi dito pela categoria não foi ouvido, tanto que o recurso foi devolvido. Não foi respeitado. Nós pedimos a alocação de mais recursos para as reformas e a reabertura desses espaços culturais que estão fechados, como o Carlos Jehovah, o Madrigal e a Casa Glauber”, destaca Silvestre.
Para o historiador, há uma inoperância da gestão municipal e quem perde é Vitória da Conquista. “O governo não investe na cultura por desconhecimento, por falta de planejamento. A cultura tem a ver com saberes coletivos, com o auto reconhecimento, com o conhecimento do lugar em que se vive e da própria memória”, ressalta. Para ele, sem políticas de cultura, a cidade vai perdendo a sua essência.
Perda simbólica e econômica
A devolução dos mais de R$333 mil da Lei Paulo Gustavo, conquistada após organização da classe artística, é sintoma de uma gestão que desvaloriza a cultura. Daniel Leite Almeida enfatiza que a perda, além de simbólica, é econômica. “Um espaço público de cinema é um espaço de visibilidade da própria identidade local. Mas também sem esse investimento, a gente não consegue trazer mais recursos para fomento que são investidos na própria cidade”, afirma o cineasta.
Para além do setor audiovisual, outras áreas da cultura exigem atenção. Em outubro de 2024, o Coletivo Movimenta Cultura VCA lançou uma carta com reivindicações. O objetivo inicial da ação era cobrar o compromisso de candidatos e candidatas às eleições municipais com o fomento à cultura. Porém, a mobilização seguiu após o pleito, retornando em 2025 com um abaixo-assinado em apoio à causa e atividades nas ruas para mobilizar a população e ampliar o alcance da pauta.
Na carta, elaborada por representantes de diversas manifestações artísticas, o coletivo reivindica a reabertura e a revitalização de espaços culturais; a ampliação do orçamento para a cultura; a criação de uma secretaria exclusiva para a pasta; a implementação de bibliotecas comunitárias nos bairros, distritos e povoados; o fortalecimento de mostras de cinema e cineclubes, entre outras demandas.
Uma das pessoas envolvidas na elaboração do documento é Dayse Maria, professora, atriz e produtora cultural. Além disso, ela é uma das integrantes da Sasb (Associação do Setor Audiovisual do Sudoeste Baiano). Diante de um cenário em que equipamentos culturais estão abandonados no município, a artista lamenta a devolução do recurso da Lei Paulo Gustavo. “É muito doloroso”, desabafa.
“Nós temos um problema estruturante grave, faltam espaços para escoar a arte. É uma realidade de todos os artistas que tiveram projetos aprovados na LPG. Então é doloroso pensar que R$333 mil foram devolvidos para as contas da União, infelizmente, por conta da má gestão dessa verba conquistada a duras penas. É tão caro a gente conseguir uma política pública de cultura”, conta.
Para Dayse Maria, é preciso questionar a inoperância e a falta de responsabilidade com o uso do recurso público. Ela, assim como todos os membros do Coletivo Movimenta Cultura VCA, defendem ainda a reestruturação do Conselho Municipal de Cultura. Os artistas pedem que o órgão funcione de fato como “um espaço democrático e deliberativo”.
O Conselho Municipal de Cultura
O aparelhamento do Conselho de Cultura não é uma queixa recente da classe artística. Em outubro de 2024, em reportagem do Conquista Repórter, trabalhadores do setor apontaram a falta de autonomia do órgão, a ausência de plenárias e a dificuldade que a sociedade civil enfrenta para ser ouvida durante as reuniões. Outras situações, inclusive de violência misógina, já ocorreram no âmbito da entidade.
Diante desse cenário, para o Coletivo Movimenta Cultura VCA, é essencial uma mudança na forma como o conselho municipal opera. “É preciso uma reforma, nós precisamos de fato sermos ouvidos. Está difícil avançar porque a instância que vai mediar a distribuição dessa verba está em crise”, destaca Dayse.
O historiador Afonso Silvestre também percebe as tentativas de impedimento das atividades do conselho por meio dos representantes da gestão municipal. “Nós vemos esse descaso com a cultura nas atitudes do governo dentro do conselho. Ele impede reuniões ou proíbe a visibilidade das reuniões”, afirma.
Na composição do órgão consultivo, são 20 conselheiros, divididos entre 10 titulares e 10 suplentes, que contemplam representantes da sociedade civil e dos poderes Executivo e Legislativo. Na gestão 2023-2025, no momento da posse, foram eleitas apenas cinco mulheres. Em maio de 2024, a mulher que ocupava o cargo de secretária executiva renunciou após sofrer violência psicológica.

Descaso e falta de escuta
Num cenário em que os trabalhadores da cultura não conseguem efetivamente participar das decisões políticas, se torna cada vez mais difícil garantir o uso adequado da verba pública. No caso da Lei Paulo Gustavo, mesmo com os pedidos para que o recurso fosse utilizado na revitalização de espaços, não foi isso o que aconteceu. A devolução dos mais de R$333 mil causa incerteza sobre o futuro da PNAB.
Entre setembro e outubro de 2024, a Prefeitura de Conquista lançou uma série de editais que distribuem recursos da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), prevista na Lei nº 14.399/2022. Os chamamentos foram lançados em meio às eleições municipais, o que não foi bem recebido pelos artistas. Além disso, integrantes do setor afirmaram que suas demandas não foram ouvidas durante as oitivas.
No Plano Anual de Aplicação dos Recursos (PAAR), publicado no Diário Oficial do Município no dia 16 de julho de 2024, o subsídio para obras, reformas ou aquisição de bens culturais está estimado em R$1 milhão. Na descrição, consta a compra de uma unidade móvel . “Nós precisamos de um equipamento móvel? Esse valor poderia ser o início de uma reforma, mas a gente se depara com isso. Temos um grande problema de escuta”, destaca a professora e produtora Dayse Maria.
Para o cineasta Daniel Leite Almeida, falta vontade de investir na cultura. “Não houve uma justificativa para a devolução do dinheiro da Paulo Gustavo. Isso nos deixa num lugar de descaso. Foi desrespeitoso. Nós ficamos meses batalhando para que houvesse uma boa aplicação do recurso, aí esperam o momento das eleições e da execução dos projetos, para não fazerem nada com o inciso II”, finaliza.
Outro lado
De acordo com o Ministério da Cultura, o município de Vitória da Conquista tem até o dia 05 de julho de 2025 para prestar contas sobre o uso dos R$2,72 milhões recebidos da Lei Paulo Gustavo. A gestão ainda não emitiu nota pública sobre a devolução dos mais de R$333,1 mil. O Conquista Repórter solicitou esclarecimentos do órgão via e-mail, mas não recebeu respostas.
O Conselho Municipal de Cultura também foi questionado. Solicitamos um posicionamento da entidade sobre a devolução da verba. Mas não obtivemos retorno até a publicação desta reportagem.
Atualização
Às 17h06 desta segunda-feira, 27, a Prefeitura de Vitória da Conquista respondeu aos questionamentos enviados pela nossa reportagem. Por e-mail, a gestão municipal informou que o valor de R$333,1 mil precisou ser devolvido à União devido a “fatores externos e operacionais”. Segundo a nota, um dos impedimentos para o uso integral do recurso foi a “demora na publicação de regulamentações”.
“O Ministério da Cultura levou mais tempo do que o previsto para divulgar normativas essenciais, o que impactou diretamente o planejamento e execução de projetos no curto prazo”, diz um trecho do comunicado. Além disso, o governo destacou que o seu objetivo era implementar um planejamento estratégico que combinaria recursos da Lei Paulo Gustavo e da PNAB, mas isso não foi possível em razão da exigência de cumprimento da Lei de Contratos Públicos e do “prazo limitado para execução”.
Por fim, a Secretaria Municipal de Cultura (Sectel) afirmou que “reconhece a importância de cada centavo destinado à cultura” e que a devolução do dinheiro foi “uma medida de responsabilidade administrativa, realizada para garantir conformidade legal e evitar futuros prejuízos ao município”.
Confira a nota na íntegra aqui.
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