Artigo | A Micareta de Conquista voltou?

Por - 3 de fevereiro de 2023

A Miconquista foi anunciada recentemente pelo Bloco Massicas e causou grande comoção entre os conquistenses. Serão três dias de festa, que acontece entre 20 e 22 de abril; o primeiro, mais acessível, chamado de “pipoca”, e outros dois dias com ingressos a partir de R$100.

A resposta para o questionamento que faço no título é simples: a micareta que conhecemos, não. E digo isso com a mais absoluta certeza, porque essa micareta era uma festa do povo organizada pelo Poder Executivo Municipal, em parceria com empresas privadas e a participação de todos os estratos sociais. No auge da folia, a Miconquista recebeu milhares de pessoas e, nessa época, a prefeitura tinha a obrigação de realizar a festividade uma vez a cada ano. Esta é a diferença abismal do evento particular organizado pelo produtor cultural Pedro Alexandre Massinha

Não podemos dizer que onde vai funcionar o circuito da folia, a área interna do Boulevard Shopping, não é belíssima. O pacote de shows oferecidos será um grande atrativo para os foliões. Todavia, cabe ressaltar que não há interesse público nisso, já que é um negócio de interesse exclusivamente privado. Se observarmos a atual situação da população periférica, o evento será excludente.

A Miconquista segue as mesmas regras de mercado com a finalidade de obter retorno de investimento (lucro). Existe algo mais natural do que o lucro no sistema capitalista? Óbvio que não. Mas não podemos esconder que os interesses dos investidores capitalistas excluem parcelas consideráveis da população, sobretudo as mais pobres pelo seu critério financeiro que serve para definir o acesso ao circuito fechado, onde as atrações vão se apresentar, é seletivo. 

Apesar de o consumo de bebida, alimentação, abadás e outros serviços serem oferecidos por empresas na micareta de outrora, não podemos afirmar seu caráter privado. Na verdade, o evento acontecia na área central da cidade e era aberto ao público em geral. Ressaltando ainda que o caráter mercadológico do evento é, por si, algo seletivo porque ocorrerá numa área nobre, em geral, ocupada por pessoas com poder aquisitivo de classe média alta, no mínimo. 

Não há nenhum problema com a produção cultural ofertada pelo mercado privado, a exemplo do belíssimo e imperdível Festival de Inverno. O FIB é organizado por uma empresa privada de competência organizativa comprovada e que respeita o caráter de diversidade de seu público. Não é sobre isso! É sobre quem tem a responsabilidade de promover ações culturais acessíveis e gratuitas para a cidade e o campo, principalmente para periferia, por se tratar de populações em múltiplas vulnerabilidades sociais, econômicas e culturais e não o faz porque o governo municipal vem cortando verbas, sucateando e desmontando progressivamente a Secretaria Municipal de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer. 

Contudo, é preciso destacar que a prefeitura nos dois últimos governos não assumiu para si essa responsabilidade e nem realizou nenhuma licitação para concessão pública (terceirização?) autorizando o setor privado a “executar e explorar economicamente um serviço público no qual são remuneradas por meio de tarifas pagas pelos usuários”. O atual governo desmontou deliberadamente todas as políticas públicas de cultura encontradas no município. Até o carnaval alternativo aberto ao público, organizado por pessoas ligadas a produção cultural, que surgiu há algum tempo, segue acontecendo à revelia do Poder Público municipal. 

Portanto, neste caso polêmico da suposta “volta à micareta” de Vitória da Conquista não é correto chamar o evento de público e, muito menos, de Micareta. Talvez até compreendamos, com algumas ressalvas, se a ideia foi utilizar a palavra como uma estratégia de marketing para prospectar o mercado. Entretanto, saiba que esse vácuo que vem atraindo produtores culturais (empresários) do setor de entretenimento acontece porque os investidores só prospectam o nicho de mercado quando é promissor. 

Com a ausência do setor público, especialmente dos maciços investimentos realizados pelos governos anteriores em projetos culturais ao longo de duas décadas (que fizeram florescer uma cidade com fortes laços culturais e referência no cenário brasileiro), essa realidade tende a desaparecer com a produção cultural de caráter popular e, no lugar, cresce o segmento da indústria cultural de massificação, oferecido pelo mercado privado.  

No entanto, é necessário que recorramos à história recente do município Vitória da Conquista, sobretudo nas últimas duas décadas, para resgatar e compreender o papel central do Executivo Municipal, por meio da Secretaria de Cultura, no processo de financiamento público da produção cultural popular que está enraizada na dinâmica cultural da cidade. Posto que existe uma memória afetiva da micareta no inconsciente coletivo das pessoas localizadas nas áreas periféricas de Vitória da Conquista que diverge frontalmente do que se pretende, em função do que elas vivenciaram enquanto festa pública, popular e aberta.  

A história que antecede o passado recente nos convida a fazer uma reflexão mais profunda sobre a dinâmica da cena cultural da cidade que impulsionou a micareta conquistense no final dos anos 90, no século XX. Isso ocorreu num contexto de final de década, na qual a prefeitura estava absolutamente desestruturada e uma dívida pública de 83 milhões de reais. À época, o novo governo municipal, do médico Guilherme Menezes (PT), havia herdado todas as mazelas socioeconômicas e culturais, os problemas estruturais da cidade e todas as obrigações institucionais inadiáveis, entre elas, a realização obrigatória da Micareta. 

A equipe de governo tinha pela frente o enorme desafio de realizar a sua primeira micareta no ano de 1997 sem recurso e sem política pública que desse suporte e financiamento da ação. E o fez sem qualquer experiência em organizar festa pública, a única alternativa possível naquele momento inicial do governo era apostar na criatividade e a articulação política de todas as áreas do governo. 

Era uma época em que o carnaval e os barracões de São João (mesmo limitados) eram as únicas opções de festividade pública para quem nascia na periferia de Vitória da Conquista. O carnaval da década de 80, do século XX, podia-se desfilar na bateria da Escola de Samba Unidos do São Vicente e depois sair no bloco Bolso Furado – e eu fiz isso. Aliás, no final dos anos 90, sair no bloco Fascinação (Genivan, Gildelson e José Carlos) tinha a cara do bairro Brasil. Sair no bloco alternativo Parangolê (bloco de homem vestido de mulher), bloco Baco (Danilo Moreira trouxe o bloco Baco de Feira de Santana) e no bloco Pré-datado, do Sindicato dos Bancários.

Participei diretamente da coordenação de comunicação (Central de Rádio) em todas as micaretas no início da primeira década do século XXI. Conheci por dentro todas as etapas de planejamento e execução das Micaretas. Desde o investimento público, definição do portfólio de serviços públicos oferecidos aos foliões, à captação de recursos do setor privado, a parceria com a cervejaria, as bandas e toda a infraestrutura montada para a festa. 

Ouvi falar em Alexandre Massinha no ensino médio com a gincana intercolegial e da cidade, ambas maravilhosas. Mas foi como empresário (Bloco Mássicas) de bloco que tive a oportunidade de conhecê-lo melhor. Embora nunca tenha saído no bloco de Massinha sempre o vi como um potencial investidor e importante realizador de entretenimento do mercado privado da cidade. Exceto quando ele fechou a Praça do Gil para fazer um show privado no apagar do governo de José Pedral. Achei um absurdo, não à festa, mas a postura permissiva e promíscua do governo municipal à época. 

A lembrança mais próxima de Massinha naquele período foi nas reuniões da Secretaria de Expansão Econômica com o Secretário de Cultura à época, o professor Gildelson Felício, no governo de Guilherme Menezes (PT) para definir a programação da micareta. Outras ocasiões, não menos polêmicas, foram na Central de Rádio, que monitorava todas as ações das equipes da prefeitura no circuito de Micareta. Houve algumas rusgas, por conta da pressão na entrada do circuito do trio do Massicas (ao lado Centro de Cultura Camilo Jesus Lima) ou quando tinha que tencionar o motorista para avançar com o trio estacionando na Praça do Gil, quando o povo estava em polvorosa com a banda Chiclete com Banana. 

A praça era uma espécie de Olimpo dos deuses do Axé Music, principalmente em frente ao camarote da prefeitura e da TV Sudoeste, lugar ardentemente desejado por todas as bandas. Era o point da classe média conquistense na micareta. Uma vez lá, ninguém queria perder um só segundo de estrelato e fama! Não sei como era antigamente, mas para geração oitentista era verdadeiro êxtase. 

A micareta já existia muito antes da década de 90, mas só ganhou a  importância que conhecemos hoje no contexto de crescimento das micaretas no país. A estrutura do modelo adotado em Salvador extrapolou os limites da capital, por causa das influências carnavalescas no auge do crescimento, alcançando as principais cidades do Estado da Bahia no início dos anos 1990. Esperava-se apreensivo pela micareta! 

Essa festividade de rua tem mais tempo do que supõem algumas pessoas por detrás do birô da máquina pública atualmente. 

Ela surgiu pela primeira vez no município em abril de 1927, dois meses depois de um fervoroso carnaval de rua da cidade, para relembrar os bons momentos da folia carnavalesca. Não se tornou algo regular, mas reapareceu em 1958 e 1962, conforme matéria veiculada em 1958 pelos jornais locais (“O Conquistense” e “O Combate”), dando conhecimento do primeiro trio elétrico da micareta, após tocar em Santo Antônio de Jesus. Esse evento marcou também a inauguração da nova sede do Clube Social Conquista naquele mesmo ano. 

Contudo, a micareta só ganhou status de festa oficial no calendário da cidade em 1989, por conta da impossibilidade do município em competir com as opções de atrações mais conhecidas no circuito carnavalesco, já contratadas e confirmadas pela programação do carnaval de Salvador. Além do mais, tem a questão econômica, já que os ricos e a classe média conquistense tinham a condição de se deslocar para Salvador para curtir a festa.  

A micareta conquistense, ou Miconquista, como passou a ser conhecida em todo o país, sobretudo pelos foliões da região sudoeste e norte de Minas Gerais, sofreu inúmeras alterações que a tornou um atrativo alvissareiro para artistas e bandas que integravam o circuito musical do recém-surgido “axé music”. Nos bastidores de todo esse movimento artístico-cultural efervescente promovido pela prefeitura de Vitória da Conquista (no final da década de 90 e início do século XXI), havia uma racionalidade planejada. A finalidade era fomentar o processo de expansão socioeconômico do município. 

A prefeitura, por meio da Secretaria de Cultura, enxergava a Miconquista como vetor sazonal potencial para o desenvolvimento dos vários agentes econômicos no município. Os investidores do mercado privado compraram a ideia e apostaram nesse nicho de mercado promissor, atraindo vários segmentos especializados de todo país que passaram a ofertar produtos e serviços de sonorização, toldos, palcos, bebida, alimentação, banheiro químico, telões, rede hoteleira, transporte (rodoviário e aéreo), entretenimento e confecções. 

Não se tratava de uma festa restrita a quem tinha poder aquisitivo, localizado numa determinada área nobre da cidade, com blocos vendendo abadás caríssimos e os foliões protegidos dentro das cordas longe da “pipoca”. Tinha também a boa e insubstituível Bartolomeu de Gusmão da “pipoca”, com o clássico “poeirão”, que enchia no intervalo dos trios e esvaziava em passo acelerado ao menor sinal de um novo trio chegando à avenida. 

Nem mesmo o governo de José Pedral Sampaio invisibilizou a presença cultural indispensável das escolas de samba e de blocos de afoxé que desfilavam pela avenida com seus carros alegóricos, indumentárias maravilhosamente lindas e seus atabaques dançantes. Os blocos alternativos da periferia distribuiam gratuitamente camisa-abadá e outros cobravam preços módicos bem acessíveis como, por exemplo, o famoso “Bloco Pré-datado”, do Sindicato dos bancários. 

O circuito era público e o trajeto começava na área nobre (Candeias) e se estendia até a clássica Bartolomeu de Gusmão na periferia da cidade (Jurema). Todas as bandas contratadas (pela prefeitura ou pelos grandes blocos) faziam todo o trajeto, possibilitando às mais diferenciadas camadas sociais a oportunidade de pertencer ao conjunto de foliões com ou sem abadás. Quem nunca ficou eufórico com a chegada do bloco Massicas na Bartolomeu de Gusmão com Chicletão? 

Esse processo gradual de profissionalização de blocos, a possibilidade de contratar bandas fora do calendário oficial do carnaval de Salvador e o investimento financeiro ainda tímido da prefeitura em infraestrutura, limitava o desenvolvimento da micareta conquistense. Na perspectiva histórica, podemos considerar que a decisão política do Governo Municipal no final da década de 90, especificamente a partir de 1997, é fundamental para alavancar investimentos (públicos e privados) para esse segmento que transformaria a Miconquista no importante vetor do desenvolvimento econômico. 

A presença da Prefeitura na Miconquista se tornou o grande divisor de águas, pois transformou a micareta numa gigantesca vitrine, não só para a capital, mas para as demais cidades da Bahia e do país. O circuito, a gestão do fluxo de atrações, a padronização de barracas, a cervejaria, os banheiros químicos, a fiscalização e a segurança pública assumiu um caráter profissional que começa a ser percebido com o crescimento anual de foliões de outros estados na festa.

*Foto de capa: Acervo/Raimundo Laser

*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

Gosta do nosso trabalho? Então considere apoiar o Conquista Repórter. Doe qualquer valor pela chave PIX 77999214805 ou assine a nossa campanha de financiamento coletivo no Catarse. Assim, você nos ajuda a fortalecer o jornalismo independente que Vitória da Conquista precisa e merece!

Uma resposta para “Artigo | A Micareta de Conquista voltou?”

  1. ANTEMAR CAMPOS GARCIA disse:

    Bom texto sobre à ascensão e o desenvolvimento da miconquista. Mas seria importante também sobre o declínio e o fim da miconquista

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  • some
  • Somos uma organização de mídia independente que produz jornalismo local em defesa dos direitos humanos e da democracia no sertão baiano.
  • Apoie

© 2021-2024 | Conquista Repórter. Todos os direitos reservados.