A política é a principal engrenagem do motor da história

Por - 14 de outubro de 2021

Segundo o professor e militante do PSOL, Herberson Sonkha, em tempos sombrios de extrema-direita, nunca foi tão urgente a necessidade de conspirar contra o conservadorismo dos guardiões do movimento de reprodução do capital, o sistema capitalista e sua ordem civil liberal burguesa

“O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política.” (Bertholt Brecht)

Neste primeiro texto opinativo, escolhi escrever sobre Política, na expectativa de poder abrir um ciclo de diálogos mais críticos sobre a natureza das relações sociopolíticas e as ideologias sociais (hegemônica e contra-hegemônica) na contemporaneidade.

A política é tudo! Desde o ar que se respira, a seca e as enchentes, à bala “perdida” no peito do jovem negro, o vermelho das manifestações latino-americanas, o azul do pentágono, o preço do combustível, a racialização e o racismo de Nina Rodrigues, as lentes do Fantástico ou alter-ego do Faustão. Por isso, precisamos elevar o nível ao patamar da política enquanto ciência social.

Peço vênia aos caros leitores e leitoras, mas não se trata de textos voltados para a Arcádia. A rigor, não são artigos científicos no sentido estritamente acadêmico do termo, contudo, são conspirações analíticas empíricas com base em categorias do léxico marxiano.

Afinal de contas, em tempos sombrios de extrema-direita, nunca foi tão urgente a necessidade de conspirar contra o conservadorismo dos guardiões do movimento de reprodução do capital, o sistema capitalista e sua ordem civil liberal burguesa.

A conjuntura brasileira atual segue pela via expressa em alta velocidade com afluência à extrema-direita a partir do golpe de 2016. O golpe possibilitou que a administração política do capitalismo expandisse sua taxa de retorno de lucros de uma minoria e o aumento da pobreza material e intelectual da maioria.

Na esfera pública, o Estado passou a ser gerido pela ultradireita com extremismos despolitizados-despolitizantes e arroubos que negam a natureza da política da vida, afirmando apenas a necropolítica.

As leis de Nuremberg eternizaram os fantasmas da ópera da morte que voltaram a aterrorizar a humanidade. Mal aprisionados pelos vencedores da Segunda Guerra, no primeiro solavanco de 2014, se soltaram e foram acolhidos pelos próprios liberais com a finalidade de retirar conquistas sociais e aprofundar a reforma que vem reduzindo drasticamente o tamanho do Estado – que precisava crescer muito para ser considerado o Estado de bem-estar social.

Para efeitos históricos, o termo Estado de bem-estar social surge com o Otto von Bismarck, na Alemanha, no final do século XIX, para ser uma alternativa em contraposição ao liberalismo econômico e ao socialismo. Mais tarde, foi retomado pelo economista liberal britânico Maynard Keynes, nos anos 40 do século XX, para recuperar a economia capitalista norte-americana colapsada pela crise de 1929.

Essa guinada à extrema-direita no Brasil, puxada pela mão invisível do mercado internacional, foi uma exigência de acomodação sistêmica necessária para ajustar a plataforma capitalista para garantir o livre movimento de reprodução do capital.

Sob a égide da extrema-direita no Brasil, a despeito de acharem que a única tarefa “revolucionária” seja a imperativa necessidade de derrotar o bolsonarismo, como se não houvesse nenhuma necessidade de derrotar igualmente à direita, considero indispensável abrir esse diálogo tratando da práxis política emancipacionista muita cara à classe trabalhadora: a luta de classes.

Como marxiano, tenho divergência quanto à falácia do fim da luta de classes e o surgimento da era da conciliação entre classes antípodas. Uma tática liberal propagandeada desonestamente por oportunistas à espreita de uma oportunidade para viver como nababo, à custa do Estado, portanto, das populações pobres que financiam o luxo das cúpulas enraizadas no Estado.

Não se pode negar também o esforço hercúleo daquelas pessoas que defendem outras possibilidades de lutas, em detrimento desta que é imprescindível por ser o motor da história (óbvio que outras formas de lutas também são importantes para a classe trabalhadora).

Os liberais escondem o fato de que a classe dominante nunca deixou de exercer de modo implacável a luta de classes, jamais abandonou seus órgãos de classe na arena de lutas. Aliás, seus ideólogos (os liberais), bem posicionados e com vantagens, espreitam os oprimidos nos espaços institucionais de produção científica, a exemplo das universidades, e na sociedade civil, continuam organizando mobilizações políticas radicais de classes no interior da sociedade contemporânea. 

A síntese do movimento que move o engenho e põe em funcionamento as engrenagens da história é a luta de classes. É um fenômeno social caracterizado pela contraposição de ideias entre grupos distintos. Na sociologia marxiana, essa concepção antagônica ocorre em diferentes esferas e reflete a defesa de interesses específicos de cada grupo social.

A modernidade e o desenvolvimento das forças capitalistas substituíram momentaneamente, na revolução francesa, os “heróis” da mistificadora história universal, embora mantenha inalterada a história e o heroísmo contado pelos bárbaros vencedores (homens-deuses brancos e seus atos heroicos), os imperialistas colonizadores.  

Marx não desnuda só a nobreza, mas põe a nu os novos dirigentes burgueses mostrando que a luta é real entre proprietários dos meios de produção e reprodução da vida e os deserdados –  pessoas escravizadas, exploradas, marginalizadas, violentadas, silenciadas e invisibilizadas.

O chão da história passou a ser a fábrica e suas contraditórias relações de apropriação privada da produção e da força de trabalho alheia, na qual se origina o lucro incessante da classe proprietária. A fase de acumulação primitiva de capital transformou essa recém-surgida classe em dona dos meios de produção, ferramentas, matéria-prima e insumos, galpão, da força de trabalho e do lucro.  

Marx, ao dissecar a história universal, decompondo esse corpo cadavérico inflado pelo alter-ego narcisista, identificou a menor partícula desse ser mítico presente em todas as sociedades (antiga, medieval ou moderna): a luta de classes. Homens livres, patrícios, barões, mestres e senhores constituíram a classe em luta ininterrupta contra escravos, plebeus, servos, companheiros e vassalos. Muitas vezes abertas, outras vezes camufladas entre opressores e oprimidos.

A sociologia marxiana, com base na compreensão sócio-histórica, revela o caráter mistificador da história universal. Por detrás de uma falsa ideia de unidade, coexiste a divisão antípoda entre capital e trabalho. No cerne dessa sociedade, existe uma divisão intransponível para a classe dominante (liberal burguesa), que põe em luta os exploradores para impedir que os explorados emancipem-se e a sociedade engendrada pelo liberalismo seja destruída e superada por outra forma societal de vida sobre terra.

O liberalismo não é uma opção de escolha, mas a ideologia oficial do Estado (dos três poderes), do mercado e da sociedade civil. O liberalismo é uma corrente de pensamento hegemônica com princípios religiosamente bem definidos, a saber, a liberdade, individualismo, ceticismo quanto ao Poder, império da Lei, sociedade civil, ordem espontânea, livre mercado, tolerância, paz e o governo limitado.

“O golpe possibilitou que a administração política do capitalismo expandisse sua taxa de retorno de lucros de uma minoria e o aumento da pobreza material e intelectual da maioria.” Foto: Arquivo Pessoal.

A cada texto pretendo desenvolver cada um desses princípios, por hora vou tratar apenas do tipo de arquitetura que o liberalismo construiu no decorrer de seus quase cinco séculos para atender e conformar a sociedade, segundo esses interesses. A principal engrenagem sistêmica é a política, por isso me limitarei a este aspecto para fechar essa primeira abordagem.

A política, enquanto ciências sociais, exige ao seu bom funcionamento uma plataforma apropriada para rodar seu programa (com aqueles princípios estruturantes) sem quaisquer problemas funcionais. Esse jirau, sobre o qual se ergue o sistema societal contemporâneo, articula em todos os períodos de sua vigência todas as dimensões (objetiva e subjetiva) da vida em sociedade.

Basicamente, a política ordena o fluxo da vida socioeconômica, jurídica, cultural e religiosa de qualquer sociedade. Na perspectiva filosófica, poderíamos aplicar um conceito moderno conhecido pelo nome de ideologia, que serve também para manter o sistema econômico para a maioria, funcionando para garantir a reprodução da vida material, intelectual e cultural dessa sociedade.

A palavra ideologia não é uma expressão cunhada por  Karl Marx, ela surge com o filósofo francês Destutt de Tracy (1754-1836) e significa a origem das ideias humanas captadas pelas percepções sensoriais do mundo externo. Mas, é Marx que a desenvolve com uma perspectiva diferente daquela oferecida por Tracy, que expressa uma verdade de maneira invertida para confundir a realidade.

Marx diz que a ideologia é a totalidade das formas de consciência social, que corresponde a todo o sistema de ideias. Como ela está invertida, ela serve para validar o poder econômico da classe dominante, assumindo a condição de ideologia burguesa. Como vivemos num sistema social de classes antípodas, a ideologia de quem está embaixo, na condição de classe dominada, expressa os interesses emancipatórios (revolucionários) que conspira contra sua condição de classe subjugada, na forma de ideologia da classe trabalhadora. 

O mundo gira no compasso desse movimento arbitrário e essa coesão faz com que as pessoas não percebam que são submetidas por força de lei às regras societais como se estas fossem algo absolutamente natural, intrínsecas às leis da própria natureza. Isso dá a ideia de normalidade para a maioria das pessoas que não consegue enxergar que ele projeta uma sociedade de ponta-cabeça.

A plataforma apropriada para rodar o modelo ideológico do sistema político burguês é o constructo mental liberal, que institui um regime político denominado de democrático. A república é uma forma de governo liberal centrado na razão para governar o Estado, arrazoado para atender o interesse geral dos (as) cidadãos (ãs).

Mas, se vivemos numa sociedade de classes, gênero e raça, como esse “interesse geral” poderá ser atendido? Não é atendido! E essa é a contradição central da sociedade contemporânea de caráter liberal burguesa. Pois, ela iguala a todos (as) ignorando todas essas desigualdades (material, intelectual e cultural) para abarcar dentro da palavra cidadão(ã), sabendo que não cabe todo mundo, e o faz apenas para cumprir a mera formalidade da lei. 

Na perspectiva jurídica, a forma de governo está baseada de modo formal na soberania do povo, que governa o Estado através de representantes investidos da função para exercer poderes diferentes. Todas as contradições estruturais (socioeconômica e política) da sociedade liberal burguesa brasileira herdada da ditadura civil-militar (1964-1985) persistiram mesmo com a Constituição Cidadã de 1988.

A ideologia liberal burguesa no Brasil opera para impedir que a população não enxergue as mazelas e não compreenda as contradições estruturais da sociedade brasileira. A finalidade é escamotear a razão de os moradores do andar de cima (no dizer de Florestan Fernandes) serem os verdadeiros responsáveis pela miséria, pobreza, sofrimento, desemprego, fome, falta de moradia, educação bancária, saúde precarizada, eugenia social no Brasil.

Não existe fragilidade da democracia liberal brasileira quando se trata da manutenção da ideologia liberal burguesa, por quanto sempre foi implacavelmente letal e beligerantemente violenta contra anarquista, socialista e comunista e as suas respectivas organizações políticas da classe trabalhadora, de gênero e raça.

Contudo, está sendo débil e subserviente em relação à defesa das instituições democráticas instituídas pela República liberal burguesa. O regime democrático brasileiro não fez o dever “revolucionário” de casa e, portanto, têm problemas estruturais insolúveis à luz do próprio liberalismo.

A democracia representativa produziu irremediavelmente governos de baixa densidade política. E isso não tem a ver com nenhuma questão de ordem moral ou de eficiência/eficácia de gestão, é uma aporia. A democracia liberal burguesa é a forma de governo surgida para garantir a funcionalidade do sistema capitalista.

Ao fim e ao cabo, faz-se necessário dizer que liberais orgânicos brasileiros medraram covardemente e optaram por capitularem ao pior algoz da humanidade (nazifascismo) por não fazerem análise de conjuntura a partir das próprias categorias analíticas oferecidas pelo liberalismo clássico. Pior que isso, é admitir que o “sapo barbudo analfabeto” se estabeleceu como o maior estadista brasileiro, desbancando os socialdemocratas, detentor irretocável da insígnia do Estado de bem-estar social.

Não foram os anarquistas, os socialistas e os comunistas que ameaçaram o establishment e a intelligentsia liberal burguesa e sim o PT. O frio na espinhela dos liberais orgânicos adveio dos primeiros resultados da socialdemocracia do metalúrgico nos moldes petista, apenas isso foi suficiente para dissuadi-los a destilaram ódio. Mas, nada disso teria acontecido se essas classes (burguesia e classe média) não tivessem pavor a pobre, a classe trabalhadora, a raça e gênero ao perceberem que as rédeas da democracia formal não dava conta de coagir o forte ataque de movimentos sociais que bradavam por política de alta densidade.  

*Herberson Sonkha é um militante político-partidário desde meados da década de 80 e seu último partido é o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), sendo dirigente da corrente interna Fortalecer o PSOL. Atuou como militante social no Movimento estudantil secundarista (Grêmio, UMES e UBES) e universitário (CA de Economia Celso Furtado). No final dos anos 90 passou a atuar no Movimento Negro passando a compor a direção municipal, estadual e nacional da entidade Agentes de Pastorais Negros e Negras do Brasil (APN’s).

Foto de capa: Pixabay

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