“Vitória da Conquista é uma cidade homotransfóbica e intolerante”

Por - 2 de julho de 2021

Pesquisador do direito à cidade e advogado, Gilson Santiago questiona falta de inclusão e representatividade das pessoas LGBTQIA+ nos espaços de poder e mostra, em estudo realizado na UESB, como as violências contra essa população se perpetuam em cidades como Conquista

“Uma cidade democrática não deveria ser composta por espaços em que nós não podemos ser nós mesmos”. Essa afirmação, descrita em matéria publicada no dia 21 de junho, no site da UESB, é do advogado e pesquisador Gilson Santiago, 23, graduado em Direito pela instituição e especialista em Direito Ambiental e Urbanístico. Ele é o responsável pela pesquisa “‘Isto é um lugar de respeito!’: a construção heteronormativa da cidade-armário através da inivisibilidade e violência no cotidiano urbano”, desenvolvida como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), sob orientação do professor Cláudio Carvalho. 

Divulgado recentemente pela universidade, o estudo faz um alerta com relação ao processo de legitimação e perpetuação das diferentes formas de violência contra pessoas LGBTQIA+ nos espaços urbanos. Utilizando do conceito de “cidade-armário”, Santiago mostra que lugares públicos, como bares, restaurantes, shoppings, entre outros, tidos como “lugares de respeito”, excluem e marginalizam essa população através da disseminação do medo e do preconceito. 

Em entrevista ao Conquista Repórter, o pesquisador, que também é membro do Conselho Regional Nordeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, explica como isso se manifesta em uma cidade como Vitória da Conquista, que ele classifica como “homotransfóbica e intolerante”. Ele critica ainda a ausência de discussões amplas de políticas públicas voltadas para a comunidade LGBTQIA+ e destaca a necessidade urgente de inclusão e participação de mais pessoas dessa comunidade nos espaços de poder. Confira: 

Gilson Santiago: “Não é aceitável que toda a produção de uma vida seja pautada pelo medo. Queremos viver e essa vida passa por espaços justos, em que seja possível a vida sem armários”. Foto: Arquivo pessoal.

CR: O que lhe levou a pesquisar a LGBTfobia sob a ótica do direito à cidade e de que forma esse recorte temático pode nos ajudar a compreender as diferentes violências contra pessoas LGBTIA+ que ocorrem no contexto urbano?

Gilson Santiago: Durante algum tempo, logo no começo da graduação em Direito, me interessei por pesquisar processos de violência contra pessoas LGBTIA+. Inicialmente, por conta de um projeto de pesquisa, o foco era a violência sofrida por esse grupo nos processos educacionais. Com essa base teórica, comecei a me questionar de que modo as violências contra essa população encontravam suporte no mundo e como minha área de atuação, o Direito, poderia intervir nessa realidade. Em 2016, tive contato com um livro chamado “O direito à cidade”, do sociólogo francês Henri Lefebvre. Nele, Lefebvre faz uma proposição ousada e até mesmo utópica da possibilidade de transformação das cidades de acordo com o desejo mais íntimo dos nossos corações. Isso é a essência do direito à cidade: a possibilidade de reivindicarmos, radicalmente, a transformação das cidades para que todas as pessoas tenham espaço nela. Tendo isso em mente, o fato de tantas pessoas serem cotidianamente violentadas em espaços públicos me fez querer investigar esse processo duplo de invisibilização e de violência contra pessoas LGBTIA+ nas cidades. A ideia era compreender os porquês da naturalização da violência homotransfóbica nesses espaços, afinal, essas violências são a manifestação mais básica do rompimento com o direito à cidade, tomando de refém espaços públicos como lugares de medo. Assim, a pesquisa buscou enxergar a constituição das cidades como espaços fechados em torno da heterocisnormatividade, produzindo e reforçando violências contra pessoas LGBTIA+.

CR: No seu estudo, você destaca o conceito de “cidade-armário”. O que exatamente ele significa?

Gilson Santiago: Cidade-armário não é um objeto, mas um processo. Refere-se, essencialmente, aos movimentos em torno da normatividade sexual, tornando os espaços comuns em representação e palco da heterocisnormatividade. O espaço urbano, por óbvio, é produto das relações humanas e processo de construção recíproca e palco de performances políticas variadas. A cidade-armário, nesse sentido, é a tentativa de enquadrar o fenômeno de invisibilização e violência contra pessoas LGBTIA+ por meio da construção ideológica do espaço urbano; significa dizer que se trata de uma atuação intencional que erige [estabelece] locais morais na cidade, criando a noção de um espaço heterocisnormativo e, por consequência, espaços interditos [vedados] aos corpos desviantes da norma de gênero. É a tentativa permanente de ocultar tudo aquilo que não é espelho, seja por meio da exclusão, seja por meio do julgamento ou da violência em si. A figura do armário, desse modo, torna-se um fantasma constante, demarcando os territórios em que assumir-se ou manter-se no armário torna-se uma autêntica escolha de vida. A cidade-armário é, portanto, uma cidade de medo, violência e morte.

CR: Poderia nos explicar como esse conceito se manifesta numa cidade como Vitória da Conquista, por exemplo?

Gilson Santiago: Manifesta-se como em qualquer cidade: o fechamento dos espaços em torno da aceitação de uma única sexualidade e uma única identidade de gênero possíveis produz violências diárias. Vitória da Conquista convive com assassinatos de pessoas trans, por exemplo, como se nada ocorresse. Mas o aspecto da invisibilização impõe outras violências: negativas de contratações, negação do acesso às escolas e universidades por meio da falta de proteção da população LGBTIA+, dificuldade para acessar sistemas de saúde e de segurança pública… Essa categoria de análise nos permite enxergar uma cidade extremamente reacionária e essencialmente homotransfóbica. Em fevereiro do ano passado um jovem foi agredido por motivações homofóbicas ao descer do transporte coletivo urbano, já em outubro de 2020, Juliana Piropo foi brutalmente executada a tiros. Da mesma forma, em 2018, Raphaela Souza foi covardemente assassinada. Vitória da Conquista é uma cidade homotransfóbica e intolerante (a exemplo dos casos comuns de racismo religioso).

CR: De que forma o ato de negar o acesso de pessoas LGBTQUIA+ a lugares públicos marginaliza a comunidade? 

Gilson Santiago: A negação dos espaços públicos à população LGBT+, enquanto espaços de pertencimento e reconhecimento, reforça a ideia de um dualismo entre a cidade legal e a cidade ilegal, em que as figuras que transgridem as normas de gênero e de sexualidade devem ser execradas [abominadas ou detestadas]. A situação, aparentemente, insuperável do grande armário social produz economias sobre o sexo e a sexualidade por meio do discurso da normalidade/anormalidade, definindo, limitando, apagando e invisibilizando tudo aquilo que seja prejudicial à ordem sexual posta. O medo, por si só, é destruidor das próprias cidades à medida em que interdita acesso, desloca intenções e esvazia o exercício de cidadania. A lógica perversa da heterocisnormatividade é que medeia as relações do nosso corpo com o espaço, e do nosso corpo com o corpo do outro – de modo que nosso corpo não é simplesmente nosso corpo, pertence à cidade porque existe em contato com ela – e, nesse sentido, deve ser questionada a fim de construção de novos espaços plurais e democráticos. Não é aceitável que toda a produção de uma vida seja pautada pelo medo. Queremos viver e essa vida passa por espaços justos, em que seja possível a vida sem armários.

CR: Em sua opinião, como podemos atuar, enquanto cidadãos e cidadãs, na construção de cidades mais democráticas, que não excluam nem inviabilizem a comunidade LGBTQUIA+?

Gilson Santiago: O espaço do cidadão é o da reivindicação. A cidadania se constrói a partir da reivindicação de espaços amplos de participação social, de representação política. A ocupação de Conselhos, Assembleias, Câmaras, Prefeituras, é necessária para que nada sobre nós seja discutido sem nossa participação. Não existe saída fácil do armário urbano. Ele só cairá com uma transformação radical dos próprios espaços de poder. O papel da cidadania é a revolta. É a insurgência contra a subrepresentatividade. É a ocupação das ruas e dos espaços que mandam na cidade.

CR: E qual papel deve cumprir o Poder Público nesse sentido? 

Gilson Santiago: O Poder Público precisa estruturar órgãos de discussão ampla de políticas públicas voltadas à população LGBTIA+. Precisa ensinar o respeito à diversidade nas escolas. Precisa punir estabelecimentos que discriminem pessoas LGBTIA+. Precisa garantir que espaços sejam acessíveis para qualquer pessoa. Precisa garantir moradia para aquelas pessoas desabrigadas em decorrência da violência homotransfóbica. Mas penso que devemos refletir sobre ações que imponham essa transformação que queremos ver, sem ficarmos reféns da transformação legada de cima para baixo. Quantos vereadores ou vereadoras conquistenses se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou intersexuais? Quantos(as) deputados(as) estaduais ou federais? Quantos(as) senadores(as)? Como discutir cidades democráticas se não existimos nas políticas públicas nem encontramos representantes dessas demandas nas esferas de poder institucionalizado? Ao não incluir a população LGBT+ nos rumos da cidade, esse ciclo de invisibilização e violência é retroalimentado. Nós podemos nos inserir nas discussões institucionalizadas. Por que não fazemos? Já não é hora de romper esse pacto de privilégios? Nenhuma pessoa LGBTIA+ quer ou tem privilégios nessa ordem heterocisnormativa. Quem possui privilégios nessa dinâmica social são os homens heterossexuais cisgênero – incluindo o poder de violentar outros corpos com a conivência dos seus pares ou mesmo dos poderes instituídos. Não existimos nas políticas públicas, não existimos nos espaços representativos, não existimos nas estatísticas oficiais de violência. A isso é que nos referimos enquanto processo de invisibilidade. Isso precisa ser modificado. É o espaço de cidadania que precisamos reivindicar urgentemente.

CR: Como você avalia as conquistas da comunidade LGBTQUIA+ até o momento? E em que ainda falta avançarmos em termos de políticas públicas para essa comunidade?

Gilson Santiago: Essa pergunta se relaciona fortemente com a anterior. Temos conquistas importantes na última década, mas tais conquistas exigem uma atenção redobrada cotidiana. São conquistas consideradas, muitas vezes, como ‘ativismo judicial’, de forma pejorativa a dizer que são direitos conquistados no jeitinho. Não são. São direitos e ponto final. Porém, é preocupante que toda vez que nós falemos de direitos específicos para a população LGBTIA+ como medida de concretização do seu projeto de vida, seu projeto individual de realização humana, nós tenhamos que nos socorrer em medidas judiciais, variáveis conforme a composição das Cortes. Casamento igualitário, alteração de registro civil, utilização de nome social: tudo isso não veio do Congresso Nacional, mas do Supremo Tribunal Federal. Precisamos evoluir por meio da representatividade política com propósitos, compromissada com as pautas dessa população, mas com forte e inarredável compromisso democrático. Precisamos eleger representantes que não dividam bancada com reacionários. Esse é o avanço que precisamos para a conquista de políticas e direitos próprios. Na lei, para que não restem questionamentos, para que tenhamos até mesmo essa igualdade (de reconhecimento de direitos) que nos é negada. 

*Foto de capa: Blog do Anderson.

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