“Só defende a manutenção da escala 6×1 quem nunca trabalhou assim”

Por - 28 de novembro de 2024

Trabalhadores de Vitória da Conquista relatam exaustão física e mental, além de falta de tempo para estudar e realizar atividades físicas. Na Câmara dos Deputados, uma PEC busca reduzir de 44 para 36 horas semanais a jornada de trabalho legal no país.

Mais de dois terços dos trabalhadores formais no Brasil cumprem a escala 6×1, que exige dedicação de seis dias por semana com direito a um dia de descanso. Um levantamento da Carta Capital aponta que 82% das pessoas que atuam no comércio nesse regime ganham menos de dois salários mínimos. Em Vitória da Conquista, Laura* passou boa parte da vida profissional submetida a essa situação. “Você se mata de trabalhar para conseguir morar e pagar alguém para cuidar dos seus filhos”, desabafa.

Mãe solo de três crianças, ela passava horas fora de casa para conseguir o dinheiro que garantiria a educação, a alimentação e o cuidado dos filhos. Diariamente, pegava o ônibus das 12h50 para chegar no local de trabalho até às 14h. Finalizava o seu turno às 23h, mas só retornava para a sua residência às 00h15, horário em que o transporte público chegava no seu ponto de desembarque. “Eu só tinha um domingo de folga no mês. Só defende a escala 6×1 quem nunca trabalhou assim”, afirma.

Foi só há três anos que esse cenário mudou para Laura*. Ela conseguiu trocar de emprego. Deixou de trabalhar em shoppings e lojas para atuar em um curso preparatório. No novo trabalho, é contratada para desempenhar sua função em 44 horas semanais, mas em razão da demanda, o local não funciona todos os dias da semana. Com a redução da jornada, conseguiu realizar um sonho: ingressar na faculdade.

“Eu guardei por muito tempo esse sonho. Mas como eu poderia estudar? Não temos perspectiva quando a gente não tem tempo para nada. Quem não tem família, ainda consegue chegar em casa à noite e fazer uma faculdade à distância. Mas quem tem filho, chega e tem que se preocupar em fazer a comida do dia seguinte, em ver se a criança está bem cuidada”, ressalta a trabalhadora.

A escala 6×1 é comum para trabalhadores de setores como comércio e indústria. Foto: Secom/PMVC.

Luzia* é mais uma pessoa que conhece muito bem os efeitos da escala 6×1. Exaustão física e mental, falta de tempo para realizar atividades físicas, indisponibilidade para conviver com os amigos e a família. Tudo isso faz parte da sua rotina. Como atendente de balcão no comércio local, ela cumpre uma jornada de nove horas de trabalho, de segunda a sexta. Aos sábados, seu expediente é de 8h às 13h.

“Fico exausta mentalmente e fisicamente por conta do excesso de função. Na vida pessoal, isso afeta bastante. A pessoa com quem me relaciono só trabalha de segunda a sexta, a carga horária é bem menor. Então ela está sempre mais disposta para fazer várias coisas e eu, infelizmente, por trabalhar demais, não estou”, desabafa Luzia*, que trabalha no regime da escala 6×1 há mais de 10 anos.

PEC pelo fim da 6×1

A discussão sobre os efeitos nocivos da escala 6×1 na vida dos trabalhadores brasileiros não é uma novidade, mas o tema ganhou destaque com a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) protocolada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), no dia 1º de maio de 2024. A proposta busca reduzir de 44 para 36 horas semanais a jornada de trabalho legal no país. Em 13 de novembro, a proposição alcançou a quantidade mínima de assinaturas necessária para que possa tramitar na Câmara dos Deputados.

Antes da PEC, a mobilização pela redução da jornada de trabalho surgiu a partir do movimento Vida Além do Trabalho (VAT), liderado por Ricardo Azevedo, no Rio de Janeiro. Um relato do jovem sobre a rotina exaustiva como balconista de farmácia viralizou no TikTok e, assim, o debate sobre o fim da escala 6×1 ganhou notoriedade nas mídias sociais. Diante disso, a pauta foi aderida por Erika Hilton e, meses depois, o influenciador e ativista foi eleito vereador pelo PSOL com mais de 20 mil votos.

Estabelecida na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a escala 6×1 determina que o funcionário deve trabalhar por seis dias consecutivos e tem direito a um dia de descanso semanal. O modelo é comum em setores como comércio e indústria. A partir do desabafo de Azevedo, o assunto mobilizou todo o país. Em uma petição online, mais de 1 milhão de pessoas se posicionaram contra o regime. No dia 15 de novembro, atos foram realizados em diversos estados e municípios, inclusive em Conquista.

Para Laura*, que viveu por anos com apenas um domingo de descanso por mês, é essencial que a PEC consiga avançar na Câmara dos Deputados e, posteriormente, no Senado. Mas do outro lado da história, empresários e comerciantes se posicionam contrários ao fim da escala 6×1. Um dia antes da mobilização nacional pela redução da jornada de trabalho, em 14 de novembro, a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) emitiu uma nota oficial sobre o assunto.

No comunicado, publicado no Instagram, a entidade afirmou que a PEC trará “grandes prejuízos para a estabilidade das empresas”. A página da CDL de Vitória da Conquista republicou o mesmo informe. Nos comentários, internautas criticaram a postura. “Que postagem vergonhosa! Os empresários já estão desesperados, só pensam em lucro”, escreveu um usuário. “É lamentável ver a CDL defendendo a escala 6×1, que impõe uma carga exaustiva e prejudica a saúde dos trabalhadores”, disse outra pessoa.

Exploração do trabalho

Na contramão do discurso utilizado pelas empresas de que a redução da jornada de trabalho prejudicaria a economia do país, Josias Alves, professor do curso de Economia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), acredita que a mudança pode trazer muitos benefícios. “Nós teremos trabalhadores e trabalhadoras com menos problemas de saúde relacionados ao trabalho, como síndrome de burnout, LER/Dort e outras doenças relacionadas às atividades laborais”, destaca o docente.

Além disso, segundo o especialista, a alteração na jornada impacta também a produtividade. Para ele, com mais tempo para descanso, o trabalhador poderá produzir melhor. Josias explica ainda que, em relação a outros países, o Brasil está atrasado no debate sobre a flexibilização do horário de trabalho. “O que a gente precisa entender é que a carga horária dos brasileiros é uma das mais altas do mundo e, quando pensamos na mulher com as jornadas duplas ou triplas, isso é ainda pior”, ressalta.

Sofia Manzano, professora doutora em Economia na Uesb, aponta que além da mudança da escala 6×1, é necessária a redução da jornada total de trabalho. “Não estamos nesse mundo só para gerar lucro para o patrão. Não adianta vencermos no Congresso Nacional essa luta pelo fim da 6×1 e aí eles adotarem uma escala de trabalho que pode ser, por exemplo, 5×2 (5 dias de trabalho e 2 de descanso), e nestes 5 dias, aumentar a jornada diária de trabalho e perder almoço ou férias”, explica.

A economista também faz questão de destacar que, ao contrário do que afirmam empresários e políticos da extrema direita, o fim da escala 6×1 não irá “parar a economia” ou aumentar o desemprego. “Isso tudo é mentira e está a serviço dos patrões que querem continuar explorando os trabalhadores. Muito pelo contrário, se nós reduzirmos a jornada de trabalho diário e o patrão tiver que contratar mais um trabalhador e ele vai ter que fazer isso, teremos mais gente recebendo salário”, afirma.

A PEC que propõe o fim da escala 6×1 foi protocolada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), no dia 1º de maio de 2024. Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados.

Manzano enfatiza ainda que os pequenos negócios não vão à falência por causa dos trabalhadores, mas sim por conta dos grandes negócios. “Na economia em que nós vivemos, existem os donos do capital monopolista. São, por exemplo, as grandes redes de supermercados e farmácias que, de dez anos pra cá, levaram à falência milhares de negócios de bairros”, explica. “São os grandes empresários que querem manter essa jornada de trabalho para super explorar os trabalhadores”, finaliza.

Tramitação da PEC

Por enquanto, a PEC que busca o fim da escala 6×1 ainda não tramita na Câmara, mas a economista Sofia Manzano alerta que é necessário prestar atenção aos próximos passos em Brasília. “Nós já sabemos que a extrema direita orientou os seus deputados a fazerem propostas absurdas quando essa proposta for tramitar, ou para impedir que ela seja de fato aprovada, ou para aprová-la de uma forma que possa ser, inclusive, prejudicial aos trabalhadores. Não tem nada garantido”, destaca a professora.

No rito do Legislativo nacional, a primeira etapa é a análise da proposta pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que irá avaliar se a matéria segue os princípios da Constituição. Caso aprovada pela CCJ, será encaminhada para uma comissão especial, que pode propor alterações no texto. Depois, a PEC fica apta a ser votada pelo plenário, onde precisa reunir, no mínimo, 308 votos favoráveis. Em seguida, deverá seguir para o Senado, onde é necessária a aprovação de pelo menos 49 senadores.

Dos 39 parlamentares eleitos para a Câmara dos Deputados pelo estado da Bahia, 25 se posicionaram favoráveis à PEC. Entre os nomes mais conhecidos de Vitória da Conquista e região estão Jorge Solla (PT), Waldenor Pereira (PT), Alice Portugal (PCdoB), Daniel Almeida (PCdoB), entre outros. Confira aqui.

**Os trabalhadores ouvidos para esta reportagem pediram que suas identidades fossem mantidas em sigilo. Por esse motivo, eles ganharam nomes fictícios identificados com o sinal (*) ao longo do texto.

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