Madalena dos Santos Reinbolt: a artista que transformou invisibilidade em fios de lã
Por Maria Eduarda Leite - 13 de junho de 2025
Negra e autodidata, ela só teve a grandeza dos seus quadros reconhecida após a sua morte. História da conquistense será contada em filme da cineasta Patrícia Moreira.

Madalena dos Santos Reinbolt nasceu no sertão baiano, em 1919, e morreu quase esquecida, no Rio de Janeiro. Entre esses dois pontos, costurou uma existência marcada pelo silêncio, resistência e criação. Negra, nordestina e autodidata, ela enfrentou um mundo que pouco lhe ofereceu. Mas, ainda assim, bordou com fios de lã os cenários vívidos da infância, os bichos da roça, as festas populares, as memórias da terra. Foi apenas depois de sua morte que a arte brasileira reconheceu o seu talento.
Nascida em Vitória da Conquista, ela cresceu em uma casa de barro, cercada pela natureza. Foi entre o cheiro da terra e os sons dos animais, que passou a enxergar o mundo pelos sentidos. Não aprendeu a ler nem a escrever do jeito que mandava a escola, mas descobriu cedo outra linguagem: a das mãos. Com elas, tecia, pintava, bordava. Cada ponto que dava era também um ato de sobrevivência.
Quando era criança, pintava nos jornais enquanto sua mãe fazia louças de barro. Mais tarde, suas criações ganharam vida nas telas. No final da década de 1960, passou a criar os chamados “quadros de lã”, painéis bordados sobre estopa, com cenas detalhadas e coloridas, técnica da qual foi pioneira. Manipulando mais de 150 agulhas ao mesmo tempo, desenhava com os fios o sertão da sua memória.

Como tantas mulheres negras ao longo da história do Brasil, Madalena viveu a maior parte da vida como empregada doméstica. Aos 20 anos, deixou sua cidade natal para trabalhar em grandes centros urbanos. Passou por Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, até chegar em Petrópolis, em 1949, onde trabalhou na casa da arquiteta Lota de Macedo Soares e da poeta norte-americana Elizabeth Bishop.
Nessa casa, recebeu algum estímulo para desenvolver suas criações. Mas, mesmo produzindo quadros potentes, era vista apenas como alguém “que sabia bordar bem”. O título de artista demorou muito a lhe ser concedido. No mundo da arte, mulheres da cor e classe social de Madalena não tinham lugar.
Apesar do talento e originalidade do seu trabalho, a artista conquistense morreu sem que sua obra fosse devidamente reconhecida. Invisibilizada em vida, ela deixou sua marca no mundo através dos seus “quadros de lã” que, anos depois de sua partida, ocupariam museus e até as telas de cinema.
Da margem ao mundo
A marginalização de artistas negros como Madalena fazem parte de um processo histórico. Para o professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Delton Aparecido Felipe, o conceito de arte no Brasil permanece atravessado por lentes eurocêntricas, que moldam o olhar coletivo a partir de uma estética importada, como se o verdadeiro fazer artístico estivesse ligado às normas da tradição europeia.
Em uma pesquisa de 2019, Delton e Eliane Cristina da Silva, graduada em Artes Visuais pela UEM, apontam que a necessidade de ter a obra normatizada por um padrão eurocêntrico para ser reconhecida atravessa as trajetórias de outras artistas negras no decorrer da história, como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Ruth de Souza e Conceição Evaristo.
Segundo os pesquisadores, quando Madalena trabalhava na casa de Lota de Macedo, mesmo que inicialmente a empregadora incentivasse a sua arte, em determinado momento, disse a ela que para se apresentar como artista precisaria buscar um diploma. “Isso evidencia um olhar colonizado sobre suas obras, pois precisaria de aprimoramento ou a simples validação de uma escola de arte para entrar no circuito artístico”, afirmam os estudiosos.
Diante da invisibilidade histórica, o reconhecimento que a obra de Reinbolt vem ganhando nos últimos anos surge a partir de grupos que se dedicam a recuperar a memória de artistas negros por muito tempo deixados à margem. A partir disso, a arte de Madalena vem ocupando diferentes espaços.
Sua trajetória ganhou destaque entre 2022 e 2023, quando o Museu de Arte de São Paulo (MASP) realizou a primeira exposição individual sobre Madalena, intitulada “Madalena Santos Reinbolt: uma cabeça cheia de planetas”, reunindo 44 obras que evidenciam sua contribuição única à arte brasileira.
Os “quadros de lã” também alcançaram a cena internacional. Entre os meses de fevereiro e março de 2025, 42 criações da artista ocuparam as salas do American Folk Art Museum (AFAM), em Nova York, na exposição intitulada “Madalena Santos Reinbolt: A Head Full of Planets”.
Dylan Blau Edelstein, assistente curatorial da exposição norte-americana, destaca que o que faz o seu trabalho ressoar ainda hoje é, acima de tudo, o seu poder. “Seus quadros de lã são obras intrincadas, vibrantes e singulares”, explica.
Para ele, é preciso reconsiderar quais formas de arte são consideradas dignas de ocupar espaços nos museus. Isso envolve não apenas ampliar a representatividade em termos de raça e gênero, mas também valorizar artistas que, assim como Madalena, não trilharam os caminhos clássicos das academias ou do circuito das galerias tradicionais.

Do fio ao filme
Atravessando os muros de museus e galerias, Madalena agora vai ocupar as telas de cinema. O longa-metragem “Cabeça Cheia de Planetas”, produzido pela cineasta e professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), Patrícia Moreira, começará a ser gravado em setembro deste ano.
O filme nasce de um encontro. Ao se deparar com a história da artista, Patrícia se viu representada. Foi dessa identificação íntima que brotou o desejo de transformar aquela narrativa em imagem e movimento. “Como mulher afro-indígena, reconheço em Madalena não só uma referência ancestral, mas também um espelho de trajetórias que, em outros tempos e contextos, foram interrompidas ou silenciadas”, conta.
Diante da ausência de registros diretos da voz de Madalena, o filme será construído a partir de sensações e da expressão presente nas obras da baiana. “O desafio foi escutar esses materiais como quem escuta uma história contada com as mãos, uma narrativa que pulsa sem precisar de palavras”, disse.
Para construir a obra cinematográfica, Patrícia visitou museus e fez pesquisas em arquivos públicos em busca de traços que pudessem iluminar os contornos dessa história. Certidões de casamento e de óbito auxiliaram na compreensão da existência de Madalena.

Cartas escritas por Elizabeth Bishop ofereceram breves janelas para seu cotidiano, revelando como ela era percebida por aqueles que a rodeavam. Como ponto fundamental, resta sua única entrevista, concedida à antropóloga Lélia Coelho Frota cerca de um ano antes de sua morte. Nesse registro, sua voz se ergue com um ritmo próprio, revelando uma visão de mundo tão singular quanto sua trajetória.
Para a cineasta, a trajetória de Madalena dos Santos Reinbolt mostra que a arte não precisa nascer dos grandes centros ou de espaços legitimados para ter valor. Ela pode surgir do interior, do cotidiano, das experiências simples e profundas das histórias à margem.
Num contexto em que a cultura local ainda sofre com a falta de apoio, estrutura e visibilidade, Madalena se torna símbolo de resistência. Dar a ela o reconhecimento merecido é mais do que celebrar uma artista. “É afirmar que Vitória da Conquista é território de criação, de narrativas plurais, de talentos que resistem mesmo diante das ausências”, finaliza Patrícia.
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