Estradas precárias dificultam acesso da população quilombola a direitos básicos
Por Karina Costa - 30 de setembro de 2024
No quilombo de Laranjeiras, situado no distrito do Pradoso, em Vitória da Conquista, moradores ficam ilhados quando ocorrem fortes temporais. Segundo especialista, a falta de atenção do Poder Público a essas localidades está relacionada ao conceito de racismo ambiental.
“Quando a chuva cai e os rios enchem, se um filho de Deus passar mal e precisar ser levado urgentemente para o hospital, ele morre porque não tem como passar”. O desabafo é de Suelina Moreira, presidente da associação do quilombo de Laranjeiras, situado na zona rural de Vitória da Conquista, no distrito do Pradoso. A cerca de 40 minutos do centro urbano, a comunidade é apenas uma entre muitas no município que enfrentam dificuldades para acessar direitos básicos em razão das condições precárias das estradas.
Na localidade onde Suelina vive há mais de três décadas, o caminho de terra que dá acesso ao povoado é cortado por três riachos. Por isso, nos períodos em que ocorrem fortes temporais, a estrada fica intransitável e os moradores ilhados. “Eu sempre digo que quando o tempo está aberto, nós estamos livres. Mas quando a chuva cai, nós viramos prisioneiros”, destaca a líder comunitária. “É muito difícil”, complementa.
Ao longo dos anos, a população de Laranjeiras teve que aprender a viver em constante alerta. Quando sabem que as chuvas se aproximam, as pessoas começam a estocar mantimentos. “A gente compra bastante alimento e guarda para conseguir passar o tempo que for necessário”, explica Suelina. Segundo ela, a sensação é de medo, principalmente entre os trabalhadores que precisam se deslocar diariamente até a zona urbana.
“Aqui a maioria trabalha em Conquista. Quando as estradas acabam, eles não têm como ir. Então, alguns acabam perdendo trabalho ou, quando o rio não está tão cheio, formam uma corrente e se arriscam a atravessar a água”, conta a líder quilombola. Outra alternativa para sair do povoado, durante as fortes chuvas, é cortar caminho por dentro de uma propriedade privada: uma fazenda que pertence ao cantor conquistense Elomar Figueira Mello.
De acordo com Suelina, uma das reivindicações da comunidade, além da pavimentação asfáltica, é um desvio na estrada que abra um trecho transitável pela terra do músico. Mas para isso, os moradores dependem de uma negociação entre a Prefeitura e o fazendeiro. “Já conversei com a prefeita, levei um ofício, ela assinou e tudo, só que a resposta dela não foi aquela que garantia o desvio. Ela disse que depende muito dele [Elomar]”, afirma.
A estrada que dá acesso ao quilombo de Laranjeiras é cortada por três riachos. Fotos: Karina Costa.
“Abandono intencional”
As dificuldades de mobilidade enfrentadas pelas pessoas que vivem no quilombo de Laranjeiras evidenciam a segregação social entre campo e cidade. Enquanto grandes avenidas na zona urbana, como a Olívia Flores, recebem requalificação do recapeamento asfáltico e ampliação de ciclovias, comunidades rurais de Vitória da Conquista, formadas majoritariamente por população negra, são muitas vezes impedidas de acessar serviços de saúde e educação por causa de estradas precárias.
Em Laranjeiras, há um colégio. É uma das poucas instituições de ensino em território quilombola que não foi desativada pela Prefeitura. Mas esse não é o caso da comunidade do Sinzoca, no distrito de José Gonçalves. Em 2018, a população viu a Escola Municipal Inocêncio Santos encerrar as atividades. Com o fechamento permanente do prédio, as crianças foram obrigadas a sair de sua localidade para estudar em outro povoado.
Mas assim como ocorre na comunidade de Suelina, no Sinzoca, quando os fortes temporais chegam, a estrada de terra fica intransitável, especialmente para veículos. “Qualquer chuva que tiver, a gente não sai daqui”, disse a agente comunitária de saúde, Magna Novais. Dessa forma, o acesso à educação para os alunos da região também é comprometido.
Magna conversou com o Conquista Repórter pela primeira vez em setembro de 2023, quando visitamos a casa de sua família. Um ano depois, ela nos conta que a situação na comunidade não é muito diferente. “As estradas foram ‘patrulhadas’, mas não jogaram cascalho. Estamos esperando chuvas nos próximos meses e contamos que vamos ter que andar a pé novamente”, explica a moradora e líder comunitária.
No quilombo do Boqueirão, as condições precárias das estradas impedem o acesso de famílias a outro item básico e essencial: água. Como não há abastecimento da Embasa (Empresa Baiana de Águas e Saneamento) no local, os moradores dependem de cisternas que armazenam água da chuva e de carros-pipa. Mas em alguns trechos da comunidade, o trajeto não permite a passagem de veículos. “O canto é ruim para entrar”, relata a agricultora Josiane de Jesus Santos.
Para Claudio Carvalho, professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e doutor em Desenvolvimento e Planejamento Urbano, em Vitória da Conquista, há um descaso do governo municipal com as comunidades rurais, quilombolas e periféricas. Ele explica que a falta de atenção a essas localidades pelo Poder Público está relacionada ao conceito de racismo ambiental. “É um abandono intencional”, destaca o docente.
Segundo o pesquisador, o termo surgiu entre as décadas de 1970 e 1980. “Um autor chamado Benjamin Chavis, que foi assessor do Martin Luther King Jr., começou a perceber como os territórios negros eram intencionalmente escolhidos para receber equipamentos que traziam prejuízos para os locais. Por exemplo, se você precisa instalar um aterro sanitário, onde vai ser colocado? Onde está a população quilombola”, afirma Claudio.
O professor e co-autor do livro “Fundamentos do Direito à Cidade” explica ainda que a lógica que opera na terceira maior cidade da Bahia é deixar as comunidades rurais e periféricas invisíveis. “São populações vulneráveis que, do ponto de vista político e econômico, não têm uma representatividade. Para reverter isso, é preciso vontade política. O Poder Público tem que agir com o que chamo de inversão de prioridades”, pontua Carvalho.
Qual é a prioridade?
Com mais de 370 mil habitantes e 11 distritos, Vitória da Conquista é um município marcado pela segregação social. Na zona rural, na região de Lagoa de Maria Clemência, mais especificamente em quilombos como Taboa e Manoel Antônio, crianças andam até oito quilômetros para acessar o transporte escolar. Já no perímetro urbano, os bairros periféricos e distritos são os que mais sofrem com a escassez de linhas de ônibus. Claudio Carvalho relaciona essa desigualdade com as prioridades estabelecidas pela gestão municipal na hora de decidir como será o investimento em cada área da cidade.
“Qual é a prioridade da Av. Olívia Flores? Todos os dias tem um trabalhador da Prefeitura lá. Mas quando pensamos na inversão de prioridades, é preciso analisar que a população rural ou periférica não necessariamente é a mais rica, mas é a que mais precisa. É por isso que eu falo em equidade e não igualdade. Todos são iguais perante a lei? Não é assim quando analisamos a situação”, destaca o doutor em Desenvolvimento e Planejamento Urbano.
Juan Pedro Moreno Delgado, professor do Departamento de Engenharia de Transportes e Geodésia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), também acredita que é necessário incluir os territórios afastados do centro urbano nas políticas de mobilidade. “Nós temos que colocar os distritos e comunidades periféricas no orçamento municipal”, afirma o docente.
Quando esses territórios não são levados em conta pelo Poder Público e a população não consegue se deslocar, há uma diminuição do senso de pertencimento à cidade. Além disso, ocorre um processo de adoecimento das pessoas. “O trabalhador que precisa pegar um ônibus de madrugada porque mora na zona rural vive em constante cansaço. Isso provoca um adoecimento mental que pode levar à depressão”, explica Claudio Carvalho.
Promessas e soluções possíveis
Para muitas comunidades rurais e quilombolas de Vitória da Conquista, um dos maiores sonhos é o asfaltamento das estradas. Na região do Pradoso, onde vive Suelina Moreira, uma obra de R$25 milhões do Governo do Estado da Bahia promete a pavimentação do trecho que liga o povoado (onde está Laranjeiras) até o distrito de Bate-Pé. Uma placa anuncia o período de 12 meses para a conclusão do projeto, máquinas trabalham nas vias cobertas por terra, mas ainda não se sabe se a estrutura vai chegar até o quilombo.
Suelina tem esperança de que o asfalto chegue até lá. Ela conta que o governador Jerônimo Rodrigues (PT) chegou a prometer o desvio que permitiria uma passagem pela fazenda do cantor Elomar Figueira Mello. “Estamos com esse documento assinado por ele, que mandou uma resposta pra gente dizendo que vamos conseguir, só não pode ser agora”, conta a presidente da associação de Laranjeiras.
Mas enquanto nem obra nem promessa avança, existem reais medidas que podem ser colocadas em prática para melhorar a mobilidade de quem vive nos territórios rurais. De acordo com Claudio Carvalho, no caso das estradas vicinais, como são chamadas aquelas que não possuem revestimento asfáltico, é necessária a manutenção constante.
“Algumas gestões já fizeram isso, que são as brigadas de acompanhamento das estradas da zona rural. Você não precisa necessariamente asfaltar, mas de maneira periódica, é preciso ter equipes para fazer um patrolamento e manutenção. Não dá para esperar a chuva, muito menos agora com as mudanças climáticas e os eventos extremos. Quando chove, qualquer buraco só vai aumentar”, ressalta o docente da Uesb.
Para atender a demanda de transporte na zona rural, Claudio defende a regularização e a legalização de um transporte alternativo, além da implementação da tarifa zero. “Eu não estou falando de transporte clandestino, que é o que temos hoje no município. Não temos a quantidade de ônibus suficiente para comportar o contexto de 370 mil habitantes? Tudo bem. Isso é uma realidade em várias cidades, mas então vamos colocar um transporte alternativo, que seja de qualidade e com segurança para a população”, afirma.
Zona rural nas eleições
A mobilidade urbana, o transporte público e a infraestrutura das estradas são temas que ficam ainda mais em evidência durante o período eleitoral. Em 2024, são quatro chapas que disputam a Prefeitura de Vitória da Conquista. Para saber quais propostas os candidatos apresentam para garantir qualidade de vida às populações de comunidades como Laranjeiras, Boqueirão e Sinzoca, consultamos os planos de governo de cada dupla, que estão disponíveis no portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Na seção intitulada “desenvolvimento rural sustentável”, que contém um total de sete ações descritas, a atual prefeita Sheila Lemos (União) e seu vice, Aloísio Alan (Republicanos), citam que irão “manter como prioridade os investimentos em manutenção e recuperação das estradas vicinais da zona rural”. Não há mais detalhes sobre a proposta.
Já no tópico que discorre sobre mobilidade urbana e acessibilidade, a dupla da coligação ‘Conquista Segue Avançando’ promete “integrar o transporte da zona rural e urbana, o que facilitaria o acesso à áreas de expansão, como a do Distrito Industrial”. Além disso, na mesma seção, os candidatos afirmam que vão unir esforços com as esferas federal e estadual para subsidiar o transporte coletivo e, assim, “alcançar” a tarifa zero.
Waldenor Pereira (PT) e Luciana Silva (PSB), da coligação ‘A Força para Mudar Conquista’, também propõem a tarifa zero para o transporte coletivo. Eles ainda dedicam o eixo 3 do plano de governo às demandas da zona rural. “A nossa proposta é elaborar um Plano Diretor Urbano (PDDU) para cada sede de distrito, que delimite suas condições ideais de crescimento, incluindo um regramento de partido urbanístico”, diz um trecho.
Em relação às estradas especificamente, a chapa destaca a importância de criar um cronograma de manutenção nos diversos distritos e vilas, “através de patrulhas mecanizadas em localidades chave”. No texto, a coligação afirma ainda que, “quando possível”, irá reivindicar junto ao governo estadual verba para a pavimentação asfáltica.
Da coligação ‘A Mãe tá On’, Lúcia Rocha (MDB) e Delegado Marcus Vinicius (Podemos) inseriram no plano de governo um tópico sobre as estradas rurais. A dupla promete que as vias “receberão manutenção permanente para garantir a mobilidade e o escoamento da produção agrícola”. Os candidatos afirmam ainda que vão implementar “um sistema de transporte público de passageiros específico para a zona rural”.
Marcos Adriano e Ariana Mota, ambos do partido Avante, mencionam a criação do “programa de asfalto”. A partir dessa proposta, os candidatos à Prefeitura de Conquista propõem a utilização de “58 milhões por ano de orçamento próprio para pavimentação asfáltica nas zonas urbana e rural”. Outra promessa é a “reforma perene das estradas para escoamento de produtos agrícolas” através do “programa homem do campo”.
Outro lado
O Conquista Repórter questionou a Prefeitura, via e-mail, a respeito de quais ações são tomadas para a manutenção das vias na zona rural. A gestão informou que “mantém, durante todo o ano, um cronograma de ações nos mais de 3.500 quilômetros de estradas dos 11 distritos do município”. Entre as ações, foram citadas patrolamento, cascalhamento e roçagem. O governo disse ainda que, no período que antecede a chegada das chuvas, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Rural (SMDR) mantém 11 frentes de trabalho.
Quando indagada sobre as comunidades rurais que ficam ilhadas em épocas de fortes temporais, a gestão Sheila Lemos explicou que, nesses casos, as equipes da SMDR ficam “de prontidão para desobstruir passagens, recompor as áreas mais afetadas pela chuva, entre outras ações”. Além disso, o Poder Executivo destacou que foi montado um plano de contingência para “ajudar a resolver situações extremas” e que “novas estradas estão sendo abertas para se ter mais de um acesso às localidades rurais”.
A Prefeitura de Conquista também ressaltou a criação dos Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil (Nupdecs), através do Decreto nº 22.789/2023, e a capacitação de representantes de 45 localidades rurais que atuam como apoio e contato direto da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil. “Os voluntários apontam as condições da estrada, o nível dos rios, dentre outras situações, por exemplo, colapso de residência, seja ele parcial ou total”, aponta um trecho do comunicado enviado à reportagem.
Sobre o desvio que é reivindicado pela população de Laranjeiras, que permitiria uma passagem pela terra do cantor Elomar Figueira Mello, o governo afirmou que “uma tratativa já foi iniciada com o proprietário da fazenda mencionada para que possa mudar o curso de um trecho da estrada”. Segundo a Prefeitura, enquanto a negociação está em andamento, o segundo ponto de acesso ao povoado, via Cachoeira das Araras, foi melhorado “para que as pessoas não fiquem sem esse direito de ir e vir assegurado”. Confira a nota na íntegra aqui.
O Conquista Repórter também entrou em contato com a assessoria de comunicação do artista e fazendeiro. Por ora, ele preferiu não se pronunciar sobre o assunto.
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