Professoras da Uesb contam como vivenciam o machismo no meio acadêmico
Por Karina Costa - 8 de julho de 2021
Interrupções de falas durante reuniões e tentativas de silenciamento de denúncias de assédio são reflexos do machismo dentro da universidade
“Quenga”, “alma sebosa”. Foi com essas palavras ofensivas que um estudante de Medicina da Uesb (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) se referiu, de forma machista e misógina, à professora Márcia Lemos, do curso de História do campus de Vitória da Conquista. O fato ocorreu no dia 2 de junho, durante reunião online do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe), após ela se posicionar, enquanto representante da plenária do Departamento de História (DH), contra a adoção do modelo de ensino híbrido na instituição no atual período de pandemia da covid-19.
O tom violento do ataque ganhou um peso ainda maior por conta de um detalhe que, não raramente, passa despercebido nesse tipo de situação. Os mesmos argumentos apresentados por Márcia para defender seu ponto de vista já haviam sido expostos, anteriormente, por professores homens. A diferença é que nenhum deles foi vítima de ofensas diretas por exporem suas opiniões. “Então, há um ataque a uma professora mulher e com conteúdo moral. Isso não é incomum. Isso acontece em toda a sociedade”, afirmou Márcia.
“Eu vivi coisas assombrosas”, contou a professora Adriana Amorim, ao lembrar do período em que assumiu o cargo de diretora do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH), no ano de 2018. “Tinha vezes que eu nem me dava conta do machismo, mas o vice-diretor me dizia: ‘Drica, eles massacram você nas reuniões. Quando eu conduzo, eu falo o que eu quero e ninguém diz nada, mas você é massacrada nas mínimas coisas por ser mulher, sabe?’”.
Foi também quando ocupou uma posição de poder dentro da universidade, no espaço sindical, que a professora Cleide Lima, que trabalha na Uesb há 20 anos, observou com mais clareza o machismo no ambiente de trabalho. “Durante dois anos, eu estive em uma diretoria, onde eu dirigia reuniões e contribuia na coordenação de algumas assembleias. O machismo era muito gritante. Colegas queriam silenciar nossas falas gritando, se impondo e, muitas vezes, utilizando o porte físico e a voz mais grossa para tentar nos silenciar nessas assembleias”, explicou.
Os relatos das três docentes mostram que o meio acadêmico não está livre das violências impulsionadas pela cultura machista e patriarcal que predomina em nossa sociedade. Nas salas e corredores de instituições de ensino superior como a Uesb, o machismo, a misoginia e o sexismo são realidades cotidianas vividas por mulheres. Interrupções em reuniões, ataques relacionados aos seus corpos e sexualidade, e questionamentos quanto à capacidade intelectual de assumirem posições de poder são práticas comuns. E ainda há muito a ser feito para que isso mude.
“Uma mercadoria a ser consumida”
Márcia Lemos ingressou na Uesb como estudante, na década de 1990. Após a graduação em História, ela passou a compor o quadro de docentes da universidade, em 1999. Como uma jovem professora, mãe, divorciada, ela já sentia os efeitos de ocupar um espaço majoritariamente masculino. “É claro que havia uma postura de ver a mulher, como acontece até hoje, como uma mercadoria a ser consumida, especialmente se ela não está no quadro das esposas respeitáveis, como socialmente é considerado”, disse.
Durante a sua trajetória na universidade, paralelamente ao trabalho como professora, ela ocupou o cargo de presidente da Associação dos Docentes da Uesb (Adusb) e também concorreu ao cargo de reitora nas eleições internas de 2018. De acordo com a historiadora, foi na presidência do sindicato que ela se deu conta do quanto a universidade era machista.
Segundo Márcia, no espaço sindical, os homens não lidavam bem com o fato de ter uma mulher como dirigente. “Eles tinham dificuldade de reconhecer em uma mulher a sua capacidade de conduzir uma sessão sindical tão importante quanto a da Adusb. Então, muito jovem eu me dei conta desse processo de reificação das mulheres dentro do espaço da academia e na sociedade de modo geral”.
Mais de 20 anos após o seu ingresso na Uesb como docente, em junho de 2021, Márcia sofreu ataques misóginos durante a reunião do Consepe (Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão) do dia 2 de junho. Para a professora, o que mudou do início de sua trajetória profissional até hoje foi a organização de ações de combate à misoginia e ao sexismo a partir do avanço dos movimentos sociais.
De acordo com Márcia, o machismo, a misoginia e o sexismo eram mais naturalizados antes dos anos 2000. Mas após a ascensão das ações afirmativas, em decorrência da luta dos movimentos sociais, há uma mudança. “Há uma transformação, mas ela não é natural da instituição, é oriunda das pressões sociais, dos movimentos organizados que vão combater esse processo de naturalização da inferioridade e subordinação feminina, da incompetência para o exercício das funções fora do lar”, explicou.
Sobre o caso ocorrido com a professora durante reunião do Consepe, a universidade alegou, por meio de nota, que as ações já estão formalizadas e a situação está sendo apurada, por meio de Processo Administrativo Disciplinar (PAD). “As medidas a serem adotadas serão indicadas pela comissão responsável pelo PAD, no momento em que o processo for finalizado”, disse a Assessoria de Comunicação da Uesb.
Em nota enviada ao Conquista Repórter, a Adusb (Associação dos Docentes da Uesb) afirmou que “realiza com frequência, seja por meio do GTPCEGDS (Grupo de Trabalho de Políticas de Classe para questões Étnicoraciais, de Gênero e Diversidade Sexual), seja por meio de sua Diretoria, atividades de formação sobre a opressão de gênero (como o machismo), bem como outras formas de opressão”.
Além disso, a entidade informou que, em assembleias, as tentativas de silenciamento são tratadas com rigor por meio de uma metodologia que respeita o direito de fala de qualquer pessoa. Outra iniciativa de combate ao machismo, segundo a nota, é o incentivo à participação de mulheres nas gestões de diretoria do sindicato.
“A atual diretoria, por exemplo, é composta majoritariamente (68%) por mulheres. Alguns professores, homens, lamentavelmente têm dificuldade em lidar com isso e por este motivo a Adusb desenvolve todas as políticas e ações apontadas anteriormente”. Confira a nota na íntegra aqui.
“Espere, ainda não terminei de falar”
Adriana Amorim é professora do curso de Cinema e Audiovisual da universidade. Antes de se mudar para Conquista, em 2014, ela fez parte do corpo docente da Licenciatura em Teatro, no campus de Jequié, onde trabalhou por quatro anos. Na ‘cidade sol’, ela também foi vítima de ataques, não apenas por ser mulher, mas por ser artista e lésbica.
“Boa parte da resistência aos professores de teatro era por conta da nossa atividade artística, mas agora eu estou repensando: ‘será que se as atividades artísticas fossem tocadas por homens héteros, seria assim?’ Porque a gente recebeu muitos ataques. Éramos chamados até de ‘liga do demônio”, contou.
No curso de Cinema, em Conquista, Adriana acredita que tem o privilégio de trabalhar com pessoas abertas ao diálogo e dispostas a gerar mudanças ao seu redor, inclusive no que diz respeito ao combate de práticas machistas. Mas em 2018, quando assumiu a direção do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH), ela percebeu que o comportamento de colegas de outras áreas era muito diferente.
“Foi lá [na direção do DFCH] que eu vi como é triste, né? A Uesb é uma instituição machista, cuja administração e o poder são hegemonicamente masculinos. Temos menos mulheres nas pró-reitorias e, geralmente, elas estão em pró-reitorias mais distantes das maiores verbas. E a gente precisa de uma intenção para observar essas coisas porque, às vezes, elas vão passando despercebidas”, disse.
“Nossa, como o seu aperto de mão é forte!”, “você sabe o que é uma revista indexada?” ou “a senhora é de Cinema, não entende disso, sabe?”. Esses são comentários que Adriana ouviu durante a sua gestão como diretora do DFCH. Nas reuniões do departamento, era comum a interrupção de suas falas ou de outras mulheres por colegas homens. “Eu era interrompida continuamente. Eu precisava falar: senhor, por favor, espere, eu ainda não terminei”.
Além da postura dos homens, a professora também percebeu a reprodução do machismo por colegas mulheres. “Muitas tinham um comportamento extremamente machista e acho que elas não se dão conta de que reconhecem mais as coisas quando os homens falam”. Adriana contou que ela mesma já se percebeu sendo machista em algumas situações.
Durante uma aula no curso de Cinema da Uesb, ela foi atacada por um aluno que, de repente, invadiu o palco do Teatro Glauber Rocha, local onde conversava com os estudantes. Muito abalada, a professora buscou ajuda da instituição para garantir a sua segurança. Foi Selma Norberto, assessora de acesso, permanência estudantil e ações afirmativas, quem cuidou do caso.
“Selma resolveu tudo e eu falei para ela: quero conversar com o reitor. Nesse momento, eu me dei conta de que ele ia me dizer as mesmas coisas que eu já tinha escutado de uma mulher. Esse é o machismo estrutural. Eu preciso ouvir de um homem o que uma mulher já me explicou. Eu pedi desculpas e falei que confiava no trabalho dela”, contou a professora.
“Temos sempre que provar que somos competentes“
“Nós mulheres temos sempre que provar que somos competentes e capazes de ocupar determinados espaços”. É esse o sentimento de Cleide Lima, professora do curso de graduação e do mestrado profissional em História na Uesb. Para ela, a ausência de mulheres em posições de poder, como a reitoria, é a maior prova de que o ambiente acadêmico é machista, misógino e sexista.
“A Uesb só teve uma reitora até hoje e a universidade tem mais de 40 anos. Além disso, todos os outros espaços, como coordenações e pró-reitorias, são ocupados, em sua maioria, por homens”, afirmou. A única mulher a assumir a gestão da instituição foi Walquíria Albuquerque, entre 1984 e 1987. Ela foi indicada pelo governo e não eleita através dos votos da comunidade acadêmica.
O que acontece quando as mulheres alcançam cargos importantes dentro da hierarquia da universidade é o questionamento quanto à sua capacidade intelectual e as tentativas de silenciamento. “Em reuniões, eu me questiono se fosse um homem falando tal coisa, os colegas tomariam atitudes como passar por cima de decisões tomadas em plenárias. As mulheres precisam provar o tempo todo que são capazes”.
A impunidade
O assédio sexual é outra forma de violência que afeta diretamente as mulheres dentro da universidade e ocorre como resultado do machismo. Quando ocupou o cargo de diretora do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH), essa foi uma das pautas mais difíceis com a qual Adriana teve que lidar.
De acordo com a docente, era frequente a proteção de professores que recorrentemente são denunciados por assédio ou mal comportamento. “Quando eu tentei encaminhar as denúncias, a plenária veio com muita violência para cima de mim. As pessoas não votavam. E mesmo quem não era violento, se ancorava no discurso de que as provas eram poucas ou de que se tratava de perseguição aos professores”, contou.
A gestão de Adriana como diretora do departamento deveria ser finalizada em maio de 2020. Mas devido aos ataques que sofreu por tentar encaminhar denúncias de assédio no DFCH, ela desenvolveu problemas de saúde e renunciou ao cargo, em setembro de 2019.
“Quando eu vi que era preciso brigar, eu fiz isso. As pessoas me falavam para eu não mexer com essa questão. E aí eu disse: vou sair porque eu não sou síndica do DFCH. Eu sou diretora de um departamento e estou aqui para tomar decisões políticas”.
Segundo a professora, a sua última ação na gestão do DFCH foi modificar a estrutura física da sala onde funciona o departamento. “Eu fiz isso para que os professores não tenham acesso aos corpos das secretárias. Eu fui à reitoria e falei: eu não vou trabalhar enquanto não fizermos essa reforma”.
De acordo com nota enviada à reportagem pela Uesb, “todas as reclamações e denúncias são apuradas seguindo os princípios do Direito Administrativo, com direito à ampla defesa e ao contraditório, como rege o Estado Democrático de Direito”.
No que diz respeito às políticas de acolhimento às vítimas de assédio, a universidade alegou que vem aperfeiçoando o seu trabalho por meio de setores específicos, como o Núcleo de Atenção Integral ao Servidor (Nais/AGP), no campus de Conquista, os Núcleos de Saúde, nos campi de Itapetinga e Jequié, e a Assessoria de Acesso, Permanência Estudantil e Ações Afirmativas (Aapa) e suas coordenações em cada campus.
“Todos os atendimentos são feitos por equipes multidisciplinares especializadas e contam com o apoio dos cursos, bem como suporte para atendimentos psicológicos, pedagógicos ou de Direitos Humanos”, é o que afirmou a Assessoria de Comunicação da universidade.
A Ouvidoria da Uesb existe para o registro de denúncias que, em seguida, são encaminhadas para os setores responsáveis, como os departamentos, caso professores estejam envolvidos no caso. No departamento, após votação da plenária, é decidido se cabe ou não a instalação de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD).
De acordo com a professora do curso de Direito da Uesb e advogada, Luciana Silva, “as situações de assédio podem ser levadas para as instâncias administrativas competentes para que sejam tomadas as medidas internas cabíveis. Além disso, é possível levar o caso também para apuração pela polícia civil”, explicou.
Para a professora Márcia Lemos, o sistema de denúncias da universidade ainda é extremamente limitado. “É um processo moroso e poucas vezes conseguimos ver a efetividade da denúncia. Não existe espaço de acolhimento, de acompanhamento, de proteção das pessoas que querem fazer a denúncia, o que leva ao silenciamento”.
A docente Cleide Lima disse que é necessário criar espaços educativos dentro da universidade para combater o assédio e todos os tipos de opressão. “Precisamos de disciplinas que dialoguem sobre a história das mulheres, a história afro-brasileira e a cultura das populações LGBTs. É importante que haja uma verdadeira mudança estrutural nos currículos, especialmente nas licenciaturas”.
Adriana Amorim acredita que já passou da hora de aprimorar o sistema de Ouvidoria da Uesb. “Essa é uma dívida que a universidade tem com as mulheres, sobretudo com as estudantes”. Segundo a docente, além de viabilizar as denúncias, é preciso criar políticas institucionais para garantir a representatividade feminina nos espaços de poder e decisão dentro da universidade.
“Acredito que precisamos de cotas para as mulheres nas pró-reitorias, nas direções, nos conselhos. Quanto mais mulheres estiverem nesses lugares, menos solitárias e acuadas nós iremos nos sentir”, afirmou.
A advogada Luciana Silva também acredita que o aparelho burocrático e legal que existe na instituição atualmente ainda é ineficaz. “É dever da instituição investigar, punir, acolher as vítimas e promover ações preventivas e educativas”.
A Ascom Uesb afirmou que a universidade tem buscado combater o assédio e outras práticas machistas através de duas linhas de enfrentamento: conscientização e apuração legal. Sobre a primeira, a instituição alegou que têm investido no desenvolvimento de estudos científicos, ações de extensão e campanhas efetivas que ampliem o combate a todos os tipos de preconceito.
Sobre o funcionamento da Ouvidoria, a Ascom disse que a Uesb vem aperfeiçoando seus sistemas de controle e transparência. Além disso, segundo a nota, durante a pandemia da covid-19, o sistema passou a funcionar de forma online, com atendimento via e-mail, em horário ampliado.
“Outra medida adotada, desde 2018, foi a criação da Assessoria Técnica de Governança Institucional, que, entre suas funções, desempenha o papel de supervisionar as atividades da Ouvidoria”, diz um trecho do documento. Confira a nota na íntegra aqui.
Além da Ouvidoria da Uesb, outro instrumento para o registro de denúncias, criado especificamente para os discentes, é o canal do Diretório Central dos Estudantes (DCE), que pode ser contatado através do número de WhatsApp: (77) 98125-3047.
*Foto de capa: Jornal da USP
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