Especial REC Conquista | Reflexões sobre tempo e audiovisual

Por - 9 de março de 2023

Durante a programação da 2ª Semana de Projeção REC Conquista, trazemos em nosso site textos produzidos por professores, pesquisadores e críticos de cinema que refletem sobre os filmes e temáticas do evento.

Diante do tempo levanta-se sempre um imperativo: o da procura. Um gesto materializado pela rememoração, reconstrução, imaginação e todas as agruras e belezas que isso implica. Talvez por isso, e não à tôa, Marcel Proust tenha optado por conceber sua inesquecível história sob a sombra de uma busca pelo tempo perdido. Está nisso a principal nuance da nossa relação com o que passa.

Objeto da literatura, como o foi para Proust em seu clássico romance, para as artes visuais o tempo é também matéria-prima. As artes plásticas, a fotografia, o audiovisual. O uso das dimensões temporais não escapa nem mesmo às novas formas tecnológicas surgidas na virada do XIX para o século XX. Ancoradas no desejo de materializar na tela, no papel ou no cinema, essas três formas expressivas souberam lidar com o registro de fragmentos pretéritos como ninguém. Tornaram-se ferramentas de memória, por excelência.

Projetando para o futuro determinados indícios do que fora vivido outrora, funcionam como chaves para o enigma da decifração do presente. Por meio dessas viagens possibilitadas pelas imagens e sons, nos damos conta da condição cíclica da existência. As pandemias, as contradições, as formas artísticas, os adventos tecnológicos. Tudo parece encontrar precedente quando olhamos cuidadosamente para o tempo passado.

Há como que, poderíamos assim dizer, uma repetição de modelos temporais plasmados nos arranjos sociais. Mesmo quando estamos diante de novos – ou seriam velhos? – dilemas como os que aquecem discussões acerca da inteligência artificial nesse início de anos 2020, ainda assim a observação do tempo dá acesso a certo anacronismo que dá chão às nossas reflexões sobre o reaparecimento de certos fenômenos vivenciados ao longo dos séculos. É essa continuidade de experiências acumulada nas condições atuais que nos fazem perceber o quanto somos sempre contemporâneos de questões antigas e que  julgamos serem novas.

É justamente aqui que a arte parece ter um papel fundamental. Ao organizar coleções de episódios vividos pela humanidade no passar das décadas, atinamos para a ideia de que cada geração traz contribuições para uma mesma peça que está sendo feita artesanal e cuidadosamente. É como se cada momento histórico fosse uma pérola de um mesmo colar¹. Nessa construção coletiva, temos sempre a chance de acrescentar novas peças. A elaboração de cada novo elemento leva sempre em consideração o processo de feitura das anteriores. É como se as que primeiro foram feitas servissem como parâmetro ou padrão para a construção das novas.

O tempo é, nesse sentido, da condição do vivido, um processo dinâmico, lento e repetitivo. Não há dúvidas de que, por essa razão, o audiovisual depende crucialmente dele, do tempo, enquanto matéria-prima. A verve temporal intrínseca à condição humana é potencializada nas personagens, na montagem, nas imagens e sons dessa nossa arte.  Acima de tudo, é intensificada nas histórias de vida que alicerçam o tempo presente.

No audiovisual, um pé de mexerica pode funcionar como metáfora da forma frutífera, fértil e afetiva como experienciamos o tempo². Sob sua sombra, conseguimos revisitar afetivamente histórias que nos unem. Por fim, e por ora, diante de seus frutos, temos sempre a sensação de que as raízes que adentram o solo, firmam, sustentam e alimentam os galhos, agem como uma rede de memórias que, se não vemos, são vitais para o surgimento dos frutos que colhemos num tempo presente.     


¹Referência ao documentário Colar de Pérolas, dirigido por Micael Aquillah, que constitui a Mostra Reflexões sobre o Tempo da 2ª Semana de Projeção REC Conquista.

²Aqui, faz-se referência direta aos documentário Pé de Mexerica e Raízes de Cem Anos, dirigido por Daniel Leite Almeida, que constitui a Mostra Reflexões sobre o Tempo da 2ª Semana de Projeção REC Conquista.

*Rogério Luiz Oliveira é realizador audiovisual e pesquisador com estudos dedicados à imagem técnica. É professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. É autor do livro ‘Fotografia e Memória: a criação de passados’ (2014) e um dos organizadores da coletânea ‘Cinematografia, Expressão e Pensamento’ (2019). Sócio da Associação Brasileira de Cinematografia – ABC.

Foto de capa: Reprodução / Documentário Colar de Pérolas.

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