O músico e neto de Vó Dôla que ajudou a construir Vitória da Conquista
Por Karina Costa - 9 de maio de 2024
Quando criança, o cantor Betão auxiliava sua avó, Maria Petronilha, a quebrar pedras e transformá-las em britas, que eram vendidas para empresas da construção civil. Com o material, foram erguidas casas que compõem o centro da cidade.
Arquimedes Gonçalves Santos, mais conhecido como Betão, é um dos responsáveis pela construção do município de Vitória da Conquista. Suas mãos de criança arrancaram pedras da Serra do Periperi para que a sua avó, Dona Maria Petronilha, pudesse quebrá-las e transformá-las em britas. Recolhidos a partir da força de trabalho de mulheres negras, os pedregulhos eram vendidos para empresas da construção civil a “preço de banana”. Com o material, foram erguidas casas que compõem o centro da cidade.
É por causa do papel fundamental na formação da terceira maior cidade da Bahia que o lugar de onde Betão vem merece respeito. Foi na Rua das Pedrinhas, no Beco de Vó Dôla, que ele cresceu rodeado pelas tradições e sabedorias dos seus ancestrais. O local é a principal referência geográfica da Comunidade de Vó Dôla, primeiro quilombo urbano de Vitória da Conquista. Mais do que um espaço físico, o território é símbolo de resistência e religiosidade, além de berço da arte e da cultura popular.
Foi no quilombo, na casa onde funciona o Terreiro de Xangô e a Biblioteca Comunitária Kilombeco, que Betão nos contou sobre as memórias da infância e o legado da matriarca da família, Vó Dôla (Maria Petronilha), falecida no ano de 2006. “Eu arrancava as pedras com um cavador. Ficava que nem tatu. Aí minha vó pegava uma peça de madeira, botava uma borracha ao redor, enchia de pedra e quebrava”, relembra. “Era para cada prefeito ter um olhar diferente para cá porque essa população trabalhou para ajudar na construção de Vitória da Conquista”, complementa.
A contribuição do quilombo urbano para o município não se limita à força física empenhada nos trabalhos manuais. A cultura conquistense fica mais rica com a arte que vem da Rua das Pedrinhas. Betão se dedica a levar a história do seu povo para onde quer que vá através da música. Trabalha como cantor e instrumentista. “Eu já cheguei em cidades para cantar e me apresentaram como alguém de Salvador. Aí eu digo: nada disso, sou de Vitória da Conquista e mais, do bairro Pedrinhas, Beco de Dôla. Ou fala de onde eu sou ou não toco”, destaca.
O racismo religioso
A música está no DNA dos descendentes de Vó Dôla. Assim como Betão, sua irmã Edineide, apelidada de Kota, é cantora. Ela coordena o Grupo Samba de Roda Negras do Beco de Vó Dôla. O terceiro irmão, Roque Antônio, é percussionista e responsável pela banda Marujada Mirim, composta por crianças e adolescentes da Rua das Pedrinhas. Os três são filhos de Dona Zita e seguem os sábios conselhos do marujo Seu Martim Parangolá, também chamado de Seu Martim Pescador, principal entidade do Terreiro de Xangô.
Foi Seu Martim quem sugeriu o nome do grupo que, atualmente, Arquimedes lidera. Após ouvir o conselho, ficou decidido que o quarteto se chamaria Betão e Banda. Com sua voz, ele percorre cidades em diferentes estados do país. Além da rotina de shows, atua no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) como educador social, cursa Educação Física no modelo de Ensino à Distância (EAD) e pratica capoeira.
Ao longo dos anos, seu nome passou a ser conhecido e respeitado na cidade. Mas apesar do sucesso, ele nunca esquece do lugar de onde veio e do racismo que o seu povo sempre teve que enfrentar. “Aqui é Rua das Pedrinhas, mas sabe por que alguns chamam de Cruzeiro? Por conta do preconceito. Quando as pessoas iam procurar trabalho, não podiam falar que moravam aqui porque a visão era que todo mundo era bandido, ladrão. Aí inventaram Travessa do Cruzeiro e outros nomes”, explica Betão.
Para o músico, com o passar do tempo, o preconceito em relação à comunidade diminuiu, mas não acabou. Durante nossa conversa, sua irmã relatou que crianças do quilombo de Vó Dôla são vítimas de racismo e intolerância religiosa em instituições de ensino do município. As violências partem não apenas de alunos, mas também de professores. “Nós ainda passamos por esse tipo de coisa que machuca a gente”, afirma Kota.
Durante o exercício da sua profissão, Betão também vivencia o racismo religioso. Certa vez, quando foi ministrar uma aula de capoeira em um colégio da cidade, levou seu atabaque, instrumento de percussão tocado em rituais religiosos afrobrasileiros. Não deu outra. Ouviu comentários preconceituosos da diretora da instituição. “Eu disse: a senhora deveria se informar mais e voltar para a escola porque não tem conhecimento nenhum da cultura afro”, conta. Depois do ocorrido, ele não retornou ao espaço.
A situação ocorreu há mais de 20 anos. Se isso acontece hoje, a reação do músico seria muito diferente. “Eu não tinha conhecimento para ir atrás dos meus direitos. Mas nos dias atuais uma criança sabe. No CRAS, a gente sempre orienta os mais jovens sobre isso. Se alguém vier bater de frente, vamos colocar a pessoa no lugar dela e, se continuar, vamos levar para um processo judicial”, ressalta.
Memória e legado
Com Vó Dôla, Dona Zita, Kota e tantas outras mulheres da Rua das Pedrinhas, o cantor aprendeu a ter orgulho das suas origens e a defender os seus. Na comunidade, são as lideranças femininas que estão à frente da luta pelos direitos dos remanescentes de quilombos. Betão reconhece isso e reverencia aquelas que organizam as demandas do beco, a exemplo de sua prima Laiz Gonçalves, articuladora social e coordenadora da Biblioteca Comunitária Kilombeco, que atende crianças do território com reforço escolar e outras atividades.
Outro elemento essencial na sua trajetória é a religiosidade, especialmente representada pela figura do marujo Seu Martim Parangolá. Foi ele quem impulsionou o músico a criar sua própria banda, após experiências negativas como integrante de outros grupos. “Ele me disse que eu só estava trabalhando para enricar quem já era rico. Eu ouvi e passei a ser o meu próprio empresário”, conta.
Para Betão, nada teria acontecido na sua vida se não fosse pela família e os seus ancestrais. “Tenho muito o que agradecer a esse beco, aos conhecimentos deixados pelo marujo, por minha vó, por Mãe Fátima, que era mãe de Laiz e me criou. Tudo o que eu sou e faço, é pensando nos ensinamentos deles”, finaliza.
Foto de capa: Afonso Ribas.
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