Artigo | Suíça Baiana: o que há por trás dessa “bem-sucedida” propaganda empresarial?

Por - 20 de dezembro de 2023

Tudo estaria perfeitamente certo se não fosse a natureza racista dessa publicidade, uma das principais razões do apagamento histórico das populações negras e originárias de Conquista.

Um respeitado ativista norte-americano de nosso tempo, Avram Noam Chomsky, intelectual libertário de tendência filosófica anarquista e com vasta publicação como linguista, disse certa vez que “a propaganda representa para a democracia aquilo que o cassetete significa para o estado totalitário”. A frase está no seu livro intitulado “Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda”.

Em matéria publicada em novembro de 1996 pela jornalista Cristina Grillo, da Folha de São Paulo, Chomsky não se define como marxista e nem como capitalista. Na entrevista concedida ao jornal, ele faz críticas às duas correntes teóricas. Sua citação que eu trouxe mais acima atende a necessidade de analisar criticamente o papel da propaganda no Estado de Direito com regime democrático ou no Estado monocrático com regime de exceção como sendo uma arma violentamente repressiva.

Peço vênia a Noam Chomsky para tomar emprestado esse entendimento para dialogar com a expressão “Suíça baiana”, como sendo uma espécie de “branqueamento linguístico”. Me parece que essa expressão se tornou um eficiente marketing viral em nossa sociedade democrática conquistense.

Obviamente, a principal razão de uma propaganda nessa sociedade de consumo é a de estimular (consciente ou inconscientemente) nas pessoas a propensão ao consumo, despertando necessidades ou desejos. Em uma economia de mercado, a propaganda explora indefinidamente a função cinestésica das palavras, inclusive, a utilização de toda e qualquer pirotécnica alegórica, mesmo que isso possa subsumir à história, à memória e à cultura de uma civilização não ocidental, como por exemplo, da África, berço da humanidade.

Se é verdade (ou não) que a “propaganda é a alma do negócio”, no sentido da comunicação persuasiva e invasiva, podemos dizer que, no caso da “Suíça baiana”, essa alma é inegavelmente branca e pertencente à classe dominante. Essa propaganda é empregada aqui para alavancar as vendas de produtos e serviços de um determinado segmento. Inicialmente, sem qualquer análise crítica do discurso, não há nada de “errado” nisso.

Contudo, ao examinar mais categoricamente, percebe-se que determinadas propagandas são questionáveis pelo seu teor sutilmente desumanizante, criminalizante e excludente porque se apoiam apenas na superficialidade e em uma suposta originalidade que decorre da “imaginação” criativa do sujeito empresarial capitalista do mundo publicitário.

No jargão publicitário, uma propaganda atinge exitosamente a sua finalidade quando aplica criteriosamente as regras de “briefing” para linkar determinada peça publicitária à dinâmica da “realidade”, visando transformá-la na “verdade” vivenciada por um determinado público. Isso exige uma categorização dessas informações para que seja aplicada de maneira eficiente na elaboração da campanha.

Nesse sentido, a expressão “suíça baiana” é um briefing, cunhado por algum publicitário que acertou em cheio a veia da aorta que alimenta o fluxo de capitais baseado nos interesses dos investidores capitalistas que operam nessas estruturas de mercado. Em vista disso, pode-se considerar como um “case” de sucesso para os investidores em detrimento do trágico apagamento (história, memória e cultura) das populações negras e dos povos originários.

Tudo estaria perfeitamente certo se não fosse a natureza racista dessa publicidade, principal razão desse apagamento. Uma contradição intrínseca ao modo de produção capitalista e à sua ordem civil liberal burguesa, portanto, insuperável nos marcos do capitalismo. Provavelmente, essa propaganda publicitária “inocente” vem se tornando uma ideia-força recorrente entre os (as) baianas por explorar tão somente o aspecto climático (frio?). Por isso, vem ganhando aderência suficiente da população conquistense por supor que esse impulso publicitário esteja destituído de qualquer juízo de valor, principalmente de preconceito (classe, raça e gênero).

Embora o senso comum não dê conta de compreender a essencialidade da questão, para além da dimensão climática, elemento impulsionador da lucratividade mercadológica, a lógica de apagamento e de branqueamento é subsumido pela ênfase na supervalorização de uma cidade avançada com ares de moderna, civilizada, economicamente estável e socialmente pujante. Isso não é totalmente uma mentira porque uma ínfima parcela da população realmente desfruta dessa condição material, intelectual e cultural. Portanto, trata-se de uma realidade invertida, uma meia verdade porque esconde a totalidade das contradições que englobam o conjunto da população.

Essa dimensão propagandista de mercado mistifica e camufla os problemas estruturais críticos de seus/suas munícipes pela sua grandeza socioeconômica, cultural e política da cidade. Isso ocorre não apenas com o apagamento da história, memória e da cultura das populações que descendem dos povos originários do próprio Brasil e da África, mas também de todas as contradições inerentes ao sistema capitalista, que afetam exclusivamente essas populações que não compõem esse rico e idílico cenário da “Suíça Baiana”.

Infelizmente, essa não é a realidade objetiva/subjetiva de Vitória da Conquista, pelo menos nos rincões enegrecidos e pauperizados da periferia, do campo e das dezenas de quilombos conquistenses, no qual se insere a publicidade “Suíça Baiana” de apagamento e branqueamento. 

A verdade é que, à medida em que os cursos de publicidade mais conceituados (pelo mercado?) do país começaram a se aproximar e se orientar pela rica produção acadêmica das ciências sociais e humanas, há sinais de algumas mudanças, mesmo que incipientes. Contrariando o bureau publicitário que continua expressando os interesses socioeconômicos capitalistas, essa aproximação sinaliza para divergência das publicidades voltadas estritamente para impulsionar o consumo de mercado.

Percebe-se que parte dessas agencias (menores?) vem descontinuando a validade do curso da tese da classe dominante que avalia como “natural ou normal” alguns processos (disruptivos) de exploração, expropriação e opressão (classe, raça e gênero).  Essa é a tese que orienta o mainstream da propaganda de grandes empresas privadas (de capital nacional ou multinacional) no Brasil, a exemplo do crescimento relativamente lento das últimas campanhas publicitárias que têm se ocupado com questões sociais e ambientais.

No caso de Vitória da Conquista, não existe nenhum sinal de que essa publicidade extrapole a condição de agregar valor aos negócios privados do setor de entretenimento, imobiliário, educação e saúde, quando se associa o município à expressão “Suíça Baiana”. Afinal, quem da classe média branca não gostaria de respirar os ares civilizados e desfrutar dos privilégios materiais, intelectuais e culturais do melhor dos mundos: a Suíça.

O publicitário que a criou essa expressão “Suíça Baiana” merece receber um prêmio das empresas capitalistas pela criação dessa exitosa peça publicitária, mas também a acidez da crítica da militância do Movimento Negro que o acusa de promover o branqueamento linguístico com finalidade de eugenia social. Não necessariamente pela originalidade, mas por pincelar, em pleno século 21, mais uma densa camada de senso comum, reforçando o verniz das teses cientificistas de “branqueamento e mestiçagem”, já existente no Brasil desde a última quadra do século 19.

As questões multidimensionais escondidas propositalmente pela publicidade “Suíça Baiana” serão abordadas aqui a partir do diálogo crítico com as ciências sociais e humanas. Portanto, a abordagem sócio-histórica evidenciará o quão irresponsável o é quando não se tem nenhum respeito à Memória e Cultura de um povo historicamente explorado e oprimido.

De outra maneira, também o é verdadeiro afirmar que os brancos são poderosos detentores de capitais (empresas capitalistas) e implacáveis controladores (burguesia) dos espaços do poder (Estado) e se comprazem com os seus ideólogos por suas supostas teorias liberais de caráter cientificista que corrompem as cenas dos acontecimentos históricos e seus registros sobre a resistência e as lutas incessantes dessas populações marginalizadas em qualquer processo sócio-histórico.

Ao reescrever, apaga-se ao bel prazer do “vencedor”, as contradições, as mazelas e a história de luta e resistência de um povo. Isso inclui atender não somente aos interesses socioeconômicos capitalistas da classe dominante, mas também dos privilégios da classe média branca, principalmente, de elitizar o consumo de produtos e serviços.

Nesse sentido, agem inescrupulosamente e sem o menor receio de questionamentos das ciências sociais e humanas acerca das destrutíveis consequências desse apagamento da população negra marginalizada no campo, quilombos e nas periferias. Visto por esse prisma tresloucado, realmente o delírio dessa gente branca elitizada metamorfoseia Vitória da Conquista numa “Suíça Baiana”. Talvez, a cidade deva ser bem parecida mesmo com Berna, ou quem sabe com Zurique.

Esse mais recente agenciamento dos brancos insatisfeitos tem a ver com o crescimento da pertença étnico-racial afrodescendente e de povos originários, principalmente essa gente oriunda de setores de classe média e capitalistas (detentores e reprodutores de capital) que aportam seus capitais em Vitória da Conquista. É uma treta antiga com verniz de atualidade que o Movimento Negro sempre enfrentou com resistência, luta e aquilombamento.

O branqueamento de uma Vitória da Conquista enegrecida é a manutenção do racismo em sua versão mais agressiva, exercido de maneira desrespeitosa para com o acúmulo de pesquisas e publicações que explicam esse comportamento no processo histórico.  Aliás, age como se fosse possível transformá-la em uma cidade etnicamente branca, algo impossível porque é absolutamente estranho à sua própria construção sócio-histórica.

A saber, Vitória da Conquista, segundo a historiadora Maria Aparecida Silva de Sousa em sua obra “A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia” (2001), é uma cidade que resulta da sanguinária ocupação portuguesa no século 18, sob a égide da bandeira do preto forro português João Gonçalves da Costa. O Arraial da Conquista se ergue nas sombras do perverso e sanguinolento senhor traficante de humanos africanos escravizados, dizimador impiedoso de povos originários que habitavam essa cercania.

E o faz sob ordens imperiais expressas da Coroa Portuguesa e a benção da Igreja Católica Apostólica Romana para exterminar pessoas, explorar mão de obra escravagista, expropriar terras e realizar extração de riquezas minerais (ouro e prata basicamente) de povos originários (Mongoyó, Ymboré e Pataxó).

Para quem mora no bairro Santa Cruz, Jardim Valeria, Alegria, Patagônia, Kadija, Conveima I e II, nos 32 quilombos ou qualquer outro bairro da periferia de Vitória da Conquista, pode até não conhecer o padrão suíço, mas sabe exatamente que não existe a menor semelhança desse lugar paradisíaco com a periferia conquistense.

Uma tese com base no elevado padrão de vida material e intelectual (oriundo da exploração de mão de obra desde o período escravagista) vivenciado pelas áreas nobres da cidade insinue essa possibilidade. Contudo, ao menor aceno dessa gente branca, logo se revela o comportamento racista e incivilizado que destrói totalmente essa tentativa de afirmar a existência dessa “semelhança”. 

A Confederação Suíça é um país densamente habitado por 8,7 milhões de habitantes, situado na região central da Europa, reconhecido como um dos países mais desenvolvidos do mundo porque apresenta os maiores indicadores de qualidade de vida do planeta. Seu modo de produção capitalista se concentra no setor de serviços. Seu setor terciário responde por 73,7% da economia e a indústria é responsável por 25,6% do PIB (Produto Interno Bruto) do país.

A Suíça é dona de uma das economias mais prósperas da Europa, se tornou pujante e estável coletivamente, com níveis produtivos avançados baseando numa ciência e tecnologia liberal moderna. É um país que possui baixa taxa de crescimento populacional (0,65% ao ano), crescimento vegetativo positivo e não apenas a expectativa de vida é alta, mas, habitualmente se chega aos 83 anos com qualidade de vida.

Tem-se notícia dos primeiros assentamentos do que viria a ser o atual território da Suíça há aproximadamente 11 mil anos. Essa história, memória e cultura se mantem preservada e nenhuma pessoa da Suíça pretende esquecê-la por meio do apagamento. Aliás, mantém todas as pesquisas e registros arqueológicos que confirmam que essa região central da Europa começou a ser povoada pelos seus ancestrais há centenas de milhares de anos. Esteve sob o domínio do Império Romano em sua fase de expansão territorial durante sete séculos que finda no século 3 a.C.

Esse período é marcado pelo crescimento econômico de muitas cidades, puxado por centros administrativos e as rotas comerciais que conectava a Suíça ao Império Romano. As línguas oficiais são o alemão, o francês e o italiano, o que decorre da intensa migração de povos germânicos com a queda do domínio romano trazendo um aporte cultural e filosófico que torna a Suíça um país referenciado como centro-europeu.

Não existe qualquer semelhança entre a Suíça descrita acima e a atual cidade Vitória da Conquista, cercada pelo cinturão de pobreza, desemprego, fome, miséria, déficit habitacional, péssima qualidade do portfólio de serviços públicos, múltiplas violências e extermínio a juventude negra. A única explicação possível para querer sistematicamente ressignificar o caráter sociocultural predominante da cidade enegrecida a partir do discurso atravessado pelo branqueamento linguístico são os interesses capitalistas da classe dominante e o consumo elitizado da classe média branca.

A quem serve essa construção ideológica de “Suíça Baiana” senão àquelas pessoas brancas com a cara pálida de Shopping Boulevard? Considerando o poder aquisitivo muito acima da média da população pauperizada do município com acesso regular ao consumo de produtos e serviços mais caros (refinados?). Normalmente, a base da pirâmide confinada na periferia enegrecida da cidade não acessa. Essa gente branca jamais quis morar em uma cidade colonizada pelo preto foro e referenciada e socioculturalmente enegrecida pela presença de afrodescendentes e de povos originários.

Está imputada nessa propaganda um constructo mental branco liberal conservador de apagamento racista da presença e da memória cultural ancestrálica de resistência negra e de povos originários desde o longínquo período da luta contra à ocupação portuguesa no “Sertão da Ressaca”. Foi essa gente branca (classe dominante e classe média) que sempre esteve por trás dessa construção social de eliminação sumária da periferia enegrecida de Vitória da Conquista. Sempre houve esse interesse de promover de diversas formas o apagão das inúmeras contribuições econômicas, sociais, culturais e políticas dessas populações negras e de povos originários no processo de formação e desenvolvimento da sociedade conquistense.


*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do Blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

Foto de capa: Secom / PMVC.

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3 respostas para “Artigo | Suíça Baiana: o que há por trás dessa “bem-sucedida” propaganda empresarial?”

  1. Natanael Oliveira do Carmo disse:

    É sempre uma experiência enriquecedora ler um artigo de Herberson Sonkha, claros, incisivos e pertinentes. Parabéns ao Conquista Repórter.

  2. Oliveira Adão Miguel disse:

    Parabéns pelo seu trabalho, Grande Sonkha

  3. Vinícius... disse:

    O amigo Sonkha repete neste a qualidade inequívoca de seus textos / argumentos histórica e socialmente embasados numa visão crítica e lapidação ímpar na qualidade de seus fundamentos.
    Parabéns pelo texto amigo. Uma reflexão e aprendizado sociohistórico indispensável…

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