Artigo | Por uma política de preservação do patrimônio cultural conquistense

Por - 17 de novembro de 2022

Ao longo das últimas décadas, assistimos à destruição de muitos bens arquitetônicos de Conquista em prol de modernizações que pouco agregaram à paisagem urbana da cidade.

Ao descrever os aspectos físicos e sociais da ocupação inicial do Arraial da Conquista e da sua evolução urbana, Mozart Tanajura, em seu livro “História de Conquista: crônica de uma cidade”, detalha aspectos muito comuns aos de outras vilas e cidades do período colonial: casas térreas em sua maioria, com paredes feita em taipa ou adobe; presença da Igreja Matriz na principal praça da cidade; desenvolvimento do tecido urbano por meio de um arruamento irregular; bem como a presença apenas esporádica dos fazendeiros na vila.

Adicione-se a isso a modernização de tais residências ao longo do século 19, que recebiam platibandas e ornamentos diversos; a crescente presença de edificações comerciais na paisagem urbana, com sua sequência de portas que denotam o crescimento da própria atividade comercial; e a forma como todas essas edificações eram implantadas, alinhadas às laterais e à testada dos lotes, promovendo-se o contínuo alinhamento das edificações, ainda hoje notado nos centros históricos brasileiros que sobreviveram à sanha demolidora de alguns.

O crescimento exponencial de Vitória da Conquista a partir de meados do século 20, contudo, encontrou uma cidade despreparada para lidar com os problemas daí decorrentes, promovendo-se uma intensa transformação urbana. Esse crescimento se deu, em grande medida, pela consolidação da cafeicultura enquanto uma atividade econômica de peso no município.

Na década de 1970, as políticas do Instituto Brasileiro do Café (IBC) e os recursos do Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agro-Indústria do Norte e do Nordeste (Proterra) contribuíram sobremaneira para a expansão das lavouras de café no interior da Bahia, não somente na região do Planalto da Conquista, mas também na Chapada Diamantina.

No caso dessa última região, entretanto, se suas principais cidades também não estavam necessariamente preparadas para as consequências de um intenso crescimento, pelo menos contaram com importantes ações de preservação do seu patrimônio, possibilitando que chegassem até nós vestígios importantes da sociedade baiana do século XIX, em específico daquela que se desenvolveu em torno da mineração de ouro e diamante.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) instaurou o processo para tombamento de Lençóis em 1971, concluindo-o em 1973, enquanto o de Rio de Contas, iniciado em 1973, foi concluído em 1980. O caso de Mucugê é ainda mais significativo porque a solicitação para que o conjunto fosse tombado surgiu justamente em decorrência da ameaça de demolição de dois imóveis por parte do Banco do Brasil, que chegava à cidade vislumbrando o potencial econômico da cafeicultura e dos demais empreendimentos agroindustriais que se instalavam ali. As discussões para sua patrimonialização tiveram início em 1977, efetivando-se o tombamento também em 1980.

O patrimônio conquistense não teve o mesmo destino. Ao longo das últimas décadas do século XX, assistimos à destruição de muitos dos nossos bens arquitetônicos mais antigos em prol de modernizações que pouco ou quase nada agregaram à paisagem urbana e à cidade como um todo. Isso não quer dizer, contudo, que o discurso da preservação estivesse completamente ausente do debate público.

A Casa da Cultura, fundada na década de 1970, nos parece ter se constituído no principal difusor do debate cultural naqueles anos e, desde maio de 1993, Vitória da Conquista passou a contar com uma legislação específica para tratar da preservação do patrimônio municipal: a Lei nº 707/93, sancionada pelo então prefeito José Fernandes Pedral Sampaio. Diz o seu Art. 1º:

“O Município de Vitória da Conquista procederá, na forma desta Lei, ao tombamento total ou parcial de bens móveis e imóveis, de propriedade pública ou particular, existentes no seu território, cujo valor cultural, histórico, artístico, arquitetônico, documental, bibliográfico, urbanístico, ecológico ou hídrico merecem proteção do Poder Público”.

Define, na sequência, que constituem o patrimônio histórico, artístico, paisagístico e cultural do município “as construções e obras de arte de valor ou qualidade estética, principalmente representativas de determinada época ou estilo; as edificações, monumentos e documentos quando vinculados a fato representativo da história local ou ligado a pessoa de excepcional notoriedade; os monumentos naturais, sítios e paisagens”.

Em 1996, os primeiros bens culturais foram então tombados: a casa do ex-governador Régis Pacheco, que hoje abriga o Memorial Régis Pacheco, a Serra do Periperi e a Lagoa das Bateias. Já em 2000, na gestão do ex-prefeito Guilherme Menezes, foi tombada a sede da Rádio Clube. Não buscamos aqui discutir a atualidade do texto e da sua concepção de patrimônio, mas sim o fato de que há quase trinta anos possuímos um dispositivo para tratar do patrimônio local.

Ao longo dessas quase três décadas não chegou a se constituir, entretanto, uma verdadeira política de preservação do patrimônio cultural da cidade, enquanto as transformações urbanas caminharam em ritmo cada vez mais acelerado. Embora os tombamentos tenham sido realizados por decreto do Poder Executivo, pressupõe-se a existência de um departamento vinculado à Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sectel) para executar uma politica de preservação.

Isso consistiria, dentre outras coisas, na elaboração de pesquisas de identificação para seleção dos bens culturais; no desenvolvimento de estudos para atribuição de valor a esses bens, bem como em sua gestão; além da realização de uma série de iniciativas para promoção e valorização do patrimônio. Um departamento composto por uma equipe multidisciplinar (com a presença de arquitetos e urbanistas), cujo papel seria também o de dar suporte técnico ao Conselho Municipal de Cultura – instância deliberativa acerca dos processos de patrimonialização.

Em 2016, o Ministério Público, por meio da Recomendação 03/2016, pediu providências à Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC) quanto à preservação do patrimônio cultural, destacando a inexistência de informações atualizadas sobre a questão e destacando o valor de diversos bens arquitetônicos que até hoje se encontram legalmente desprotegidos. Embora o município tenha regulamentado a Lei nº 707/93 por meio do Decreto nº 18.918/2018 e criado, em 2019, o Núcleo de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Município, no âmbito da Sectel, não se tem noticia sobre a efetiva atuação desse departamento.

Enquanto isso, acumulam-se as notícias de depredações e demolições de imóveis de interesse histórico e cultural, tornando extremamente atual uma mensagem que o ex-presidente da Casa da Cultura, Carlos Jehovah, escreveu, em outubro de 1993, em um ofício encaminhado ao então prefeito solicitando o tombamento da casa do ex-governador Régis Pacheco: “Mais um atentado à memória de Vitória da Conquista deverá acontecer, ao ritmo dos martelos e alavancas dos demolidores da história, em nome de um nefasto progresso”.

Somente neste último mês de outubro foi noticiada em veículos de comunicação locais a demolição de dois imóveis, localizados na Rua 2 de Julho e na Praça Tancredo Neves. Mas, para além da comoção que tais notícias possam despertar na comunidade conquistense, é preciso destacar que o apagamento silencioso de outros bens e manifestações culturais, não necessariamente de interesse arquitetônico, também fazem parte do cotidiano da cidade.

Não há, por exemplo, ações significativas para a salvaguarda da memória e da cultura indígena, sobrevivente em seus descendentes, que são bens culturais de natureza imaterial de suma importância para a formação cultural conquistense e que necessitam de medidas de apoio para sua documentação, valorização e transmissão. Cito, a título de exemplo, o trabalho com barro desenvolvido pelos indígenas paneleiros-mongoiós. Aí se inserem também os bens da cultura afro-brasileira.

No balanço da gestão que esteve à frente do Conselho Municipal de Cultura entre 2019-2021, publicado no Avoador, menciona-se a realização do primeiro dossiê para tombamento de um terreiro de candomblé, o que corresponde a um avanço duplo: a realização de um estudo prévio ao invés do tombamento de ofício e a seleção de um bem ligado às religiões de matriz africana. Contudo, nem são claras as informações a respeito da consumação do tombamento, nem existe, enquanto o Núcleo de Preservação não receber atenção e recursos do Poder Público municipal, a estrutura necessária para fazer a gestão de um bem cultural dessa natureza, que demanda ações específicas e um olhar cuidadoso a respeito dos valores culturais que devem ser salvaguardados.

Por fim, é imperativo frisar que as ações de preservação ao alcance do município não dependem dos órgãos de preservação estadual ou federal, podendo o Poder Público municipal ser protagonista na preservação do seu patrimônio cultural material e imaterial. Para isso, urge a necessidade de transparência quanto às ações empreendidas e à própria efetivação do Núcleo de Preservação enquanto instância executora de uma verdadeira política de preservação, que encare o ato do tombamento não como o fim em si, mas como uma dentre tantas outras medidas de proteção e valorização dos nossos bens culturais. Quem sabe assim não tenhamos mais que lamentar e sofrer com o constante apagamento de elementos da nossa memória coletiva.

*Foto de capa: Fellipe Decrescenzo.

*Fellipe Decrescenzo é arquiteto e urbanista. Possui mestrado em Conservação e Restauro pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPG-AU/UFBA). Faz parte dos grupos de pesquisa “Arquitetura Popular: espaços e saberes”, e do “Projeto, Cidade e Memória”. Além disso, atua como docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR).

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