Artigo | Por que a prefeita fugiu do 29º Grito dos Excluídos?

Por - 12 de setembro de 2023

Manifestação ocorreu durante o desfile cívico do 7 de Setembro, em Vitória da Conquista. Mas em vez de ouvir o clamor dos que precisam, Sheila Lemos fugiu às pressas de seus próprios deveres.

A louvável iniciativa da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em organizar o primeiro Grito dos Excluídos, em 1994, com a temática “A fraternidade e os excluídos”, não foi apenas apropriada àquela conjuntura. Continua sendo necessária no atual momento. Quase 30 anos depois, a 29ª edição do movimento trouxe como tema “Você tem fome e sede de quê?”.

Em Vitória da Conquista, ele foi realizado pelo Conselho de Leigos Regional Nordeste (CNLB) e pelo Fórum Sindical e Popular (FSP). Ocorreu durante o desfile do 7 de setembro. Este ano, a manifestação parece ter causado um comichão no mundo bolsonarista de faz-de-conta da prefeita do município, Sheila Lemos. A gestora saiu de maneira repentina do evento antes mesmo que o Grito dos Excluídos chegasse próximo ao palanque montado na Rio-Bahia para as autoridades públicas e outros convidados.

Quando os participantes se aproximaram e perceberam o seu desespero para não ouvir o clamor do Grito, tamanha demonstração de indiferença e falta de empatia com quem luta contra as dificuldades da população conquistense não poderia passar despercebida. Inconformados, imediatamente os manifestantes começaram a gritar “prefeita fujona”.

A fuga nunca foi a melhor saída política para uma pessoa que ocupa tal posição de poder porque é uma característica simplesmente inadequada ao cargo. Isso chega a ser uma negligência para com as suas responsabilidades e tem implicações seríssimas. Ao invés de ouvir o clamor dos que precisam, Sheila Lemos fugiu às pressas de seus próprios deveres.

Talvez algum açodado(a) mau-caráter resolva fazer um discurso sabujo ou bajulador alegando desonestamente que chamar Lemos de ‘prefeita fujona’ é um ataque machista e misógino à primeira mulher a ocupar o cargo de gestora municipal, historicamente ocupado pelos homens.

Peço vênia as mulheres, pois vale ressaltar que, contraditoriamente, essa senhora deixou evidente a sua vinculação à pauta de extrema-direita de verve fascista bolsonarista nas duas últimas eleições (2018 e 2022). Isso, por si só, já não lhe atribui qualquer credibilidade como feminista liberal ou alguém que efetivamente tenha participado e defendido o movimento de mulheres na cidade.

A destrutível ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil deixou tudo bem explicado sobre ser de esquerda ou ser de direita em nosso país. Só para refrescar a memória sociopolítica, cito duas personagens recentes da política brasileira que mostram que ter nascido preto (retinto ou pardo) não lhe faz um antirracista. Igualmente, ter nascido mulher não lhe torna uma pessoa antipatriarcal que combate o machismo e a misoginia.

São bons exemplos dessa contradição liberal burguesa capitalista o ex-dirigente fascista da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, e a ex-ministra do governo Bolsonaro, Damares Alves. A atual gestora de Vitória da Conquista segue linha parecida.

A luta política das mulheres do município por conquistas socioeconômicas, culturais e políticas vem de muito longe e praticamente não há contribuição de qualquer vertente partidária do feminismo liberal de influência estadunidense, diferentemente das instituições orgânicas feministas de mulheres socialistas e comunistas que já existem há décadas na cidade e sempre encamparam lutas imprescindíveis para o avanço de pautas sociais e políticas importantes para a igualdade de gênero.

Ao apoiar atitudes fascistas e defender o programa de governo de um de candidato da extrema-direita como Jair Bolsonaro, Sheila Lemos fez apologia por extensão à violência de gênero no Brasil. Ela apoiou a campanha eleitoral de um homem responsável por discursos nojentos que incitam ações violentas contras as mulheres, como o estupro.

Sem participação efetiva no movimento de mulheres, a prefeita nunca quis pautar a questão de gênero, de empoderamento e da emancipação da população feminina na sociedade contemporânea. A bolha bolsonarista conservadora em que ela vive ignora todas as lutas importantes travadas nas ruas ou nos espaços de poder contra opressores machistas-misóginos e a racionalidade do perverso sistema explorador de mulheres.

A pauta feminista não visa apenas a busca exclusiva por equidade, respeito e inclusão cultural, intelectual e profissional das mulheres nas estruturas de poder (público e privado) como propõem as feministas liberais. Busca também a emancipação da mulher com lutas incessantes das mulheres feministas (socialistas/comunistas), combatendo sistematicamente a estrutura do patriarcado (machista, misógino e feminicida) reforçado exponencialmente pelo sistema capitalista.

Vale destacar ainda que as mulheres negras são muito mais violentadas, exploradas, excluídas e marginalizadas diante do racismo estrutural responsável por um sistema de escravidão moderna de natureza étnico-racial cujas mazelas ainda não foram minimamente superadas pela sociedade burguesa contemporânea. Por isso, não se pode falar em independência do Brasil.

Com a crescente democratização do conhecimento e da informação por meio do acesso ao ensino superior no Brasil, poucos ainda ousam afirmar nos dias atuais que houve há dois séculos um “grito de liberdade” que proporcionou ao Brasil essa tal independência. Esse grito às margens do Rio Ipiranga, na cidade de São Paulo, dado por um monarca, não significou coisa alguma.

Depois de todos esses anos ainda estamos muito longe de alcançar a autonomia político-administrativa frente aos interesses imperialistas dos Estados Unidos ou de qualquer outro país capitalista rico. Não houve ainda um crescimento socioeconômico realmente sólido com a distribuição de renda às camadas baixas – urbanas e campesinas. Esse desenvolvimento tecnológico do parque industrial não possibilitou a criação e o acesso amplo às Instituições de Ensino Superior com a implantação de universidades públicas em todo país com incentivo e financiamento de pesquisa científica em todos os campos do conhecimento.

A formação do mercado de trabalho livre ainda não tem musculatura suficiente para ampliar a oferta de empregos e aumentar salários, pois o que prevalece é uma massa de desempregados (exército de reserva) ainda muito considerável, além de uma pequena parcela de “mão de obra” com baixo valor agregado e baixos salários, sem contar os altos índices de trabalho informal. Não existe soberania para um país com esse perfil de modo que promova a efetiva independência do povo brasileiro.

Diferente do Grito dos Excluídos, o episódio do grito da monarquia lusitana totalmente fora de propósito (se não fosse trágico, seria cômico) não passou de blefe em formato de comedia de péssimo gosto. Talvez, com muito esforço intelectual, ócio criativo e a autorização da historiografia contemporânea (em particular o historiador Nelson Werneck Sodré), pudéssemos considerar esse episódio truanesco da cena política brasileira como sendo o primeiro stand-up comedy na América oitocentista.

Esse goelar lusitano (politicamente rouco e afônico) do monarquista Pedro de Alcântara durante o Primeiro Reinado no final de século XIX tem relação com o modelo de Estado anacrônico pressionado pela revolução burguesa francesa (1789) e o fim do ciclo da primeira revolução industrial inglesa (1760 e 1840) na Europa que incide sobre a mundialização crescente dos mercados capitalistas.

Não deixa de ser um reflexo da conjuntura internacional capitalista do final da primeira revolução industrial, marcada por tensões econômicas mundiais entre impérios e suas respectivas colônias. O acirramento de conflito de interesses socioeconômicos, sob a égide do imperialismo britânico que proibia o comércio de seres humanos africanos na rota do atlântico travava o desenvolvimento do trabalho livre, mas também a disputa pelo controle comercial dos portos brasileiros.

Diferente da França, o Brasil não realizou sua revolução liberal burguesa para se livrar definitivamente da herança escravagista e das tralhas estruturais do sistema monárquico absolutista lusitano. A Coroa Portuguesa fez exatamente o que o acordo britânico lhe impunha de maneira lenta e gradual para evitar consequências desastrosas causadas pela beligerância inglesa.

A desconfiança e o aprofundamento da crise imperial ampliaram o abismo entre a recém-chegada família real portuguesa e seu governo imperial da maioria do país, como afirma o historiador Nelson Werneck Sodré ao dizer que “as grandes linhas do Sete de Abril começavam a definir-se”.

Coagido pelo império britânico, o anedotista D Pedro I escreveria o primeiro capitulo da comédia do grito. O tal “brado” fora dado sem disparar uma bala de canhão, sem derramar nenhum sangue pelo fio da espada do opressor. Nunca houve nenhuma intenção de transformar as estruturas de poder monárquico do império português no Brasil numa monarquia constitucional. Aliás, manteve-se o absolutismo de governo déspota com verniz de esclarecido.

A piada ensaiada várias vezes para não esquecer a frase do grito nunca teve a finalidade de mudar alguma coisa. Consequentemente, não houve absolutamente nada de novo na vida social, econômica, cultural e política do Brasil, sobretudo para as populações trazidas da África como escravas e os povos originários.

Duzentos anos depois, a população de Vitória da Conquista e de todo o Brasil continua sem ser escutada e gritando desesperadamente na porta de hospitais por saúde; nas escolas e creches por educação; na porta das empresas por emprego; nas marquises por moradia; nas portas de restaurantes por alimentação; nos sindicatos por salários dignos; nas ruas por dignidade da pessoa humana; e por desenvolvimento social. Isso tudo explica a saída aturdida da prefeita Sheila Lemos do palanque do 7 de Setembro para não ouvir o grito de clamor político sem se comprometer em responder as mazelas bolsonaristas, receando ser vaiada publicamente.

Os votos das últimas eleições gerais do Brasil, em especial os que derrotaram Bolsonaro no poder central, não deixam de ser a retomada do grito preso na garganta dado por quem buscava independência do jugo involuntário (alguns voluntários se arrependeram) de tal governo fascista. Quase um ano depois de derrotar a gestão do Poder Executivo que ganhou força no golpismo de 2016, uma coalização da direita com a extrema-direita no país, uma parcela da população conquistense foi às ruas gritar contra os estertores herdados do bolsonarismo e contra uma gestão municipal politicamente moribunda.

Assim como a independência proclamada de D. Pedro I em 7 de setembro de 1822 foi uma vergonhosa farsa, o governo de Sheila Lemos (e dos ricos de Vitória da Conquista) também o é. Essa farsa ficou visível com a saída açodada da prefeita para não escutar o “Grito dos Excluídos” no palanque oficial, montado para juntar os bobos da corte, com o fito de justificar seus altos salários bajulando a bolsonarista durante o desfile cívico.

Lemos teve receio das vaias de populares presentes, pois ao longo do trajeto muitas pessoas manifestavam espontaneamente apoio ao ato do Grito dos Excluídos. Como toda pessoa covarde, escolheu fugir da presença da sociedade sem dizer absolutamente nada. Agiu com extremo infantilismo, típico de uma criança mimada que faz algo errado e foge desesperadamente da presença dos pais porque teme as consequências.

Foi dessa forma que a prefeita se evadiu de sua própria bolha. Deu no pé porque no fundo ela sempre soube que só existem duas maneiras para se enfrentar a verdade: mentir ou admitir os fatos. Nesse caso especifico não existem argumentos eticamente possíveis, pois a força da verdade presente no clamor do Grito dos Excluídos é imbatível e incomoda mesmo. 

O Grito dos Excluídos fará 30 anos em 2024 e já se estabeleceu como uma importante data de luta dos movimentos sociais organizados no calendário da população conquistense. Esse clamor popular se tornou o verdadeiro grito das massas oprimidas, excluídas e vulnerabilizadas pela indiferença de governos fascistas.

Desde o primeiro Grito dos Excluídos, que aconteceu em setembro de 1994, as pautas são sempre polemicas porque refuta a tal independência com fatos relevantes de caráter socioeconômico e político. Aquele grito era a antessala da derrota do pedralismo, força política recém-incorporada ao carlismo em Vitória da Conquista.

Naquele ano, Vitória da Conquista era governada pelo ex-prefeito José Pedral Sampaio, que ficou no palanque até passar o Grito dos Excluídos. Gostando ou não permaneceu no palanque, inconfundivelmente equivocado em sua malograda aliança de 1992 com o carlismo (seu antigo desafeto) que promoveu um volver à direita. Contudo, jamais se presenciou qualquer comportamento que pudesse vincular José Pedral ao fascismo.

Naquela fatídica década, o Brasil amargava os efeitos destrutíveis de um longo período de uma sanguinária e corrompida ditadura militar (1964-1985) que puxou para baixo todos os indicadores socioeconômicos do país. Um país gigantesco e populoso, sob a égide do desemprego, da corrupção, da hiperinflação, do déficit habitacional, da baixa qualidade, ineficiência e insuficiência quantitativa dos serviços públicos essenciais (Saúde, Educação Desenvolvimento Social) ofertados à população.

A Vitória da Conquista daquela década, mesmo já sendo a terceira maior cidade baiana, tinha um minúsculo orçamento municipal. Era um município atrasado e infinitamente menor do que é atualmente, com limitações iguais a qualquer outra cidade de 25 mil habitantes de hoje.

A leitura da conjuntura política naquele momento apontava para o crescimento vertiginoso do Partido dos Trabalhadores (PT) em quase todo o país, sobretudo em Conquista. Esse crescimento político (partidário, sindical e de movimentos sociais do campo e da cidade) tornaria uma ameaça não apenas ao socialdemocrata (ex-socialista?) José Pedral, mas às hostes pedralistas. Uma ilusão com a qual o prefeito José Pedral cederia à aliança, articulando-se a jactância do coronelismo bizarro do governador da Bahia, o Antônio Carlos Magalhães (ACM) com a suposta perspectiva de se conseguir investimentos, melhorais e o crescimento socioeconômico para o município.

Os governos do Partidos dos Trabalhadores (PT) nas duas décadas (1997-2017) de gestão também foram alvos de duras críticas dos movimentos sociais no ato do Grito dos Excluídos (do 4º em 1997 ao 23º em 2016) e nem por isso esses prefeitos, o médico Guilherme Menezes e o professor José Raimundo, abandonaram o palanque corridos ou ordenaram que servidores municipais com função de polícia administrativa constrangesse ou reprimisse esses atos.

29 anos depois do primeiro Grito dos Excluídos, Vitória da Conquista se assusta com algo que não condiz com o comportamento citadino dos munícipes de nossa cidade que nunca permitiu se dobrar ao carrasco coronelismo de ACM, lutou contra a perseguição persecutória de ACM, nunca permitindo que subjugasse a política municipal.

Embora nunca tenha sido votada para o cargo presenteado e que o exerça, a meu ver, da pior maneira possível, a prefeita revelou sua covardia. Suas perseguições administrativas, comportamento de péssima gastadora e as empáfias políticas define seu desastroso perfil como agente pública municipal.

O que nos faz crer que essa é a principal razão pela qual seu temerário governo sempre foi uma bagunça, um descontrole, desmando que torna Vitória da Conquista uma terra de ninguém. Por isso, o grito na garganta da população conquistense que tem fome de democracia, de liberdade expressão e de respeito se faz necessário.

*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do Blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

Foto de capa: Comissão Organizadora do Grito dos Excluídos e Excluídas de Vitória da Conquista.

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Uma resposta para “Artigo | Por que a prefeita fugiu do 29º Grito dos Excluídos?”

  1. Alicelmo Pereira disse:

    Prefeitura nunca participou do grito dos executivos
    Sim os movimentos sociais,!!! Tem nada ver Prefeitura com o grito dos executivos……

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