Artigo | A fraude da falsa identidade: quando o privilégio branco se veste de negro
Por Herberson Sonkha - 22 de agosto de 2024
Ao se autodeclararem pardos, Sheila Lemos e ACM Neto deturpam um sistema criado para reduzir as desigualdades que assolam as candidaturas de pessoas negras.

Vivemos em um país que, por séculos, estruturou suas bases sobre o racismo, marginalizando a população negra e reservando o poder e os privilégios para as elites brancas. Agora, em pleno século 21, testemunhamos uma nova forma de violência racial: a apropriação fraudulenta da identidade negra por aqueles que sempre desfrutaram do privilégio de ser branco. As recentes autodeclarações feitas por figuras como o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto (2022), e a atual prefeita de Vitória da Conquista, Sheila Lemos (2024), não são apenas um ataque ao que significa ser negro no Brasil, mas uma afronta direta à luta histórica por equidade racial.
Ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ambos se declararam pardos. ACM Neto, descendente de uma das mais tradicionais e poderosas famílias políticas da Bahia, cuja história está profundamente enraizada nos privilégios da elite branca, agora se veste de negro para captar recursos destinados à promoção da igualdade racial. E como se não bastasse, Sheila Lemos, outra figura marcada pelos privilégios de cor e classe, segue a mesma trilha de oportunismo. Ao se autodeclararem negros, essas figuras deturpam um sistema criado justamente para reduzir as profundas desigualdades que assolam as candidaturas de pessoas negras, dificultando seu acesso ao poder político e suas chances de eleição.
O ato de se apropriar de uma identidade racial não vivida é uma violência simbólica que não pode ser ignorada. Ser negro no Brasil é carregar nas costas uma história de luta, dor, resistência e sobrevivência. É conviver diariamente com o racismo, com a discriminação em espaços de trabalho, escolas, universidades, ruas e até mesmo dentro das próprias comunidades. É sentir na pele o que significa ser historicamente excluído das esferas de poder e prestígio.
Quando indivíduos brancos, que nunca sofreram com essa realidade, se autodeclaram negros para acessar recursos criados para corrigir essa desigualdade, eles não estão apenas roubando dinheiro: estão roubando a narrativa, a dor e a resistência de milhões de negros e negras que batalham diariamente para existir em uma sociedade que, muitas vezes, prefere vê-los silenciados ou invisíveis.
Essa manobra fraudulenta não é apenas um golpe eleitoral. É a perpetuação do racismo que estrutura nossa sociedade. É a prova de que o privilégio branco, quando ameaçado de perder espaço, não hesita em utilizar as mesmas ferramentas de opressão para se manter no topo. Em vez de se aliarem às causas antirracistas de forma genuína, ACM Neto e Sheila Lemos preferiram se apropriar dos poucos mecanismos de equidade conquistados pelo movimento negro, demonstrando, mais uma vez, que para as elites, a justiça social é apenas uma moeda de troca.
Diante deste cenário, cabe ao eleitor consciente, sobretudo aquele que compreende a importância da luta racial, rejeitar nas urnas essa nova forma de racismo. Cabe também à sociedade civil organizada, aos movimentos sociais e às entidades de defesa dos direitos humanos denunciarem essa fraude, exigindo das autoridades competentes investigações rigorosas e sanções exemplares.
Se permitirmos que essa fraude passe impune, estaremos não apenas legitimando a apropriação indébita de recursos destinados às populações historicamente oprimidas, mas também abrindo caminho para que outros privilégios brancos se disfarçem de negros, utilizando a dor e a luta do povo negro como uma mera estratégia eleitoral.
Essa não é apenas uma questão de ética eleitoral. É uma questão de justiça histórica. Não podemos permitir que a identidade negra, tão violentamente construída ao longo de séculos de resistência, seja vilipendiada por aqueles que, até ontem, contribuíam para a sua opressão. O Brasil precisa de um sistema eleitoral que realmente promova a equidade, e não de um que permita que a farsa racial perpetue as desigualdades que dizem combater.
Que esse momento sirva como um chamado à ação: não permitiremos que nossa luta seja apropriada por oportunistas. A história nos ensinou a resistir, e resistiremos mais uma vez.
*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do Blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.
IMPORTANTE! Contamos com seu apoio para continuar produzindo jornalismo local de qualidade no interior baiano. Doe para o Conquista Repórter através da chave PIX 77999214805. Os recursos arrecadados são utilizados, principalmente, para custos com manutenção, segurança e hospedagem do site, deslocamento para apurações, entre outras despesas operacionais. Você pode nos ajudar hoje?
Foram doações dos nossos leitores e leitoras, por exemplo, que nos ajudaram a manter o site no ar em 2023, após sofrermos um ataque hacker. Faça parte dessa corrente de solidariedade e contribua para que o nosso trabalho em defesa dos direitos humanos e da democracia no âmbito regional sobreviva e se fortaleça! Clique aqui para saber mais.