Artigo | A partir de Exu, Grande Rio abriu as passagens para se combater as mazelas racistas
Por Herberson Sonkha* - 25 de abril de 2022
Religiões de matriz africana e combate ao racismo, que fizeram parte do enredo da escola de samba durante o desfile de Carnaval do último dia 23, são temas discutidos em artigo do professor Heberson Sonkha.
O carnaval de 2022 no sudeste do país, sobretudo no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, marcou uma discussão inaugural urgentíssima sobre a necessidade de se combater os grilhões dos racismos nos setores públicos e privados, à prática de intolerância religiosa e a terrível demonização de setores judaico-cristão brasileiro ultraconservador às deidades das religiões de matriz africana, sobretudo a Exu, orixá guardião da comunicação.
Esse é um tema pouco explorado no Brasil, mas que começa a circular artigos desmistificadores em revistas, a exemplo da matéria publicada em fevereiro de 2020 na revista Super Interessante, do antropólogo Vagner da Silva que diz que Exu “é uma espécie de mensageiro, que faz a ponte entre o humano e o divino e muitas vezes é descrito como sendo travesso, fiel e justo”.
Sempre houve a necessidade de tratar essa questão com a devida seriedade científica e a punição no âmbito da justiça de práticas racistas no país. Mas atualmente essa necessidade se impõe com tanta força em função do aumento exponencial de casos de racismos praticados por ativistas de extrema-direita em redes sociais e em todos os espaços da sociedade. São recorrentes os ataques virulentos à integridade física de membros da comunidade negra brasileira, aos terreiros e aos integrantes de candomblé e da umbanda.
Tudo isso após a ascensão de grupos extremistas minoritários a partir de 2014, notadamente comportamentos fascistas desses adeptos da extrema-direita no Brasil, que passaram a se organizar partidariamente para dominar a cena sociopolítica das pequenas, médias e grandes cidades das regiões sul-sudeste do país. Não se pode ignorar o fato de que essas regiões não só apoiaram esses comportamentos fascistas como deram a maior expressão de votos ao projeto eleitoral do grupo, liderado pelo ex-deputado apoiador da tortura e de torturadores, o néscio Jair Messias Bolsonaro.
É nessa conjuntura de retrocessos, estendida pelo golpe de 2016, que um dos mais badalados eventos culturais, a vitrine mais disputada do mundo, que ocorre a retomada do carnaval depois de dois anos de pandemia, na qual o descaso, a negligência e o negacionismo do governo de ultradireita de Bolsonaro exterminou mais de 600 mil vitimas no país.
O panteão de orixás iorubá nunca fora apresentando à América dessa forma antes, principalmente sob fortes aplausos como nessa noite simbólica de 23 de abril de 2022, pela escola de samba Acadêmicos do Grande Rio. Segundo o enredo temático da escola de samba, a finalidade é desmistificar a figura demonizada de Exu, expondo o que há por detrás do racismo religioso que sustenta essa satanização que açoda a intolerância religiosa no Brasil.
E a Grande Rio o fez com grande maestria, profundo conhecimento cultural de nossa ancestralidade, e a partir de Exu, Senhor dos caminhos, abriu todas as passagens para se combater todas as mazelas racistas. Despontou de maneira categórica a deidade dos orixás, divindades que descendem de uma rica e abundante civilização originária que remota o berço civilizatório do mudo, a África.
Lamentavelmente, os livros didáticos ainda não ousam contar essa belíssima história civilizacional, esse desfile entra para história contemporânea como sendo o dia em que os/as carnavalescos/as assumiram o protagonismo e desafiaram o establishment e a intelligentsia branca para rescrever essa página da história com a irrestrita participação efetiva das populações do Rio de Janeiro e São Paulo. Sem nenhuma dúvida, essa foi a maior festa afrocentrada do Brasil pós-pandêmico.
Embora já existam muitas pesquisas e vários livros publicados no campo das ciências, é fato que ainda estamos muito longe de suprir esse imenso vácuo nos livros didáticos ou científicos acadêmicos, criado intencionalmente pelos pensadores antigos e medievais. Não obstante, compreendermos que os pensadores modernos do mainstream nunca vislumbraram superar a corrente que exalta tão somente esse lado da versão, àquele dos “grandes” feitos epopeicos dos vencedores na história das grandes civilizações.
Contudo, a ideia-força revolucionária de liberdade, igualdade e fraternidade iluminista na Europa, no século XVIII, não deu cabo de radicalizar esse processo de emancipação humana, limitando-se apenas a emancipação política dos brancos, defenestrando os povos originários brasileiros e de África. Contornam-se quanto a proposta de romper definitivamente com a herança colonialista, sobretudo a escravidão e o apagamento sociocultural africano na América.
Antes, foram coniventes com os empreendimentos ultramarinos de expansão de mercados para recuperar uma economia europeia quebrada, chafurdada em crise financeira, através da espoliação e exploração da América. Validou a violenta colonização, a consolidação do tráfico e a escravização de humanos do continente africano.
Assim como a escola de samba Grande Rio, vamos aprofundar um pouco mais esse debate sócio-histórico para poder compreender a denuncia desse constructomental que se origina na tradição judaico-cristãconservadoraque forja todas as mazelas racistas, inclusive o religioso.
Do contrário, todas nós descendentes de pessoas pretas trazidas coercitivamente da África para serem escravizadas no território brasileiro, talvez fossemos parte importante dessa convenção historiográfica moderna branca que revolucionou o mundo contemporâneo, revelando novas formas de pensar, mensurar e agir no mundo burguês emergente, por meio do advento das ciências modernas a partir do século XVIII.
Ficamos privados de tudo isso, se fosse de outra maneira, jamais teríamos sido pessoas tratadas apenas como descendentes de “escravos”, alienadas de sua pertença cultural, aprisionadas nessa esfinge escravagista como se ela nos definisse. De vis-à-vis é uma das expressões de maximização de desumanidade que ainda insiste em nos definir na contemporaneidade. Devemos e podemos tratar essa questão com a devida profundidade teórico-prática que o tema requer, e, isso exige revolver a história para contá-la de outra perspectiva, a da civilização africana como fez a escola de samba Acadêmicos do Grande Rio.
A Grande Rio, a propósito, não resgata somente a nossa ancestralidade para contar a nossa história, mas a coloca no seu devido lugar de grande civilização presente no fundamento do mundo, e, o faz se contrapondo ao constructo metal judaico-cristão branco que forja o racismo religioso. O desfile é um processo pedagógico de desconstrução linguística e forte apelo imagético para rasgar do imaginário popular esse véu da alienação.
Manto esse, estendido sobre a história para invizibilizar da cena social, possibilitando substitui nossa pertença cultural africana por um arquétipo de satanás, um deus minúsculo, feio e estranho com imenso poder negativo, uma caricatura bizarra que lidera uma legião de espectros menores de maldades à serviço da destruição na mente humana da ideia prometeica com base na obediência resiliente, único critério de acesso ao paraíso celestial. Mas, também a necessidade de combater sistematicamente aqueles/as que vieram para extinguir os semelhantes (humanos) do criador Yahweh desde os tempos antigos.
A origem da versão perversamente iniqua que moldou a figura de satanás em Exu, o maior de todos e aos demais orixás em demônios “menores”, remota a história. A lógica conservadora da moral cristã é de tratar com hostilidade as religiões de matriz africana e não poderia ser diferente para com quem cultua o sagrado no terreiro. O Povo de Santo traz a marca do açoite da cristandade branca, justificada por uma suposta iniquidade, com base nesse hipotético comportamento, o Povo de Santo deve ser hostilizado e açoitado diariamente.
Se não bastasse a população afrodescendente ser desbancada da condição de espécie humana pelo racionalismo eurocêntrico branco que operou o processo de colonização, proibiu-se a cultura e a religiosidade ao demonizar as imagens de deidades cultuadas pelos iorubás trazidas ao Brasil e aqui convertidas em demônios pela tradição judaico-cristã. Retira-se de Exu o seu papel importante no processo de mediação entre humanos e as forças da natureza por meio da divinização de ancestrais que se demudam em rios, árvores, pedras e outras formas de manifestações.
O enredo propõe danças que expressam ritos sagrados, a música, as fantasias e as alegorias da escola Acadêmicos do Grande Rio aludem a um processo que vai muito da avenida. Esse e o momento em que o enredo ousa recontar a história, mostrar a resistência das populações africanas-afrodescentes e das religiões de matriz africana há séculos de dominação do império romano e sua lógica cristã de romanização do mundo pelo Imperador Romano Constantino I, originada na convecção dos livros (antigo e novo testamento) da bíblia e seu caráter sobrenatural no Concilio de Nicéia, em 325.
As energias criativas de Exu extrapolaram a Sapucaí, abrindo caminhos interditados há séculos pela enculturação branca judaico-cristã. A proposta da Grande Rio de desmistificação de Exu passa pela urgência da desconstrução do arquétipo judaico-cristão de satanização de Exu que domina o imaginário popular como modelo sistêmico determinante de valores, um protótipo que vem sendo amplamente utilizado na sociedade. Aliás, antes é pensado em diversos campos do conhecimento acadêmico moderno, a exemplo da filosofia, psicologia, antropologia, economia, história, geografia e na biologia.
Como tudo que se passa no mundo das representações e esquemas mentais em determinada sociedade deriva da dinâmica provocada pelas mudanças sociais e políticas no processo histórico, o amalgama cristão que modela a figura de Exu, também está sujeita as influências na representação da filosofia cristã da criação da figura do diabo.
Em artigo publicado em agosto de 2018 pela BBC News Brasil, o jornalista e escritor Edison Veiga discute a construção desse arquétipo de satanás e como ele serve para fomentar a intolerância religiosa. Veiga fala sobre um manuscrito, “provavelmente entre os anos 800 e 825 com o texto bíblico do Apocalipse”, encontrado em uma biblioteca na cidade de Tréveris, na atual Alemanha, com ilustração de gravuras que revelam a luta entre o Arcano Miguel e os anjos rebeldes.
Ele descreve figuras de anjos com posições antípodas, um formado por rebeldes e o outro formado por anjos fiéis a Deus. Com base no texto do “livro bíblico de Apocalipse”, Veiga confirma a inexistência de quaisquer dissemelhanças entre os anjos em combate, destacando “apenas a posição de cada um no grupo”. Nesse sentido, a ideia de anjo rebelde vai assumir o estereótipo do diabo de cor vermelha, chifre, cheiro de enxofre, tridente, perverso e etc. muito depois.
Não é menos importante dizer que esse processo de construção da figura do diabo é uma amalgama da “cultura erudita dos monges e teólogos medievais com a cultura popular pejada de superstições e paganismos”. Para Abumanssur, se vivenciava um longo período de fome, pestes e a arrastada destruição do sistema feudal contribuíram para forjar uma figura do diabo com características não humanas no decorrer do século 11.
Houve a incorporação da cultura grega e seus deuses pela matriz cristã, herdando dela “os chifres, os pés de pode e o rabo, características do deus Pã”. A chegada do cristianismo nas regiões de cultura celta, particularmente no norte da Europa, assimilou-se a figura associada ao deus Cernu, reforçando essa característica.
O teólogo e pesquisador Volney Berkenbrock alcança a contemporaneidade, trazendo sua pesquisa para a atualidade ao afirmar que esse processo de ressignificação e de carga imagética da figura sinistra de satanás é “um exemplo típico é como algumas igrejas cristãs identificam a figura de Exu, advinda da religião africana dos iorubanos, como o demônio”.
Veiga considera a origem hebraica da palavra satanás que quer dizer “acusador” ou “adversário”. Com base na pesquisa, o jornalista mostra que as aplicações mais antigas do termo que não faz nenhuma menção a figura oposta a Deus ou algo que personifique o mal. Exatamente por isso, o teólogo Berkenbrock sugere comparar sem nenhum prejuízo do sentido primeiro da palavra Satanás à função que hoje desempenha o “promotor de justiças”.
Não podemos ignorar o fato de que a influência greco-romana tenha operado sobre o cristianismo, sobretudo no que se refere ao uso da expressão Demônio (daimon) que significa força, impulso considerada pelo cristianismo como força negativa e a expressão Diabo (diablos) significa divisor, aquele que causa divisão.
*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.
**Foto de capa: Reprodução/TV Globo.
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