Raimundo Silva: os desafios de um livreiro para manter viva a cultura do sebo literário em Conquista
Por Letícia Mendes - 1 de dezembro de 2022
“A esperança está se esvaindo”, conta o comerciante, que tem lidado com a perda dos clientes para as lojas virtuais.
É através do olhar que se reconhece um bom livreiro. São olhos atentos, de quem já viu e viajou o mundo centenas de vezes por meio das páginas de obras literárias. É o olhar de quem tem a alegria em passar adiante tudo o que aprendeu com cada leitura. Tudo isso está refletido na íris de Raimundo Silva Araújo Filho, conhecido como Rai. Aos 51 anos, ele se dedica diariamente a manter vivo o comércio e a troca de livros físicos em Vitória da Conquista.
Esse homem de olhos gentis nasceu e criou raízes nos arredores do Bairro Brasil, onde começou a perceber que a literatura o acompanharia para o resto da vida. Na infância, a troca de gibis com o vizinho e os passeios pela biblioteca municipal preenchiam o coração de Raimundo com satisfação, já que na época não tinha condições de comprar os próprios livros. “Era caro e difícil ter acesso”, conta o livreiro.
Seu apego pelas histórias e romances clássicos também não passou despercebido pelos pais, que fizeram questão de encorajar ele e seus seis irmãos a buscarem conhecimento. “Eles nos incentivaram e nos transformaram no que nós somos hoje. Os dois tinham pouca leitura, mas eram pessoas esforçadas, trabalhadoras e amorosas”, diz.
Capítulos com reviravoltas
Para seguir a busca pela educação incentivada pela família, assim que completou o ensino médio no Colégio Diocesano, Rai voltou seus esforços para se graduar na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). No entanto, precisou cursar e desistir da Matemática, Física e Eletromecânica até perceber que seu potencial não vinha dos cálculos e vértices, mas sim das palavras que escorrem no papel. “Minha área não é Exatas. Eu gosto de Literatura, História e Sociologia”, ressalta.
Para que chegasse a essa conclusão, ele precisou da ajuda de alguém, um representante da Livraria LDM. De passagem pela UESB, essa pessoa mudou os rumos da trajetória de Rai. Durante uma exposição de livros, o jovem Raimundo se ofereceu para tomar conta das vendas. Assim, firmou-se um laço de confiança. Ele passou a auxiliar o rapaz em diversas exposições realizadas nas universidades baianas.
As cidades de Caetité, Jacobina e Santo Antônio de Jesus acolheram o jovem livreiro que, debaixo de chuva ou sol, levantava a voz para oferecer aos estudantes as melhores obras que compunham o acervo da LDM. “Eu achava gostoso demais porque quando estava fazendo uma exposição, eu parava um momento e lia. Dava pra ler até um livro inteiro, então me apaixonei ainda mais”, revela.
Em 1999, Rai juntou toda a sua coragem e decidiu sair da Livraria LDM com o desejo de montar o próprio negócio. A ideia de ter um sebo literário ecoou muito em sua cabeça. Ele estava determinado a enfrentar qualquer obstáculo para realizar aquele sonho de alguém apaixonado pelos livros.
Resistiu à fome e às noites gélidas ao dormir na rua, quando foi ao Rio de Janeiro apenas com o dinheiro que o irmão Roberto o doou para comprar e transportar uma banca de livros do Largo do Machado para a Bahia. “Meu irmão me ajudou bastante. Ele me emprestou dinheiro pra eu montar o sebo. Até então, minha família não acreditava, mas ele acreditou tanto que até vendeu o carro e me deu o dinheiro sem que eu pedisse”, conta.
Assim nasceu o Sebo ‘O Livreiro‘, a engrenagem que faz o sonho de Raimundo ir adiante. Localizado na Travessa Zulmiro Nunes, no Centro de Vitória da Conquista, o espaço resguarda centenas de memórias entre capas, lombadas, orelhas e miolos dos livros posicionados nas estantes. Da mais bela história de amor ao mais fantástico mundo de aventuras, de tudo se encontra por entre as páginas, paredes e andares que compõem o local.
Os clientes como personagens principais
Num piscar de olhos, durante a rotina no sebo, Raimundo passou a enxergar para além das margens. De repente, não apenas os livros o encantavam, mas também as pessoas que frequentam O Livreiro. Como quem narra um conto dos mais envolventes, com as mãos vibrando de entusiasmo, o vendedor revela: “tem clientes com histórias de vida extraordinárias, sabia?”. Ele lembra, inclusive, de pessoas que aprenderam a ler na terceira idade e frequentam o sebo assiduamente.
Ao desenvolver vínculos afetivos com os clientes, Rai se tornou o melhor dos ouvintes. “Eu deixo as pessoas falarem e ouço”, destaca. Sua arte de escutar alimenta o desejo de que o sebo jamais deixe de ser um local de memória e acolhimento.
No entanto, a realidade é que muitas pessoas deixaram de frequentar o sebo nos últimos anos. Os ruídos das vozes que antes se ouviam pelos corredores, agora ficam por conta do rádio ligado. “Eu não tenho mais a quantidade de clientes que tinha”, Raimundo entristece ao dizer. “Como as pessoas têm muitos afazeres e hoje em dia a gente precisa trabalhar muito mais para sobreviver, elas acabam deixando isso aqui para o último plano. Livros não fazem parte da cesta básica de ninguém”.
A incerteza de um final feliz
O comerciante também atribui a evasão dos clientes ao aumento dos varejos online e ao consumo de livros digitais. Para ele, os novos arranjos da tecnologia têm afetado os pequenos comércios das cidades do interior, e para sobreviver, não há outra escolha senão também se inserir nas redes sociais. “O mundo não pode ser do jeito que eu quero e eu tenho que me adequar”, afirma.
“Sozinho a gente não é nada. Sozinho a gente é um barco à deriva”. É assim que Rai se percebe diante da falta de incentivo financeiro para levar a cultura literária para além do sebo. Mesmo firmando parceria com a Prefeitura para levar livros infantis até as escolas municipais, até o momento não houve retorno sobre a data da ação. Ele comprou cerca de 15 mil livros para a ocasião. A maioria ainda não foi vendida.
Diante dessa realidade de inseguranças e indefinições, Rai pensou em desistir diversas vezes. Dessa vez, o livreiro resolveu dar um ultimato para o negócio. Caso as condições não melhorem até o próximo ano, as portas do sebo podem se fechar definitivamente. “Eu tenho uma ‘esperancinha’ no fundo de que, se eu der uma ajeitada, modificar alguma coisa, os clientes comecem a voltar. Fora isso, a esperança está se esvaindo”, revela.
O que ainda mantém essa aguerrida esperança de Rai é o companheirismo de sua esposa, que colabora fielmente na batalha diária pela valorização da leitura e pela manutenção do sebo. “Ela é a minha grande incentivadora”, conta.
Assim, página por página, com o coração apertado e os olhos marejados pela incerteza do amanhã, Raimundo consegue ler muitos livros, mas deseja um dia poder ler o destino reservado para o sebo, com a perspectiva de que alcance um final feliz.
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