Mesmo com leis de acessibilidade, pessoas surdas têm acesso limitado à cultura em Conquista

Por - 13 de novembro de 2024

Muitas vezes, não é disponibilizado o serviço de interpretação em Libras em eventos, especialmente naqueles realizados por empresas privadas. O descaso com os profissionais tradutores também é uma realidade.

Secom/PMVC

Camila Pereira é uma jovem que gosta de frequentar eventos culturais, seja shows musicais, peças de teatro ou outros ambientes de manifestações artísticas. Porém, muitas vezes, ela é impedida de participar desses momentos de lazer por ser uma pessoa surda. Em diversos casos, não é disponibilizado o serviço de interpretação em Libras (Língua Brasileira de Sinais) pelas empresas responsáveis por festas ou outras ações de cultura. “Não só os surdos, como todas as pessoas com deficiência, precisam também de condições para participar de eventos com qualidade”, ressalta a conquistense.

Para Ruth Ellen Santana, que também é uma pessoa surda, a inclusão ainda é ausente em muitos espaços de Vitória da Conquista. “Qualquer ambiente precisa ter intérprete de Libras. Os surdos estão em todos os lugares. Também temos nossos artistas preferidos e, quando eles estão se apresentando e o show não tem acessibilidade, ficamos tristes. Queremos eventos preparados para nós”, desabafa.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 10 milhões de brasileiras e brasileiros são pessoas surdas. Mesmo com a sanção da Lei nº 10.436/2002, que reconhece a Libras como meio legal de comunicação, e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015), é comum em todo o país que o direito a atividades culturais em formato acessível seja negado. Em Conquista, essa realidade não é diferente, segundo relatos ouvidos pela reportagem.

No município, a Lei nº 2.230/2018 prevê que todos os eventos públicos oficiais realizados na cidade deverão contar com a participação de um intérprete de Libras. Entretanto, principalmente em festas privadas, a acessibilidade não é a regra. No dia 8 de novembro, o festival Conquista Sound Music, que trouxe o show da dupla Jorge e Mateus, não incluiu os profissionais. “Eles negaram a contratação”, conta Jaqueline França, gerente da Central de Interpretação de Libras (CIL) de Conquista.

Desde 2014, Jaqueline França atua junto à comunidade surda. Atualmente, é gerente da Central de Interpretação de Libras (CIL) de Vitória da Conquista. Foto: Acervo Pessoal.

“É vergonhoso a associação de surdos enviar ofício solicitando profissionais de Libras para um evento e eles responderem perguntando: ‘qual é a quantidade de surdos que já compraram o ingresso?’. Isso importa?”, questiona Jaqueline França. “Mesmo assim, a gente segue trabalhando com o objetivo de conseguir a acessibilidade porque a comunicação acessível é uma medida essencial em um mundo que valoriza a diversidade e a inclusão”, completa a intérprete, que atua com Libras desde 2014.

Mobilização da comunidade surda

Em Vitória da Conquista, a presença dos intérpretes de Libras em eventos culturais tem sido um direito conquistado por meio da pressão e mobilização da comunidade surda. Neste ano, o Festival de Inverno Bahia (FIB) teve pela primeira vez uma edição mais inclusiva. Os profissionais foram contratados após, em 2023, uma denúncia sobre a falta de acessibilidade para pessoas com deficiência auditiva na festa ter sido protocolada no Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA).

O professor Leandro Viturino, que também é integrante da comunidade surda, foi uma das pessoas que encaminhou o ofício ao MP-BA. “É cansativo ter que lutar mil vezes sempre que queremos participar das coisas. Por mais que existam inúmeras leis, muitos simplesmente não as cumprem ou fingem que elas não existem. Por que não podemos participar de qualquer atividade social, com qualquer pessoa, sem sermos excluídos?”, questiona o docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

A inclusão dos intérpretes no FIB foi uma vitória, mas o anúncio da disponibilização do recurso ocorreu um dia antes do início do festival, durante coletiva de imprensa. “Foi uma luta vencida, mas uma pena que a informação não chegou antecipadamente. Além de privá-los da possibilidade de comprar o passaporte com valores promocionais, a produção contratou intérpretes poucos dias antes, prejudicando o serviço e sucateando a profissão dos tradutores”, explica Jaqueline França.

Além disso, segundo a intérprete, os profissionais contratados pelo FIB não receberam a remuneração adequada, prevista na tabela referencial da Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-Intérpretes de Língua de Sinais (Febrapils). A desvalorização desse serviço essencial, seja por meio do desrespeito ao pagamento ou da falta de atenção às condições de trabalho, afeta diretamente as pessoas surdas que necessitam da interpretação em eventos culturais.

Durante o primeiro dia de FIB 2024, houve queixas do público sobre o formato da interpretação em Libras, especialmente sobre a ausência de iluminação adequada sob os profissionais. Foto: Victória Lôbo.

Segundo a Febrapils, no caso da interpretação em espetáculos, shows, cinemas e similares, o valor mínimo pago ao profissional deve ser R$192 por hora trabalhada. Ainda é exigido, no mínimo, três intérpretes, sendo um profissional surdo. Segundo trabalhadores da área ouvidos pela reportagem, em certas ocasiões, já chegaram a receber R$100, sem que fosse considerada a duração total do evento.

Acessibilidade em segundo plano

Um exemplo da falta de atenção às pessoas surdas e profissionais intérpretes de Libras na cidade aconteceu no dia 1º deste mês, no Festival FAVE, em que a cantora Marina Sena e DJs se apresentaram sem a presença de alguém que pudesse traduzir os shows. A conduta foi repudiada pela Associação de Surdos de Vitória da Conquista, por meio de nota, um dia antes da festa.

Devido à denúncia e repercussão do assunto, segundo o tradutor Huille Oliveira, ele foi procurado pela produção do FAVE poucas horas antes do início do evento. “A acessibilidade sempre fica de escanteio, em segundo plano. Eu pensei em recusar porque, para a gente interpretar, precisamos nos preparar, ter o roteiro das músicas. Mas aceitei tendo em vista a possibilidade de ter surdos no Festival”, conta.

Entretanto, ao chegar no espaço onde aconteceria a festa, encontrou outras dificuldades para realizar o seu trabalho. “Eu perguntei onde ficaria, então o produtor me mostrou um cantinho, fora do palco, atrás de uma caixa de som, e falou que aquele seria o meu lugar”, relembra. Diante disso, Huille se recusou a interpretar, uma vez que o local destinado a ele impediria que as pessoas surdas pudessem acompanhar a interpretação em Libras. “Respondi que, dessa forma, não poderia fazer”, complementa.

O tradutor trabalhou também na última edição do Festival Suíça Baiana, realizado nos dias 19 e 20 de outubro deste ano. O evento foi pioneiro na inclusão de acessibilidade para pessoas surdas na cidade, em 2023. “Nós tivemos um trabalho de melhor qualidade no Suíça. Pudemos trabalhar em um local com maior visibilidade, melhor iluminação, mais conforto, porém ainda há o que melhorar”, explica Hiulle.

Um dos principais aspectos que podem ser melhorados numa próxima edição do evento, de acordo ao profissional, é a contratação de mais intérpretes. Sancionada em 2019, a Lei nº 12.319 regulamenta a profissão e prevê que, caso a ação tenha carga horária superior a uma hora de duração, deverá ser realizado o regime de revezamento entre os tradutores, com, no mínimo, dois profissionais.

No Festival Suíça Bahiana 2024, foram dois dias de festa com mais de vinte atrações, mas apenas dois intérpretes de Libras atuaram no evento. “Nosso serviço só pode ser passado com qualidade se a gente tiver os materiais necessários. Então, ter uma equipe maior, um local para descansar, água e alimento à disposição. Isso faltou no Suíça. É uma coisa que a gente pede para eles prestarem um pouco mais de atenção na próxima edição”, afirma Hiulle Oliveira.

Outro lado

O Conquista Repórter entrou em contato com as produções dos eventos citados na reportagem. Por meio de nota, o Festival Suíça Bahiana (FSB) reconheceu que as condições de trabalho para os intérpretes de Libras não foram ideais. “Lamentamos profundamente qualquer desconforto ou insuficiência de estrutura que possa ter ocorrido. Gostaríamos de esclarecer que a realidade do festival é a de operar com um orçamento muito restrito, o que impacta não apenas a acessibilidade, mas todas as áreas do evento”, diz um trecho do comunicado enviado à reportagem. Confira a nota na íntegra aqui.

O contato com a produção do FAVE ocorreu via mensagens em rede social. Um representante da empresa se limitou a dizer apenas que foi informado no dia sobre as condições inadequadas para a realização do trabalho de tradução em Libras. “O que ele (o intérprete) passou foi que o produtor da artista colocou ele num lugar que ele não conseguiria concluir o trabalho. A nossa parte foi feita, tem coisas que fogem do nosso controle. Ele me chamou no meio do show e passou a situação”, disse.

Os responsáveis pelo Conquista Sound Music também foram procurados, mas não se manifestaram até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto para o posicionamento da empresa. Em relação ao Festival de Inverno Bahia 2024, durante o primeiro dia da festa, houve queixas do público sobre o formato da interpretação em Libras, especialmente sobre a ausência de iluminação adequada sob os profissionais, mas na época, a produção do evento não abordou o assunto publicamente.

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