Dona Maria de Lourdes: a mulher rendeira do povoado de Barreiro

Por - 17 de janeiro de 2025

Aos 91 anos, ela busca manter viva a tradição da chamada renda de bilro, no sertão da Bahia, na zona rural de Caculé. A arte manual resiste ao tempo principalmente através de pequenos grupos autônomos e projetos sociais.

Murilo Trindade

No povoado de Barreiro, localizado na zona rural de Caculé, município a mais de 200 km de Vitória da Conquista, Dona Lourdes se destaca por causa de uma habilidade que aprendeu ainda na adolescência: fazer renda. Foi uma tia quem lhe ensinou a arte de entrelaçar cuidadosamente linhas e, assim, formar os mais diversos desenhos. Aos 91 anos, apesar das limitações físicas impostas pelo envelhecimento, ela faz parte do grupo de mulheres que busca manter viva a tradição da chamada “renda de bilro”.

A arte de rendar, passada de mulher para menina ao longo de várias gerações, consiste em cruzar linhas sobre uma almofada redonda, conhecida como rebolo, seguindo um desenho previamente furado em um molde de papelão. Nas pontas das linhas, sementes circulares de árvores são enfiadas em palitos de madeira para conduzir o trançar. São os birros, ou bilros, daí o nome “renda de bilro”.

Para Maria de Lourdes Brito da Cruz, não foi difícil aprender o mistério da renda. Muito pelo contrário, logo pegou o jeito. “Eu vi minha tia fazendo, aí eu fui e fiz também. De primeiro o fazer das mulher (sic) era esse”, relembra. Tinha 15 anos quando virou renderia, mas esse ofício nunca lhe deu lucros. Mesmo quando parentes davam a ela algum dinheiro pelo metro da renda, recebia o pagamento desconfortável.

Atualmente, rendar é um passatempo que a mantém lúcida. Com a idade avançada, precisa de uma bengala para se locomover, a visão e a audição estão comprometidas, mas a memória de como as linhas devem se cruzar sobre a almofada permanece intacta. Ela também não esqueceu dos dias difíceis que viveu no passado e da dor que ainda carrega pela perda de dois dos seis filhos.

Enquanto passa com atenção as linhas de um lado para o outro, lembra das tragédias que marcaram a sua vida. “A primeira [filha] nasceu morta. João morreu num pé de umbu. Subiu, escorregou e bateu a goela num pau. O sangue derramou por dentro. Ele morreu no dia do Natal”, conta.

O marido, Joaquim Marcelino, também partiu anos depois. Em 1999, faleceu em decorrência da diabetes. Nessa época, Dona Lourdes já era aposentada, após trabalhar por muito tempo na roça com o plantio de hortaliças, a criação de animais e a coleta de plantas para a fabricação de óleo. Sem o esposo, passou a viver na companhia dos quatro filhos: Ana, Aparecida, Geraldo e José.

Aos 80 anos de idade, Dona Lourdes, que nunca frequentou a escola, teve a oportunidade de aprender a ler por meio do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A leitura do livro de orações e das cartas recebidas do Santuário do Divino Pai Eterno se tornaram hábitos que preencheram os seus dias. Assim, a fé que sempre a moveu, ganhou um sentido ainda maior através das palavras escritas.

Na velhice, a renda e a reza são as duas práticas que alegram o seu dia a dia. Com o seu trançado, ela mantém viva uma tradição trazida ao Nordeste do Brasil pelos portugueses no período colonial. Essa arte manual, historicamente reservada às mulheres, resiste ao tempo principalmente através de pequenos grupos autônomos e projetos sociais que buscam preservar a forma de artesanato.

Porém, na casa de Dona Lourdes, o futuro dessa tradição é incerto. Suas filhas não aprenderam a rendar, as netas nunca se interessaram. Sua almofada e linhas provavelmente ficarão sem herdeiras.

Edição da matéria: Karina Costa.

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