Artigo | Traição à luta popular: quando a esquerda se torna o próprio algoz
Por Keu Souza - 14 de janeiro de 2025
Com votos de 15 vereadores, o bolsonarista Ivan Cordeiro foi eleito presidente da Câmara Municipal de Vitória da Conquista. Na ocasião, em nome de uma suposta “estratégia política”, representantes da esquerda alinharam-se a práticas que beneficiam o conservadorismo estrutural.

O cenário político de Vitória da Conquista vive um momento de profunda contradição histórica, evidenciando que a sabotagem às lutas populares não vem apenas de forças externas, mas também de dentro das fileiras progressistas. A recente conduta de vereadores que, em nome de uma suposta “estratégia política”, alinharam-se a práticas que beneficiam o conservadorismo estrutural, revela não apenas um oportunismo vergonhoso, mas também o desprezo pelos fundamentos éticos que sustentam a esquerda.
A análise desse quadro exige o aporte crítico do feminismo negro e do marxismo, pois é nesse cruzamento que compreendemos como a traição à classe trabalhadora e às mulheres negras – que ocupam a base mais explorada do capitalismo – se manifesta não apenas nas ações, mas nas omissões. Como nos ensina Angela Davis, “a luta contra o racismo e o capitalismo deve ser simultânea, pois um sustenta o outro”. No entanto, vereadores ditos de esquerda optaram por negociações que priorizam cargos e comissões, em detrimento da confiança popular e do enfrentamento às estruturas de opressão.
Uma traição de classe e raça
A escolha por compor com forças conservadoras não é neutra. Trata-se de uma adesão à lógica neoliberal que descaracteriza os partidos de esquerda enquanto instrumentos de transformação social. Essa prática não apenas trai a classe trabalhadora, mas também evidencia o apagamento das pautas de mulheres negras, que historicamente têm sido as principais articuladoras da resistência popular.
A filósofa e ativista bell hooks destaca que a supremacia branca e o patriarcado se reproduzem em qualquer espaço onde as alianças de poder estejam desconectadas das necessidades da base. Em Vitória da Conquista, a composição política revelou que o projeto de emancipação foi substituído pelo pragmatismo rasteiro, que prioriza a manutenção do status quo.
Fascismo sutil e a dissolução da esquerda
Essa capitulação a práticas de sustentação do bolsonarismo, ainda que veladas, configura o que podemos chamar de fascismo sutil. É uma política que, travestida de estratégia, reforça as estruturas de opressão que deveria combater. Não se trata apenas de uma falha ética ou estratégica, mas de um alinhamento suicida que compromete a trajetória de luta construída por militantes de base.
Como aponta Audre Lorde, “as ferramentas do senhor nunca desmontarão a casa do senhor”. Assim, ao utilizar os mesmos instrumentos de manipulação e cooptação, esses vereadores deixam de representar qualquer ruptura com o sistema capitalista-racista-patriarcal. O resultado? Um desmonte interno que enfraquece a luta e fortalece os adversários.
“Nós Contra Nós”: a luta interna da esquerda
A esquerda conquistense não enfrenta apenas adversários externos. A sabotagem agora emerge como um elemento interno, expondo um projeto político fragmentado e sem raízes na realidade das massas. A falta de organização e unidade estratégica contribui para o enfraquecimento dos partidos enquanto ferramentas de transformação social, dissolvendo qualquer possibilidade de resistência efetiva.
A classe trabalhadora negra, especialmente as mulheres, permanece na linha de frente das lutas, mas não pode continuar sendo usada como escudo por lideranças que se rendem às armadilhas do poder. Essa traição ecoa o que Franz Fanon apontava: “cada geração deve, em relativa opacidade, descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la”.
Um chamado à reestruturação
Este momento exige uma reavaliação profunda e um retorno às bases, ao compromisso com o povo, às mulheres negras, às juventudes periféricas. Somente uma organização enraizada nas contradições concretas das massas poderá reconstruir a confiança traída. Não se trata apenas de apontar os erros, mas de propor caminhos que reafirmem os fundamentos revolucionários: a luta de classes, o antirracismo, o feminismo e a emancipação coletiva.
Vitória da Conquista, com sua longa história de resistência, não pode se permitir ser reduzida a palco de traições internas. O chamado é de enegrecimento: reconstruir ou perecer.
*Keu Souza é historiadora, feminista interseccional, artista, afro empreendedora e dirigente nacional do PSOL Mulheres.
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