Artigo | O som do teatro: a Noviça Rebelde do Neojiba
Por Adriana Amorim - 16 de dezembro de 2024
Um musical mundialmente conhecido foi encenado em uma cidade do interior do nordeste brasileiro. Com um elenco jovem e trilha sonora executada por orquestra, o espetáculo é um marco da retomada do teatro em Vitória da Conquista.

Em março de 2025 a deflagração da “quarentena” imposta pela pandemia da covid-19 completa cinco anos. Ao mesmo tempo em que parece que foi ontem, parece que foi em outra vida. A sensação da passagem do tempo em nossos corpos, em nossas subjetividades, em nossas relações pessoais e sociais é bastante variável, não só de uma pessoa para outra, como também de uma situação para outra, vividas pelo mesmo sujeito.
Em 2020, assim que entendemos no que estávamos metidas, nós, artistas, ficamos cientes de que a classe artística seria uma das mais atingidas, sendo a primeira a sucumbir e, certamente, a última a se reerguer. Fato é que, apesar de termos definhado, sofrido danos profundos, concretos e cruéis, não sucumbimos.
Ainda que o auxílio a esse grupo social tenha se efetivado já quase no final do isolamento, via leis de incentivo, resistimos. E continuamos resistindo. Por não termos sucumbido, mas termos experimentado um estado profundo de desnutrição, só agora, passados cinco anos da hecatombe, começamos a nos reerguer. Em especial, o teatro. Soma-se a esse cenário desafiador, no caso de Vitória da Conquista, a triste condição do Teatro Municipal Carlos Jeohvah e da inexistente política cultural, sobre a qual muito já se falou, muito já se lutou e nada foi feito.
Mas, é o que todos sabemos: o povo da arte não morre. A gente não acaba. E, geração após geração, novas iniciativas vão sendo estruturadas e vivenciadas, na maioria das vezes, por jovens e adolescentes. Felizmente. É histórico.
Toda essa introdução serve para reforçar a importância do que se viu no palco principal do Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, na última quinta-feira, 12 de dezembro, sob o comando da gigantesca pluriartista e professora Cláudia Rizzo, com toda a equipe do Núcleo Territorial de Vitória da Conquista do Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Infantis e Juvenis da Bahia) sob supervisão geral do maestro João Omar. A experiência já seria impactante, caso o cenário não fosse o descrito acima, mas, no contexto em que nos encontramos, arrisco dizer que a apresentação do musical “A Noviça Rebelde” se configura como um marco da retomada da produção teatral em nossa cidade e região.

O que vimos, na noite de 12/12/24, essa data quase cabalística?
Vimos um musical mundialmente conhecido, clássico por sua indiscutível qualidade, sendo encenado no teatro de uma cidade do interior de um estado do nordeste brasileiro, com um elenco de jovens e crianças, boa parte das quais de comunidades populares, e com os protagonistas negros, com uma orquestra executando ao vivo a trilha sonora, orquestra esta composta por musicistas com o mesmo perfil (jovens negros e negras).
Quem já viu alguma apresentação do Neojiba conhece a experiência do deleite estético e da esperança que o núcleo ativa na gente, de uma forma articulada. Assistir à excelência dos artistas/estudantes, a irresistível presença das crianças do coro infantil absolutamente plenas de si, a inteireza da performance da equipe de formadores e formadoras, a implicação genuína de toda a equipe em prol de qualquer espetáculo que o Núcleo põe em cartaz já é o esperado. No entanto, dessa vez, o Neojiba passou de todos os limites. Ainda bem!
Decidiram fazer um musical, com destaque para a parte teatral. Optaram por um musical clássico, bastante conhecido, longo e desafiador. Optaram por fazer a execução da trilha ao vivo. Escolheram ainda colocar os próprios estudantes como protagonistas (é comum que artistas profissionais sejam convidados para dar robustez à performance do elenco). E tomaram todas essas decisões com apenas quatro meses para a data de estreia. Haja coragem. Há coragens que só loucos e artistas têm.

Eu poderia falar sobre o processo criativo do Núcleo, pois o conheço de perto (como mãe de membro do coro infantil) e sobre ele realmente vale a pena se debruçar em outra oportunidade. Mas, quero me dedicar ao produto, visto que o espaço é curto e a demanda longa, pois profundo foi o impacto.
A encenação foi um recorte preciso, que valorizou a montagem. A premissa de que menos é mais, nunca falha. Poucos movimentos de cena; entradas e saídas limpas; cenário e figurinos básicos. Somente o necessário. No audiovisual existe uma compreensão de que a imagem que mais satisfaz o espectador é a imagem humana. Só deste espécime, tínhamos quase uma centena em cena, entre membros da orquestra, coro, atores e atrizes. Logo, quanto menos elementos visuais adicionais, melhor.
Apesar de feito na base do “me empresta que eu devolvo” e “me ajuda que falamos seu nome nos agradecimentos”, o figurino foi muito além de dar conta do recado, porque além de fazê-lo, garantiu alguma unidade, o que esteticamente é importante na leitura do todo.
O que mais salta aos olhos, porém, é a performance do elenco. A garantia de uma boa performance no teatro, como num jogo de futebol, depende mais do trabalho de quem dirige do que do talento individual. Um artista (ou jogador) pode ser brilhante, mas se seu brilhantismo não está alinhado ao conjunto, não garante o sucesso da empreitada. Há casos em que a presença de talentos individuais “casa” perfeitamente com a condução do todo e foi o que vimos.
Sabemos da imensidão do desafio que é colocar mais de duas crianças juntas num mesmo tempo/espaço. Agora, imagine quando esse espaço é um palco. Quem já dirigiu criança em cena, sabe que essa tarefa, quando finalizada, deveria nos garantir um lugar no paraíso. Mantê-las organizadas e concentradas já seria um mérito, mas conseguir extrair delas performances impecáveis, divertidas e encantadoras é quase um milagre. Atentas às falas, às entradas nas canções, à coreografia complexa, os intérpretes dos filhos Von Trapp foram brilhantes e emocionaram pela doçura infantil e profissionalismo maduro. Vê-se a mão precisa da direção, nas escolhas estéticas e metodológicas.

Maria Fernanda Cunha, Maria Alice Reis, Letícia Modesto, Murilo Correia, Luyse Oliveira, Matheus Lima, Tainá Marins e Everton Freitas ganharam nossa simpatia como a família Von Trapp. Chamaram a atenção também as aparições das freiras, noviça e madre superiora, em números divertidos e bem executados que ajudavam no desenvolvimento da trama. Ana Luísa Prado, Maria Helena Queiroz, Lavínia Pires, além da própria Cláudia Rizzo, defenderam, com louvor, a tarefa. Destaque para Lara Gabrielly, como a madre superiora.
A dupla Sofia Franco e João Lélio como os trambiqueiros carismáticos Baronesa e Tio Max representavam a clássica dupla cômica presente em infindáveis espetáculos teatrais. Apesar da boa performance, creio que numa continuação, poderiam carregar um pouco mais na consciência dessa condição e arriscar mais na caricaturalização de seus tipos, potencializando sua presença no palco. Talento para isso, a dupla mostrou que tem. E já que entramos naquele momento de sugestões de quem apenas assistiu, penso que seria interessante uma adaptação dos nomes das personagens e dos lugares para nos aproximar culturalmente.
Faria bem, ainda, um corte de algumas cenas, sobretudo as repetições de canções e, já que não se optou por falar verbalmente do inimigo maior da obra original, que é o Nazismo (e seus torpes herdeiros), que o final fosse revisto, talvez concluindo com o desfecho do romance. Apenas leituras de quem estava confortável no banco da plateia. Nada que desabone, em nenhuma medida, o produto apresentado.

Agora, já depois de tanto ter escrito, peço licença para falar de nossa irmã Maria, a nossa noviça rebelde. Desde sua entrada no palco, é possível notar a grandeza de sua intérprete. Essa é uma das magias do teatro: o palco transforma uma pequena jovem, magra e delicada, numa gigante. E isso acontece tão logo Ana Júlia Cordeiro pisa no palco. Imensa, afinadíssima, plena detentora da relação entre seu corpo físico, a energia que dele transborda e os limites do espaço-tempo que o palco constrói e do qual se expande para tocar fundo no coração da plateia, a jovem atriz hipnotizou o teatro lotado. Não há como não nos rendermos à sua existência, ao seu trabalho, à sua performance.
Ao longo do espetáculo, Ana Júlia desfila com segurança genuína, própria dos que ainda não sabem que são incríveis. Ela organiza em torno de si elenco, elementos, canções, orquestra. Ela conduz com seus braços longos e precisos as crianças pelo palco e pelo desenrolar das cenas e vai edificando o espetáculo. Leve. Sem vaidade, sem ego. Apenas com aquele compromisso inapelável (como gosta de dizer Fernanda Montenegro) com a arte que a escolheu. Sim, o teatro escolheu Ana Júlia, que, desconfio, nasceu para os palcos.
Eu, confesso, chorei de emoção ao vê-la em cena, porque choro quando me deparo com o divino. Chorei, porque me lembrei, depois de cinco anos afastada dele, que o teatro é meu espaço sagrado. Lembrei dos milagres que ele opera. Porque me emocionei ao ver um encontro tão lindo de uma artista com seu novo mundo. Porque aquela jovem atriz estava sendo a antena que organiza aquele complexo mundo sobre o palco. Porque, no fundo, nada mais existe além desses momentos em que somos levados, pela arte, a conhecer o que de mais humano e belo temos em nós. Porque sua voz e sua performance celebraram e conduziram todo o trabalho da equipe do Neojiba a um patamar divino. E que lindeza é quando isso acontece. Desconfio que é para momentos como este, que nascemos.
Conquista tem uma inegável inclinação, mais do que isso, um compromisso visceral com o teatro. Que a estreia do musical a Noviça Rebelde do Neojiba seja um marco na retomada de nossos investimentos nessa arte tão humana, tão sagrada. Em mim, borbulham ideias e vontades de voltar a realizar. Certamente, minhas possíveis realizações teatrais em 2025 terão as digitais dessa experiência. Que suas sementes se espalhem. Que, como na história, possamos voltar a combater o horror e as ditaduras com diversidade, arte, beleza e bondade.
Que o som, o espaço e os movimentos; que a voz, o corpo e o espírito da música, presentes na noviça rebeldia dos membros do Neojiba/Conquista, salvem essa cidade.
*Adriana Amorim é atriz, diretora e dramaturga. Professora de Cinema e Audiovisual na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Fez Teatro Escola Macunaíma, na década de 1990, quando atuou na cena teatral paulistana. É Doutora e Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Idealizadora e coordenadora artístico-pedagógica da CazAzul Teatro Escola, atualmente é também Pró-Reitora de Ações Afirmativas, Permanência e Assistência Estudantil da Uesb. Autora do livro “Futebol X Teatro: rito, cena e dramaturgia do espetáculo futebolístico” pela Paco Editorial.
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