Artigo | O Brasil se finge de democrático

Por - 10 de abril de 2023

Falar que, por conta da derrota do fascismo nas eleições de 2022, estamos vivendo numa democracia, é ser muito otimista ― ou muito tolo.

Ato pela democracia

Diante da tragédia política, institucional, social, econômica e humana (para não dizer também ética e moral) que foi o (des)governo fascista que dirigiu o Brasil entre 2019 e 2022, a palavra mais pronunciada, tanto por aliados quanto por adversários do dito (des)governo, certamente, foi democracia. Após os acontecimentos absolutamente deploráveis do dia 8 de janeiro de 2023 nas sedes dos Três Poderes da República, em Brasília, o que foi denominado “Dia da Infâmia”, se tem falado ainda mais em democracia. Repete-se aos quatro ventos que “a democracia voltou”. Será?

Precisamos refletir sobre o significado de democracia. De forma simplificada, claro, poderíamos repetir que “democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Caso a democracia seja, resumidamente, o que afirma essa definição, então, forçosamente, havemos de argumentar que, nesse caso, não se pode dizer que o Brasil tenha sido, alguma vez, um país democrático.

Vivemos num país que se estruturou sobre o maior crime da humanidade: a escravização de seres humanos. Em outras palavras, somos, enquanto sociedade, fruto da escravidão. Essa escravidão, que vitimou indígenas e negros durante séculos ― sobretudo esses últimos ―, infelizmente, tem se perpetuado. E não só se perpetuado, tem se ampliado, se adaptado.

Já não basta indígenas e afrodescendentes: é suficiente que seja pobre. Quanto mais pobre, melhor, qualquer que seja a raça, a origem ou a cor da pele. A sociedade brasileira, ainda contaminada pelo vírus escravocrata, permanece presa aos preconceitos, a toda sorte de discriminação, inclusive e, principalmente, racial.

Aqui, na tão cantada e aplaudida democracia brasileira, a desigualdade econômica e social é a maior do mundo fora do continente africano (estamos entre os sete países mais desiguais do planeta); as mulheres são vítimas de feminicídio em escala assustadora; os povos indígenas ainda são dizimados e expulsos de suas terras por grileiros e garimpeiros ilegais; as forças armadas repetem golpes e estão permanentemente ameaçando a frágil estabilidade política da nação, ao tempo em que seguem cobertas de privilégios de todas as espécies.

A esmagadora maioria da população é pobre; milhões de pessoas são condenadas à mais extrema miséria por sucessivas gerações; uma casta de barões do latifúndio e grande empresariado, vivendo às custas da corrupção do Estado, domina a política e se perpetua no controle dos Três Poderes da República e das instituições; o grosso da população é conservado na mais profunda ignorância e milhões sequer têm o que comer; outras centenas de milhares não têm onde morar.

O Brasil não é e nunca foi uma democracia, na essência da palavra, no conceito último do termo!

Vivemos alternando entre ditaduras militares e ditaduras civis. O povo ― o povo mesmo ― jamais pôde dirigir seu próprio destino. Fato é que todas as vezes que um punhado de gente se organizou para reagir à ditadura política, social e econômica das classes dominantes, teve seus movimentos esmagados com extrema violência, com toda a crueldade. Basta olhar para as revoltas no Brasil Colonial, no Brasil Imperial, no Brasil Republicano. Canudos, Contestado, Malês, tantas e tantas outras…

Falar que, por conta da derrota do fascismo nas eleições de 2022, estamos vivendo numa democracia, é ser muito otimista ― ou muito tolo. A democracia ainda é um alvo distante. Poder votar a cada dois anos, com regras bastante convenientes para elegermos os representantes da classe que nos oprime, não nos parece democracia. A paridade de armas, a igualdade de oportunidades no jogo político, tudo é apenas uma grande mentira, uma enganação sem fim. Todo o sistema está programado para se conservar e as pessoas, em sua maioria, nem se dão conta disso.

A hereditariedade mal disfarçada continua a determinar os membros das altas cortes do Judiciário, das cadeiras nas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal, altos cargos públicos e nomeações casuísticas que garantem a manutenção do poder nas mãos de quem sempre o deteve. Todo o sistema de preenchimento dos cargos públicos é uma grande jogada. “Tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

O caminho até a democracia é longo. É preciso, primeiro, curar uma sociedade doente como a nossa, que cuida de questões de saúde pública com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo; que assassina pessoas que se manifestam pacificamente por seus direitos mais elementares; que anistiou torturadores e assassinos; que improvisa câmaras de gás para assassinar pobres; que pune magistrados que cometem crimes com aposentadorias compulsórias com salário integral; que assassina pessoas com orientação sexual diferente do padrão hétero como nenhum outro lugar do mundo ― mais até que ditaduras teocêntricas; que condena milhões de pessoas ― crianças, inclusive ― à fome e à morte prematura; e por aí vai.

O Brasil se finge de democrático! Todavia, fingir não é ser. A lei excessivamente rigorosa para com os pretos e pobres é magnanimamente branda para com os ricos e poderosos. Tudo é muito falso, muito incerto e muito estranho nesse país. Um país que pode ser adjetivado de qualquer coisa, menos de democrático. A não ser que o objetivo da definição seja apenas enganar os incautos.

*Natanael Oliveira do Carmo é advogado criminalista, escritor e Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

Foto de capa: Lula Marques / Agência Brasil

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