Artigo | A direita conquistense e o caos no sistema de transporte coletivo urbano

Por - 30 de janeiro de 2024

A classe trabalhadora não tem outra opção senão ser forçada a encarar uma frota de ônibus velhos e sucateados.

São quase 7h de uma manhã rotineira. No ponto de ônibus, eu levanto o meu braço direito sinalizando ao motorista que preciso entrar naquela condução. Eu aguardo enquanto ele estaciona o veículo. Descem algumas pessoas, outras que estão em pé se reorganizam dentro do ônibus. Ouço o tempo todo o cobrador pedir, quase sempre gentilmente, para que todos se movam até o final do corredor. O motorista precisa fechar as portas para seguir a viagem, que quase sempre está atrasada.

Coloco a minha mochila para frente e sigo o fluxo relativamente lento da fila, por causa da catraca e da habitual falta de espaço. Faço esse movimento junto a mais outras 10 ou 15 pessoas trabalhadoras. Como esperado, não encontro um lugar para sentar. Ali mesmo, em pé, com uma mão eu seguro na barra amarela fixa ao teto, com a outra abro a mochila e pego um livro.

Em meio a reclamações cordatas, outras nem tanto, folheio o livro. Abro-o e me desligo totalmente do mundo para mergulhar na obra. Sinto uma espécie de alívio imediato. Não apenas pela expectativa da leitura, mas talvez porque aquela ação representa um subterfúgio, uma fuga do corredor terrivelmente apinhado de gente estressada por causa da péssima condição do ônibus e dos maus tratos oferecidos “gentilmente” por alguns péssimos funcionários da empresa de transporte.

Esse é o ritual de todos os meus dias, de segunda a sábado e, uma vez ou outra, no domingo. Em ônibus velho, sujo e quebrado, tudo é perfeitamente possível. É recorrente o motor parar, o freio não acionar as rodas, o letreiro não acender e a cordinha para sinal de parada não apitar. Aliás, por causa do mau funcionamento desse sinal, ouvi uma senhora irritada esbravejar: “Eu dei sinal, não viu não, lesado?!”. 

Os dramas são inúmeros e recorrentes. Outra vez, o motorista, para não atropelar um motoboy com pressa, freou bruscamente e um senhor prontamente reclamou: “Motorista, tu tá levando é gente, não é jumento não!”. Por falta de espaço, por causa da super-hiper-lotação, pode acontecer das pessoas se esbarrarem e imediatamente se ouve: “Sim, meu fi, vai me levar junto, é?”.

Com a experiência de quem nasceu e continua morando na periferia da zona oeste da cidade, digo que esse caos que se instalou no transporte público de Vitória da Conquista é fruto da atual política adotada pela gestão municipal. Essa política desastrosa é responsável pelo aumento escorchante da tarifa, pelo sucateamento do sistema, pela falta de fiscalização da catastrófica frota, e pela quantidade de veículos incompatível com a real demanda de ônibus urbano.

Como usuário regular do serviço, vivencio essa deprimente realidade diariamente. Meus compromissos de trabalho e de estudo me fazem enfrentar essa via-crúcis em horários de pico. Faça chuva ou faça sol, sou levado a entrar e sair de ônibus tanto como trabalhador, quanto como estudante da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).

É perceptível a insatisfação coletiva com a péssima qualidade do serviço de transporte público conquistense e isso está estampado em cada olhar de angústia, constrangimento, impotência e irritação. Então, por que algumas das pessoas mais prejudicadas não conseguem responsabilizar o governo municipal pela sua aflição diária? Responder a essa questão requer muito mais do que a habilidade de descrever o fenômeno em si. É preciso ir além da aparência das consequências, atacar a essencialidade que quase sempre está oculta para descobrir a motivação da ação causadora. 

O estrangulamento do transporte público de Vitória da Conquista, a meu ver, não é um caso essencialmente de ineficiência da gestão. O caos desse serviço essencial à população periférica trabalhadora surge da própria natureza da política ultraconservadora do atual governo municipal.

Historicamente, a direita brasileira sempre foi a arquiteta do caos no Brasil, causadora de uma desordem pensada. E com a direita de Vitória da Conquista não é diferente. Portanto, existe uma racionalidade por detrás dessa bagunça organizada para manter a ordem política da burguesia ultraconservadora, o que inclui favorecer apenas empresários capitalistas aliados (ou financiadores de campanhas?).

São aqueles mercenários de sempre, parasitas à espreita de uma oportunidade para comprar com investimento financeiro algum candidato(a) com alinhamento ideológico nas eleições. São políticos liberais com e sem partidos, pessoas interessadas em lograr êxitos a qualquer custo.

Em Vitória da Conquista, o atual governo municipal, herdeiro do legado de extrema-direita de (Herzem Gusmão) Pereira, é uma outsider lobista dos interesses da burguesia capitalista.  Para favorecer seus comparsas, agem com extrema truculência contra os interesses socioeconômicos, culturais e políticos da população da periferia, e negligenciam intencionalmente a gestão pública para criar o caos.

O desmonte que sucateou o sistema municipal de transporte público se intensificou com a eleição de Pereira para prefeito, que assumiu o cargo com a responsabilidade de favorecer empresários, principalmente os de empresas de ônibus, que se instalaram na cidade e saíram com as burras abarrotadas de dinheiro da população. Sem contar os donos de vans, alguns milicianos operando clandestinamente as linhas interurbanas.

O problema só pode ser resolvido quando a classe trabalhadora tomar consciência de toda a armação política e derrotar eleitoralmente o grupo de ultradireita, mas não é tão fácil assim.

Como o serviço de transporte público está sempre em decadência por causa do sucateamento, a percepção da população de ontem será sempre melhor do que a de hoje, e assim sucessivamente. Desse modo, fica oculta a verdadeira causa da realidade, que é a política municipal de governo. Essa dinâmica vai naturalizando a decadência como algo invariavelmente inevitável.

O drama da população periférica com o transporte público urbano não é novo. Infelizmente, a classe trabalhadora não tem outra opção senão ser forçada a encarar uma frota de ônibus velhos e sucateados. São veículos caindo aos pedaços, com pane na parte mecânica, elétrica e suspensão sem manutenção, além de assentos quebrados com exposição de ferragens. São veículos apinhados de pessoas que viajam com as janelas travadas e sem ar-condicionado.

Só um “governo politicamente canalha” impõe ao seu povo trabalhador o constrangimento de viajar em pé, além de espremidos, como faziam os traficantes portugueses de africanos nos tumbeiros. Daqui a pouco seremos obrigados a empurrar ônibus quebrados, como faziam com os escravizados das galés.

A palavra “canalha” originalmente vem do latim “canalia” e quer dizer “bando de cães”. Essa expressão passou por algumas modificações semânticas ao longo do tempo, passando a significar também “ralé, ínfima plebe, patife, vulgar, infame, velhaco, desleixado, travesso”, a exemplo do que possa ser “uma pessoa politicamente desonesta, desprezível, vil e sem moral”.

Isso não quer dizer que aqueles que compõem a gestão atual se comportem literalmente como selvagens, um “bando de cães”, no sentido original da palavra. Nesse caso, assume-se a condição do “politicamente canalha” como sendo o termo mais apropriado para descrever o político e a política do governo municipal que agem de forma politicamente desonesta, desleal, cruel e sem escrúpulo. 

Por que não adjetivar dessa forma um governo que apresenta uma conduta moralmente reprovável e prejudica a população usuária dos serviços púbicos, sobretudo as pessoas que pegam ônibus coletivos todos os dias para irem trabalhar?

*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do Blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

Foto de capa: Secom/PMVC.

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