Mais uma vez, Sheila Lemos fere a dignidade humana ao destruir barracos do Acampamento Terra Nobre

Por - 10 de março de 2022

Com tratores e com a presença da Polícia Militar, ação de desocupação do local foi realizada com truculência em pleno fim de madrugada da última quarta-feira, 9.

Sob forte neblina e o tradicional frio conquistense de março, a prefeita de Vitória da Conquista, Sheila Lemos, fechou mais uma vez o cerco contra o Acampamento Terra Nobre. Em plena madrugada da última quarta-feira, 9, a gestora enviou máquinas para atropelar barracos e a Policia Militar para prender quem se opusesse à transgressão do alto comissariado municipal. Transformou o local numa verdadeira zona de guerra. A ação foi denunciada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e pela imprensa da cidade.

Paramentada como uma tropa de choque, a Guarda Municipal, também presente, protegia quem dava ordens para destruir absolutamente tudo o que encontrassem pela frente, com o auxílio de tratores, caminhões e até mesmo de monitoramento feito por drones. As máquinas passaram por cima não apenas de barracos, mas de plantações e hortas, pequenos móveis usados recebidos de doações, roupas, reservatório de água, brinquedos, pertences e documentos pessoais dos acampados.

A presença coercitiva da guarnição da Polícia Militar Especializada (RONDESP) cerceava o direito de ir e vir de qualquer pessoa, sobretudo daquelas que tentavam, desesperadamente, salvar algum pertence. Essas eram barradas por homens portando fuzis. Até mesmo a imprensa e o advogado do Movimento Asterra, Erick Silveira, não foram respeitados, sob a alegação de que a força de segurança estava recebendo ordens do comissariado municipal para realizar a “contenção do perímetro”. Tudo isso com a intenção de que ninguém pudesse saber exatamente o que estava acontecendo naquele lugar.

Nem em uma zona de guerra, costuma-se desrespeitar médico, jornalista, advogado ou qualquer outro tipo de ajuda humanitária. Mas em Vitória da Conquista, a prefeita não respeita a ordem constitucional instituída pelo estado democrático, e, sem nenhum processo administrativo que trate do despejo daquela área verde e pública, remove pessoas como se fossem meros objetos sem quaisquer direitos. A ocupação dessa área pelo Movimento Asterra tem o objetivo de fazer cumprir a função social da terra, conforme determina a Constituição brasileira.

Entretanto, o Acampamento Terra Nobre, organizado por mulheres e homens desempregados, é agora uma terra arrasada. Resistir a uma segunda tentativa de desocupação se tornou quase impossível, tendo em vista que, sobreviver à primeira, ocorrida há quase um ano, já tinha sido muito difícil. A verdade é que os moradores do local sofreram mais um despejo ilegal, perpetrado de forma violenta em um cenário dantesco que, particularmente, me remete àquelas cenas horripilantes do filme “A Lista de Schindler” (1993), no qual inúmeras invasões nazistas eram realizadas frequentemente contra comunidades judaicas, comunistas, africanos, asiáticos, ciganos e latinos, que tinham suas casas invadidas na madrugada fria alemã, e seus bens destruídos e/ou roubados.

O governo municipal de Vitória da Conquista repetiu a mesma perversidade contra o Terra Nobre feita na madrugada fria e chuvosa do dia 24 de junho de 2021. Como se não bastasse, tenta descaracterizar a denúncia dos acampados, do advogado do movimento, Erick Silveira, e de instituições que os apoiam, como a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA). Mas a narrativa institucional criada pela atual gestão não tem força perante os fatos, pois eles falam por si só.

Lá estavam as máquinas para atropelar barracos frágeis de madeira e lona, destruir pequenas unidades de produção de subsistência, soterrar móveis velhos, documentos pessoais e brinquedos artesanais de crianças.

Lá estavam caçambas que supostamente deveriam carregar os pertences dos acampados, mas que, na verdade, foram até o local para carregar os destroços dos barracos destruídos pelas máquinas, sem deixar vestígios.

Lá estava um ônibus velho e pequeno para transportar os acampados amontoados como se fossem bichos para uma casa de acolhimento de caráter religioso não referenciada pelo SUAS (Sistema Único de Assistência Social).

Lá estavam as viaturas e a guarnição da Polícia Militar e da Guarda Municipal para intimidar os moradores com suas armas e forçá-las a se silenciarem diante da situação e seguirem feito carneiros ao abate.

Devemos exigir que o Estado investigue esse processo de instrumentalização da RONDESP para fins ilegais como esse.  O único instrumento jurídico que tornaria possível essa relação institucional entre a Prefeitura e a Polícia seria uma liminar de reintegração de posse, que permite a ação de despejo ou um processo administrativo, conforme prevê a Justiça. Nenhuma dessas possibilidades foi constatada pela assessoria jurídica do acampamento.

A prefeita e o alto comissariado municipal não respeitam a lei. Em entrevista à TV Sudoeste, disseram que não é preciso de liminar por se tratar de área verde, por isso, foi dado apenas um alerta aos acampados sobre a desocupação. Mas a lei determina que um oficial de justiça avise com antecedência sobre uma ação de despejo ao advogado responsável por determinada ocupação ou às lideranças dos acampados. Isso inclui, obviamente, deixar claro o prazo estabelecido pelo juiz para execução do devido instrumento legal que dá respaldo a tal medida. Mas, como isso é possível se nunca existiu processo administrativo?

O advogado do Movimento Asterra, e também integrante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Erick Silveira, comunicou imediatamente esse fato ao defensor público José Raimundo. O mesmo esteve no acampamento para averiguar não só os termos da invasão, como também suas consequências danosas e abusos cometidos contra a dignidade humana dos acampados. Com isso, serão tomadas todas as medidas jurídicas cabíveis para reparar os direitos que lhes foram negados e restabelecer a normalidade constitucional daquela área.

O governo municipal não tem nenhum projeto ou programa de habitação com recursos para financiar unidades habitacionais populares para pessoas organizados em movimentos de ocupação de áreas públicas de Vitoria da Conquista. Além disso, não tem um planejamento estratégico para ações legais de despejo de seres humanos que compõem a trágica estatística do déficit habitacional do município ou sequer um plano de contingenciamento que leve em consideração a dignidade humana.

Se realmente tivessem interesse em promover a proteção social dos moradores do Terra Nobre, um ano teria sido o suficiente para a atual gestão elaborar e aprovar um projeto para a construção de equipamentos que fizessem daquela área de interesse público um espaço de acolhimento e defesa de direitos. Como não existe nada disso, não podemos descartar a hipótese de que existe alguma pessoa jurídica de interesse privado pressionando a Prefeitura para ocupar aquela área com vistas a benefícios próprios.

Antes de pensar em exercer entusiasticamente o autoritarismo, característica simbólica de regimes nazifascistas, era preciso respeitar a dimensão humana das famílias do Terra Nobre. Não é apenas um acampamento. É o resultado da luta coletiva pela moradia, negada aos acampados por um governo que os trata como escória da sociedade. É a esperança construída por dias melhores.  

*Herberson Sonkha é um militante comunista negro que atua em movimentos sociais. Integra a Unidade Popular (UP) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). É editor do blog do Sonkha e, atualmente, também é colunista do jornal Conquista Repórter.

**Foto de capa: Blog do Anderson.

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