Artigo | Ana Barroso e Guigga ajudam a montar o sertão místico no musical de Torto Arado

Por - 9 de outubro de 2024

Em Salvador, artistas de Conquista e Maracás estrelam adaptação para o teatro da obra do escritor Itamar Vieira Junior. Ambos têm histórico de contribuição com a produção artística e cultural do interior baiano.

Está em cartaz, por enquanto até o fim de outubro, em Salvador, a adaptação para teatro musical do livro Torto Arado, do escritor baiano Itamar Vieira Junior. Compondo o elenco estão pelo menos dois baianos com histórico de contribuição com a produção artística e cultural do interior do estado, principalmente entre Vitória da Conquista, Maracás e Jequié.

Velhos amigos e parceiros musicais, Ana Barroso e Guigga foram selecionados juntos em um teste nacional com mais de 500 inscritos para o espetáculo baseado no vencedor do Prêmio Jabuti de Romance Literário de 2020. Guigga é Severo, um dos protagonistas da história, e Ana interpreta duas personagens, transitando entre oprimidos e opressores.

Assisti ao espetáculo na última sessão da primeira fase, anunciada e esgotada no mês de setembro, no teatro Sesi Casa do Comércio. Como vouyer e participante de uma cena independente em que esses dois artistas se destacaram em Vitória da Conquista, propus contar para vocês como eles vão indo.

Adaptação da obra de Itamar Vieira Júnior, o musical é dirigido por Elísio Lopes Jr. Foto: Caio Lírio.

Guigga e Severo

“Valei-me, meu São Sebastião!”. É com algo como essa frase que Guigga mostra a sua construção do personagem. Sebastião é o nome do seu pai e o nome de um santo pelo qual tem estima, tendo dedicado a eles uma canção no álbum Divino e Ateu (2017).

“Severo é um personagem que fala muito de mim, da minha comunidade, das pessoas com quem eu convivi ao longo da vida: do meu pai, dos meus avós, da minha mãe… Um sonhador. Saiu também assim como eu do Sertão da Bahia na expectativa de conquistar espaço e novas oportunidades de vida. Essas semelhanças entre a história de Severo e a minha, os ideais dele enquanto um jovem que busca novas oportunidades para a família e para sua comunidade, é algo que eu também me identifico e me vejo fazendo aqui em Salvador, né?”, me conta Guigga.

Desde o momento em que Guigga, cria da cidade de Maracás e do seu povoado do Peixe, entrou em cena, lembrei da primeira vez que ouvi Agonília, talvez no concurso ‘Por Isso Que Eu Canto’, talvez em alguma “cultural” da Uesb, em Vitória da Conquista. A canção, uma das tantas que marcou época durante a existência do duo CAIM, já começa nos evocando uma imagem forte no sertão.

A primeira parte da música descreve três peixes no chão sertanejo, um ambiente que, por natureza, não comporta esses animais. Desajustado, um desses peixes tem que morrer para acessar outra dimensão, outra realidade. E aqui entra Severo, um dos moradores da fictícia fazenda Água Negra, localizada na Chapada Diamantina, a morrer em cena.

O peixe que desencarna e “vive em outra dimensão” pode ser comparado à visão de morte e espiritualidade presente em Torto Arado na visão religiosa afro-brasileira do Jarê. A história não acaba na morte terrena, e a jornada além dela também guia os acontecimentos.

Nascido em Maracás, Guigga interpreta Severo na adaptação musical de Torto Arado. Foto: Caio Lírio.

Severo morre em prol de uma causa comum a seu povo: a libertação de uma opressão centenária. Nesse novo lugar, “redes e canoas não podem mais lhe raptar” e ao mesmo tempo catalisa os sentimentos de revolta e liberdade nas protagonistas Bibiana e Belonísia. A atuação de Guigga e a interação com as atrizes Larissa Luz e Bárbara Sut, que interpretam as irmãs no espetáculo, são fundamentais para captar esse sentimento.

“Tive o acolhimento da equipe, de Elísio (diretor), de Ana Paula (preparadora de elenco), que me possibilitaram criar o personagem a partir das minhas referências. No fim das contas eu fui instigado por eles durante todo o processo de construção a trazer para Severo o meu território, as minhas vivências. E foi a partir disso que o personagem se construiu”, conta Guigga.

Não é a primeira vez que o cantor, compositor e ator trabalha em uma obra teatral inspirada na literatura brasileira. Em 2023, sob a direção de Zeca de Abreu, interpretou Joaquim Simão, protagonista d’A Farsa da Boa Preguiça, de Ariano Suassuna.

“É a oportunidade de poder de alguma maneira construir dois personagens diferentes com vertentes diferentes, um da comédia e outro do drama, mas a partir de uma mesma referência de pesquisa, que é o Sertão da Bahia. Visitar esses dois universos me deixa muito animado, né? Sinto como grande presente essa possibilidade de enxergar o quanto nosso sertão é potente, amplo, diverso e capaz de possibilitar muitas histórias e muitas narrativas diferentes dentro desse mesmo contexto”, explica o artista.

Se não achou mais ingresso para Torto Arado e ainda quiser ver Guigga em ação, vá à Casa da Mãe, se estiver em uma terça-feira em Salvador. Ele está lá como vocalista da veranesca banda Cajá, colocando para jogo suas influências de banda baile na cidade natal.

Ana Barroso

Depois de interpretar e se conectar com a encantadora santa baiana Dulce em um musical, e cantar Waldick Soriano e outras pedradas da canção romântica acompanhada pela Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba), ambas para uma Concha Acústica do Teatro Castro Alves lotada, Ana Barroso está em jornada dupla em Torto Arado.

Durante a peça, a também cantora e atriz transita entre duas personagens que estão de lados opostos na luta pela terra e pela vida na comunidade de Água Negra. Enquanto a oprimida, ela canta a dor da partida do sacerdote Zeca Chapéu Grande, já como Estela, grita a dor da morte do marido coronelista.

“Estela é o chaveiro de Salomão. Ela é fazendeira, mas tem uma humanidade menos tirânica defendida pela direção que me ajudou numa construção menos burlesca da personagem. Salomão é o arquétipo do racismo e do patriarcado. E Estela apresenta outro tipo de silenciamento, porque é outro tipo de gente, mas ainda assim é um adereço do marido. A dor de Estela quando Salomão morre não é de qualquer escassez física, mas porque ela não tem mais qualquer sentido em sua vida”, ela me disse.

Ainda que em momentos específicos, a entrega de Ana na voz e nas interpretações somam e são elos fundamentais na narrativa, marcando, por exemplo, a passagem de fases da história. Nasceu em Conquista e renasceu em Jequié, onde se formou em Teatro e tem descoberto que “há uma liberdade boa pra quem tem morada no mar”, para citar novamente Agonília.

Em 2021, Ana Barroso lançou seu disco de estreia ‘Cisco no Olho’, composto por nove faixas. Foto: Caio Lírio.

“Sou grata demais a essa cidade por todo ensinamento, todos os encontros, espaços e escutas. Salvador inebria, tem suas encantarias e bençãos. Não é fácil vir com uma criança sem família, nem herança correr atrás da flecha. Mas também é bonito e eu precisava fazer isso“, me cona Ana.

Em Salvador, tanto Ana quanto Guigga entenderam que era preciso estar em grupo para alumiar o estradar. Nesse mote, criaram o projeto Fuá durante o São João e integram o coletivo Outras Vozes, com artistas como Théo Charles, Dórea, Fatel e Angela Veloso.

“Participar desses projetos, além de uma enorme alegria, é também confirmação da caminhada. Que estou onde devo estar fazendo o que preciso fazer. A gente duvida inúmeras vezes do que somos, quando os desafios sujeitam o sustento. Falo também pela importância de não esmorecer nas primeiras traves. Não é simples, mas vale a pena porque a gente espicha, a alma dilata e nossas habilidades são ampliadas, inevitavelmente. Eu trabalho muito, fazendo de tudo, agregando quem posso e agradecendo quem me reconhece como parte de algo importante”, completa.

Ana pediu para não esquecer de dizer neste texto que no meio disso tudo ainda está pensando no próximo disco, sucessor de Cisco no Olho (2021).

*Rafael Flores (@rafaeh_) é jornalista formado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Desde a graduação, trabalha na produção cultural e de comunicação na Bahia, além de atuar diretamente nas artes como DJ, artista visual e fotógrafo.

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